Volume 3 – Arco 2
Capítulo 207: Terraemnia
Atormentados por um bando de baixinhos, que possuíam uma cabeleira vermelha e espetada como uma fogueira, montados em javalis e com porretes de madeira na mãos — caiporas — alguns duos de Rank A se viam com os nervos à flor da pele.
— Essas porrinhas…! — reclamou um rapaz, que cortou as costas de um dos baixinhos, com sua espada, apenas para receber uma paulada na nuca, de uma caipora que aproveitou a oportunidade.
— Hihihi! — Montada em seu javali, a criatura zombou do adversário, saltando na frente dele e fugindo para o interior de uma floresta de árvores ressecadas. — Hihihi!
— Volta aqui, desgraça! — O rapaz abandonou os aliados e partiu em perseguição à caipora; quando uma garota meio-gato notou o ocorrido e seguiu ele.
— Ei! Volta pra junto do grupo! — instruiu a felina enquanto usava da sua agilidade como assassina para desviar dos obstáculos e alcançá-lo rapidamente. — Pode ser uma armadilha, poxa!
O parceiro da garota pareceu refletir por um instante, mas então reparou que a montaria da caipora tropeçou e a criatura deu de cara com uma das muitas árvores ressecadas e se levantou com as pernas bambas.
— É agora! — Prolongando a lâmina da sua espada com Energia Espiritual, o rapaz empalou a caipora no tronco da árvore. — É bom ser pego assim, né?
Sem dar muita atenção ao que o seu algoz disse, a criatura balbuciou sangue e se agarrou à árvore morta, sua última prece.
— Já conseguiu a sua vingancinha, né? — A felina chamou o parceiro com a mão, apontando para onde o grupo deles estava. — Agora, vamos voltar.
Satisfeito, o rapaz desfez a lâmina de energia e deu as costas para o cadáver da criatura, pronto para sair daquela floresta mórbida, ouviu a voz da garota logo atrás.
— Já conseguiu a sua vingancinha, né? — Repetiu a voz, mesmo que a felina estivesse ao alcance dos olhos dele. — Agora, vamos voltar.
O rapaz pensou em olhar reto ao se virar para trás, porém, ao reparar no rosto da parceira dele se levantando, ele olhou para cima.
— Que bicho é esse?
Um corpo mumificado, com braços longos demais para o seu corpo, se bem que só as pernas já eram grandes em demasia; por sinal, a aparente árvore que a caipora abraçou era uma daquelas pernas.
O corpo parecia humano, exceto pela cabeça, três sirenes com dentes e línguas, capazes de replicar o som da voz de qualquer pessoa que já tenha ouvido — um literal Cabeça de Sirene.
“Merda!” O rapaz prolongou a lâmina da espada de novo e se preparou para o corte; um alvo maior era mais fácil de acertar. “Era uma armadilha mesmo!”
Veloz, o humano cortou o ar para cima, apenas o ar, uma vez que o Cabeça de Sirene já estava ao seu lado; mais rápido que o corte do espadachim foi o chutou que ele levou na boca do estômago.
— Argh! — Arremessado contra uma cacetada de árvores, quebradas em suas costas, o rapaz mal teve tempo de ver o monstro correndo até ele e o pisando, o que evitou que fosse parar ainda mais longe.
As árvores secas perderam suas frágeis folhas a cada balanço provocado pelas pisadas do Cabeça de Sirene, que só parou na hora de se abaixar para pegar o espadachim ensanguentado.
— Que bicho é esse? — Replicou a fala da vítima, aumentando o volume, pondo-a bem na boca de uma das sirenes. — Que bicho é esse?! Que bicho é?!! Que bicho é… — Vários feixes de luz deceparam a mão da criatura. — Esse?!!! Ahhhh!!!!
A felina agarrou o parceiro atordoado no ar, com os tímpanos piando a milhão, e correu com ele dali, ou foi o que ela tentou; o grito de dor do Cabeça de Sirene soou do lado dela, que tomou um belo chute.
Incapaz de segurar o parceiro, a assassina acabou por se separar dele e só parou o seu papel de bola de futebol quando se chocou contra uma rocha preta, que possuía rachaduras vermelhas como magma escaldante; era quente, mas, com a dor, a menina só reparou na corrida e no som da sirene que vinha para matá-la.
A criatura esguia parou bem na frente da felina e se curvou, liberando frequências que levaram ela, que já tinha uma audição aguçada a se contorcer com as mãos nas suas orelhas de gato.
A tortura parecia sem fim, só acabaria quando a menina fosse devorada pela boca de algumas daquelas três sirenes agourentas e macabras, mas acabou mais cedo do que ela esperava.
Com um som falho, como um rádio que falhava por alguma interferência, era o Cabeça de Sirene que dava os seus últimos sinais de vida; preso por estacas de rocha saídas do solo, como a grande pedra que a garota se chocou.
— Que bicho… é… esse?
O chão tremeu e se rachou com fendas abissais, em uma das quais o Cabeça de Sirene acabou por cair dentro; no entanto, o que mais se destacou não foi o som das rachaduras da terra, mas sim o que parecia ser o eco de um incêndio distante.
Erguendo-se das profundezas da terra, com a felina atordoada sobre as suas costas, a grande rocha revelou o seu real corpo: uma versão colossal da pedra, cheia de veios brilhantes de magma entre as fissuras. Árvores mortas estavam incrustadas em suas costas, entre as quais a garota ficou presa e não caiu.
O eco do incêndio voltou a soar assim que a criatura abriu sua boca para a frente, a qual reverberou como um grito sônico que varreu o que quer que encontrasse pelo caminho.
Ao longe, Lilya, que estava no céu, vislumbrou o crânio deformado do monstro personificador da destruição ambiental; os chifres pontiagudos, extensões de rocha e galhos secos; os olhos, dois buracos vazios de pura escuridão e morte.
— Terraemnia — refletiu a majin, em voz alta. — Essa gente mal chegou e já acordaram o bichinho do Arklev. — Fechou suas pálpebras e cruzou os braços. — Querem morrer.
— Esquece essa criatura bizarra. — Focado apenas nas curvas de Tília, Kaiser poderia deixar pra caçar o infeliz que encontrou Terraemnia depois e, então, puni-lo. — Vai aceitar a minha cordial proposta ou não?
— Me recuso. — Fazendo os seus olhos assumirem a mesma aparência que os de Eslly, a guerreira aprimorou sua visão com o símbolo do seu Pacto de Ressonância. — Vá pro inferno, você e a sua proposta.
— Olha aqui, garota. — Levantando o queixo, as chamas do majin subiram com intensidade, a ponto de secar a garganta da guerreira e desidratá-la. — Eu fiquei bem magoado aqui, entende?
Kaiser agarrou a lança fincada no chão e arrancou ela, fazendo um meio meio círculo de rocha derretida à sua frente.
— Mudei de ideia. — O infame caminhou a passos lentos, com a arma estendida na horizontal. — Eu vou começar por esse merda — explicou — arrancando cada membro que ainda resta dele. — Sorriu, maléfico. — Então nós vamos dar um show que esse merda não vai esquecer nem depois de morto!
— Lixo.
— Mas eu só tenho uma dúvida. — A cada passo, o chão derretia e borbulhava. — Quem de vocês dois vai ter o privilégio de morrer primeiro? — Um tremor repentino, mais intenso que o anterior, fez o majin perder um pouco do equilíbrio. — Hein?
Varrendo tudo sem distinção, o rugido sônico de Terraemnia engoliu o local em que os Top 3 Rank S estavam lutando; duos, monstros, casas e barracas, tudo sumiu e apenas um grande rastro de destruição sobrou em seu lugar.
— Mas o que diabos?! — Entre os destroços, um amontoado de paredes, aquecido, derreteu, e Kaiser se levantou de lá, encarando o monstro que havia se aproximado do centro da cidade. — O Arklev não colocou uma coleira nessa porra?!
— Vamos proteger a Terraemnia — comunicou Lilya, pelo MIC. — Ou seria melhor só tirar o foco dela.
— E como tira o foco de um troço daquele tamanho?! — Mais importante, quem teve o seu foco perdido foram Eslly e Tília. — Tsc! — Kaiser procurou os adversários, com a sua visão, sem resultado; os seus olhos não eram tão bons quanto os deles.
Era difícil pensar que aqueles dois haviam morrido por causa de um ataque tão fraco; de qualquer modo, mesmo se estivessem escondidos, teriam que se revelar por causa da destruição da Terraemnia.
— Porcaria. — O majin examinou a aura vermelha e negra do Sacrifício Sangrento começar a se esvair. — Aqueles merdas covardes. — Esconder-se até o efeito do Sacrifício passar era lógico em um campo de batalha. — Não vai ficar assim.
Antes de alçar voo, o infame fez questão de deixar um círculo de Chamas Demoníacas, que se expandia cada vez mais, conforme o Sacrifício Sangrento fosse se acabando.
— Hahaha! — Chegando ao lado de Lilya, Kaiser desfez o manto de fogo em seu corpo.
— Você é mesmo um mau perdedor — comentou a garota, já com o efeito daquele círculo de chamas em sua mente. — Vai explodir tudo, só porque foi feito de idiota.
— Eles que foram uns merdas ao fugir da luta. — Além de que o círculo só explodiria quando o Sacrifício Sangrento se esvaísse. — E não tem nada mais divertido pra fazer.
Com as Top 2 Rank S dentro do portal, Eslly e Tília deveriam ser os mais fortes; sobrou apenas o papel de escoltar a Terraemnia e mantê-la viva o maior tempo possível, um trabalho demasiado chato, ao menos até Kaiser vislumbrar algo incomum nas costas da criatura, que passeava na paz do seu caos e destruição.
— Olha! Eu tô vendo coisas? — Antes que Lilya falasse algo, o majin partiu em disparada para cima do monstro que ele deveria proteger. — E que coisa!
Terraemnia, ao constatar a aproximação de uma forma de vida, rugiu para Kaiser, agora com a liberação de fogo e fumaça, o que foi uma péssima escolha de ataque.
Sem se preocupar com o fogo, apenas com a inalação da fumaça, o lanceiro infame queimou o fogo da Terraemnia, com as suas próprias Chamas Infernais.
— Não tenho interesse em você, criatura horrenda. — Passando por cima da cabeça deformada do monstro, Kaiser partiu para as costas, onde constatou o que havia imaginado. — É mesmo uma pessoa. — Ou melhor, uma garota meio-gato, que o majin foi veloz em pegar e tirá-la dali.
Ainda tendo que desviar de uma rabada da criatura, Kaiser cortou o seu trajeto para a direita e aterrissou com a felina nos braços, atrás dos restos de uma casa, o que ele poderia chamar de “lugar seguro”, um canto sem monstros ou duos para incomodá-los.
— Você está bem? — questionou o majin, para a garota. — Espero que sim. — Ou o trabalho dele ao salvá-la teria sido em vão.
— Uh…? — Abrindo os olhos, ainda meio turvos, a felina pensou estar nos braços do seu parceiro, quando confirmou o equívoco. — Quem é você?
— Eu sou o seu salvador — apresentou-se, com a voz aveludada e o rosto próximo ao dela. — O seu heroi. — E todo heroi tinha a sua recompensa, como as vistas arregaladas da garota ao ser beijada sem aviso prévio.
— Uh? — A língua do majin entrou na sua boca, mas… — Ah… — A felina deslizou os lábios para o lado. — Desculpa, é que eu já tenho namorado — explicou, sem encarar o seu autoproclamado salvador. — Pode me pôr no chão?
— Namorado, é? — O peito do infame até bateu mais forte; para um majin, nada era melhor do que possuir o que já era dos outros. — E por acaso o seu namorado…
Kaiser pôs a felina no chão e se virou, veloz, empalando um rapaz enfurecido, com a sua lança flamejante, que tentou atacar ele pelas costas, mais um zé-costinha, porém um que fracassou.
— … Seria esse merda aqui?
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