O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 3 – Arco 2

Capítulo 206: Livre do Medo?

De surpreendida para rubra de raiva, Vínia fechou os punhos, ainda um tanto zonza, tendo que se apoiar na sua lança — um projeto de bengala — e vociferou para a criança que se espreguiçava, tranquila:

— O que você fez com a minha Manipulação do Medo?! — A moça deu um passo para frente e tropeçou na falha do seu sistema motor. — Uh… Sua… capeta!

— Vínia… — Tomando o lugar da lança da parceira como bengala, Grete entregou o seu ombro para equilibrar a moça.

Em contrapartida, com a guarda aparentemente baixa, a Preguiça nem fazia menção de se levantar; na verdade, se possível, nem teria o trabalho de usar a agulha que Arklev preparou pra quebrar a Habilidade Inata mais problemática ali.

— Uááá! — A menininha abraçou-se a píton, sem a qual seria uma presa fácil dentro daquele portal. — Sem meedo… Seem…

Só então, a ficha começou a cair para a duo de garotas: tanto Vínia quanto Grete ficaram com a guarda baixa durante o ataque dos curupiras, mas apenas uma delas foi alvo da agulhada da Patrona.

“Ela só tinha uma daquelas agulhas?”, supôs Grete, o que era uma ideia coerente.

Nunca se ouviu falar daquele tipo de arma, e quebrar a Habilidade Inata de alguém, certamente, estava longe de ser algo simples; a quantidade de agulhas só podia ser limitada, bem limitada.

“Não baixe a guarda de novo”, orientou Vínia, pelo MIC, já tendo em mente o que a sua parceira estava presumindo. “Nada impede ela de ter outra agulha guardada”.

“Tá… Tá bom.”

— Cês poodem… emboora? — pediu a pequena, com os olhos entreabertos e voz bocejante. — Tôô… cansaada.

Lidar com as ilusões da Grete seria um saco, mas Trívia já havia tirado a Indução do Medo da Vínia, o que seria bem pior; até poderia dar conta das alucinações, mas como enfrentaria o medo? Dava medo.

— Haha! Nem pensar, sua capeta disfarçada de anjinha. — Sentido a tontura já bem mais fraca, Vínia pôde ficar em pé sozinha e ameaçar uma criança com uma arma afiada. — Se quer que a gente vaze daqui, é porque sabe que você vai perder.

— Erraada. — Foi então que a Preguiça fez algo que surpreendeu a todos: ela teve disposição suficiente para levantar um braço. — Coortiina.

Acima, a saída do portal foi envolvida por uma densa nuvem de gás verde, o que já era presumível ser o veneno da Patrona.

Tudo o que restava para as intrusas era a Manipulação de Ilusões; porém, como foi possível observar no Sojourner, onde Grete esteve limitada à área da arena, com a saída selada pelo veneno, a dupla estava, então, limitada ao interior do portal.

— Poodem… viir. — A floresta voltou a ficar obscura, deixando claro que quem a Preguiça estava chamando não eram as suas adversárias.

O galho acinzentado de uma árvore atrás menina balançou sozinho, contorcendo-se até revelar um animal de corpo alongado, que se manteve camuflado por todo aquele tempo: a Ave das Lágrimas Venenosas, Urutau, a Mãe-da-Lua.

Caindo como uma bola de ouro, porém, antes que causasse dano ao solo, assumiu a aparência de uma bela e misteriosa mulher de cabelos longos e brilhantes, a Protetora das Minas, a Mãe do Ouro.

Brotando do chão como uma mandioca, com uma forma esguia e cabelos que parecia feito de folhas, braços e pernas finas como raízes, uma Maniçoba.

Diferença das figuras femininas, o último era monstruoso e robusto, com garras que pingavam um veneno que evaporava a terra. O Jaraguá rosnou mais veneno para as intrusas; humanoide e animalesco, um corpo grande repleto de longos pelos.

— Maatem… — ordenou a Patrona.

Brilhante e elegante, a Mãe do Ouro logo se aproximou da Grete e, sem esboçar qualquer intenção ruim, tocou na bochecha dela e sorriu, com um certo ar de sedução.

— Ah, tão delicada e doce — elucidou a criatura, deslizando os dedos com a graça do ouro pelo pescoço da menina, o que fez Vínia expressar um “ei!” — Por que tinha que ameaçar a terra do ouro?

— Hã? — Afligida repentinamente por uma ardência em sua pele, Grete deu um tapa no braço da mulher dourada e se afastou com um salto. — Ah… Ai!

— Grete! — Vínia atacou a inimiga sem hesitação, antes que ela avançasse contra a sua parceira aflita; até conseguiu tirar o sangue dourado do peito da criatura, com a ponta da sua lança, mas… — Huh?

O céu, que já estava sombrio, perdeu ainda mais da sua luz, tomado pela sombra animalesca do pássaro Urutau, que passou por cima da lanceira e deixou um presente peculiar para ela.

Líquida, a lágrima da ave caiu na cabeça da Vínia, embora não parecesse ofensiva num primeiro momento, logo a menina sentiu ardor e tontura.

— Ah… Ah!!

Um chiado, acompanhado de um vapor, queimou a cabeça de uma garota e o pescoço da outra; uma tortura venenosa que as deixou entregues a qualquer ataque das outras duas criaturas.

As raízes da Maniçoba apertaram o pescoço da Grete, que se debateu, mas não escapou do estalo da quebra das vértebras da sua coluna cervical.

Já as garras afiadas do Jaraguá foram mais diretas e dividiram o rosto da Vínia em quatro pedaços iguais, jogados sobre o solo tingido de vermelho e cheirando a ferro.

— Obrigaada… — Fazendo a Píton de travesseiro, indiferente à chacina à sua frente, a Preguiça fechou os olhos, pronta para tirar um cochilo. — Soniinho…

— Nem tão cedo, capeta — anunciou a voz de Vínia, o que levou a Patrona a levantar as pálpebras a tempo de ver os cadáveres das adversárias virando fumaça. — Acha que se livrou do medo?

— Huh? — Passando a ter uma sensação ruim, a pequena preguiçosa caçou as duas garotas escondidas pela ilusão; invisíveis, a Patrona falhou em achá-las. — Chaato…

De qualquer modo, Vínia e Grete estavam limitadas pela área do interior do portal, bastava inundar tudo ali com veneno corrosivo, para derreter até escudos de energia.

— Samaeel…. — A píton acatou a ordem da sua dona e logo preparou a baforada de veneno, quando a voz de Grete soou primeiro:

— Ilusão do Medo Profundo!

— Hã? — As pálpebras da pequena e das criaturas pesaram. Era o perfil da Patrona querer dormir, mas aquela sonolência era estranha, era ruim. — Sa… ma.. el…

Falando em perfil, fazia parte da Academia de Batalha Absalon sempre orientar a formação duos de raças diferentes, certo?

Estava a pequena preguiçosa à beira de experimentar o mesmo horror que Trevor no Sojourner, a ilusão daquela que era parceira de uma híbrida do Bicho Papão.

Livre do Medo? Trívia Ignai foi mesmo ingênua e, como recompensa, ou melhor, como punição, o seu corpo físico ficou sem qualquer proteção enquanto a sua mente contemplava o teto de um quarto infantil.

As paredes rosas, os ursos de pelúcias organizados em uma estante, até a maciez dos lençois da cama ainda era familiar, bem como a voz da mulher que abriu a porta, chamando a menina a acordar.

— Olha, acordou cedo hoje — expôs a recém-chegada, levando a mão direita fechada até a boca e, então, apontando, discreta, para a filha. — Já sei. É um dia especial hoje?

A pequena, sentando-se, balançou a cabeça para os lados com um “Hum! Hum!” sem traços de sono, incomum.

“Acordei cedo?” Passando a observar as suas mãos abertas com atenção, Trívia as fechou. “Acordei cedo, então hoje…”

— Bem, como eu pensei que você iria dormir por mais tempo, o café ainda não está pronto — explicou a mãe, virando-se em direção à porta — acho que você pode se arrumar com mais calma hoje.

— Não! Hoje, não! — A criança chegou a quase dar um salto da cama e se agarrar às pernas da mãe. — Hoje… chegar cedo.

— Então é um dia especial?

— Er… Sim, é! — Frente à expressão pouco convencida da mulher, Trívia pensou em qualquer desculpa que pudesse dar. — Preparar um trabalho… pra outra aula.

— “Outra aula?” Aham, sei. — Virou-se de novo e se despediu, entrando no jogo da menina. — Então se arrume logo. — Saiu, mas ainda fez sua voz soar: — E depois quero saber que tipo de trabalho é esse!

— Eu me ferrei. — Olhou para o lado, em decorrência do hábito. — Né, Sama…? — Arregalou os olhos devagar ao notar a ausência da píton. — Samael…

Ainda com o pedaço de uma torrada na boca, Trívia caminhava ao lado da mãe enquanto inventava vários pontos sobre o dito trabalho; a mulher ainda parecia desconfiar do discurso, mas as duas tinham saído cedo, era o que importava.

Desde que o seu pai havia se aventurado com uma moça mais jovem, pego no ato com a amante na sua casa, na sua cama; Trívia nunca mais havia visto ele direito.

A vida a sós com a mãe a levou a aprender a se virar desde cedo; sem precisar de alguém para tomar conta dela enquanto a mãe trabalhava, já economizava um certo dinheiro; o difícil era acordar cedo, só.

“Chegando. Que bom”. Tendo a fachada da escola à vista, Trívia pôs a mão sobre a pulseira em seu pulso esquerdo, onde o material escolar estava guardado.

Em paz, a menina respirou aliviada, de modo que tardou a reparar que a mulher interrompeu os seus próprios passos e acabou por ficar um pouco para trás.

— Está satisfeita agora, minha pequena dorminhoca? — Com uma voz mais distante do que deveria, a mãe continuou a pergunta: — Você conseguiu o que queria?

Foi então que, antes que a pequena Trívia se virasse, os relinchos dos cavalos de uma carruagem descontrolada fizeram as suas costas se retraírem, principalmente quando ouviu o impacto brutal do acidente.

— Mãe! — Se virou no susto, dando de cara com dois cavalos machucados no chão, uma carruagem quebrada e sangue, o qual era oriundo de um corpo feminino caído, pisoteado de modo que alguns dos ossos seus estavam expostos; a cabeça esmagada, difícil de reconhecer a vítima. — Mãe…

— Tudo bem, Trívia — manifestou-se a voz da mulher atrás da pequena, o que trouxe alívio a princípio; no entanto, se Trívia havia se virado, como a sua mãe estava nas costas dela de novo? — Estou bem.

— Hã? — Uma mão podre repousou sobre o ombro da menina, que moveu o rosto devagar, como se estivesse travado.

— Desta vez, estou viva. — Passando os olhos pelo braço cheio de vermes, Trívia vislumbrou o rosto. — Eu não fui pisoteada por aqueles cavalos, ao sair de casa numa hora ruim — explicou, com certo remorso na voz. — Só porque você dormiu demais.

— Eu… Eu… — O seu peito batia forte. O coração parecia estar saindo pela boca, talvez por isso o ar estava faltando nos pulmões. — Mãe… eu…

Mãe… Era difícil chamar aquele cadáver ambulante que se desmanchava na sua frente de mãe. Os globos oculares mal se seguravam nas órbitas e escorriam pelo rosto desfigurado, sem nariz.

— Você o quê? — indagou, curvando-se para a criança que tinha até os seus gritos congelados, assim como o corpo; os olhos lacrimejando. — Você está… aliviada?!

Com as criaturas em seus próprios pesadelos, o caminho para Vínia e Grete estava aberto. Desfeita a invisibilidade, bastava matar a Patrona e procurar a tal Pirâmide de Hórus sem mais obstáculos.

— Tudo bem. Pode deixar comigo. — Com a lança em mãos, Vínia tomou a frente para assassinar a criança, coisa que a sua parceira nunca teria coragem de fazer, mesmo se tratando de uma integrante da Perpetuum. — Eu ponho um fim a isso.

A algoz ficou de frente para a vítima caída e indefesa, enquanto Grete permaneceu atrás, com as mãos sobre o peito. Eram poucas as pessoas que tinham o privilégio de morrer fazendo o que gostavam, no caso da Patrona, dormir.

A lâmina da arma de Vínia deslizou pelo ar, descendo para o pescoço da menina, quando um “pow!” perfurou o ombro direito da lanceira e fez ela recuar um passo.

— Ai! — praguejou a moça. — Mas que diabos…?

— Fique longe dela — ordenou uma mulher de jaleco branco e óculos de grau, semelhantes aos da Grete, entre as árvores, segurando um revólver apontado para a lanceira. — Fique longe da menina, ou eu vou atirar de novo.


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