O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 3 – Arco 1

Capítulo 192: Vivo… de Certa Forma

— “Utilidade”? — Sophie vacilou no passo em direção às palavras que ouviu do amigo; pisou em uma das lascas do piano roxo que Raizel costumava tocar. — A gente… nunca pensaria assim de você.

O rapaz sentado virou o rosto para o lado, um tanto para baixo. Era fato que a Academia de Batalha nunca foi algo que ele poderia chamar de lar; só toleravam ele ali por uma utilidade que já não existia mais.

— Mesmo se só eu ficar aqui, ainda que parado… — Raizel contraiu a perna direita, aproximando-a do peito, apenas para ouvir o estalo das rachaduras em seu corpo. — A minha existência vai continuar a se despedaçar, de qualquer forma.

Se ousasse invocar a Espada do Fim dos Tempos outra vez, talvez ele até sumisse antes mesmo de empunhá-la, e o mesmo se aplicava aos Olhos do Todo-Poderoso.

Assim como Bestas Sagradas, Príncipes Infernais e Arcanjos, o Fragmento da Criação possuía uma fonte de energia infinita, o que já era difícil de suportar com um corpo físico, mesmo para um nefilim.

Com aquele corpo debilitado, beirando à ruína, tentar usar qualquer um dos seus recursos mais poderosos levaria ele a nada diferente de um suicídio.

Mesmo naquele momento, Raizel e o corpo de Petra só estavam de volta em Calisto por causa da consideração que Ophelia teve pela sua rival, e pela boa vontade da lolita gótica em tirá-los daquele espaço vazio.

— Me deixem descansar um pouco — pediu o nefilim, enquanto apoiava a testa no joelho próximo. — Com mais algum tempo, talvez eu consiga usar ao menos um Ato da Espada do Fim dos Tempos de morrer de vez. — Ouviu os amigos chegarem perto. — Façam bom proveito, quando a situação estiver ruim pra vocês.

Um para cada lado do amigo, Trevor e Sophie se sentaram, com as costas na parede, e encaram a visão desoladora daquela sala, do mesmo ângulo que Raizel a observou durante os últimos dias.

— Já está quase tudo pronto pra gente liderar um grupo para combater o portal de Stormhold — esclareceu Trevor. — É um portal no oceano, que nem aquele de Oprantis, contra o Pseudoleviatã.

Raizel abriu os olhos, enquanto o outro rapaz prosseguiu com o seu comentário.

— Ainda tínhamos um tempinho antes de sair, então pensamos em fazer uma breve visita ao nosso amigo. — Trevor aproximou um joelho do peito, assim como Raizel. — Já que ele parecia quebrado, literalmente.

— Puffs! — O do meio cedeu a uma quase risada. — Eu esperava esse tipo de piada ruim vindo do Klaus, nunca de você.

— Haha! — Sophie foi mais eficaz em liberar um pequeno riso. — Acabou que foi ele mesmo que pediu pra gente falar isso.

Infelizmente, alguém tinha que segurar as pontas enquanto Trevor e Sophie estavam ausentes da expedição à Stormhold.

— Ele sempre foi tão ruim em confortar alguém — indagou Raizel, agora com o rosto levemente levantado; ainda fitando o vazio da parede distante, à frente. — Parece que só sabe confortar a Eirin.

— Acho que ele só não sabe direito como confortar você. — Trevor terminou de puxar o outro joelho e abraçou os dois, com uma voz que beirava o silêncio. — Sendo sincero, acho que nem eu sei.

Embora nunca tenha sentido a mesma dor, Trevor já havia passado muito perto disso, principalmente quando ele e Sophie caíram no Salão do Sadismo da Luxúria.

Com a morte de alguns duos na invasão que ocorreu no Sojourner, incluindo Top Rankings, a ideia de que Sophie poderia morrer na expedição à Stormhold era um pesadelo, ainda que ele estivesse ao lado dela… Raizel estava ao lado da Petra.

— Ela é a reencarnação da alma da Karen. — Quebrando a imersão do amigo em seus pensamentos, Raizel cedeu o peso das suas costas à parede. — Eu deixei ela morrer de novo, sabe? Eu… de novo…

De fato, ele nunca serviu para proteger algo, nunca foi capaz de salvar alguém; quando aparentava fazer algo do tipo, na verdade, ele só matava o assassino; a pessoa sobreviver não passava de uma simples consequência.

— A Petra ainda tá viva — mussitou Sophie, uma vez que Trevor ficou sem palavras. — De certa forma.

— Eu também estou vivo. — Raizel fitou as rachaduras em seu corpo, o cronômetro do fim da sua existência. — De certa forma.

Graças à interferência do Guardião dos Céus, quando o Duplo Arco Celeste envolveu a Petra e se desfez em seu último ato de proteção para a garota — as Lágrimas de Ziz — ela ficou em coma.

Assim como Raizel, Petra estava com rachaduras por todo o corpo. Mesmo com o esforço de Ziz, a existência da garota estava sofrendo gradativamente os efeitos da Lâmina da Fome de Belzebu.

A interferência de Ziz, frente a um Príncipe Infernal, passou longe de custar pouco. Ao derramar suas lágrimas, o Guardião dos Céus pôs sua própria existência em jogo e ficou mais do que debilitado, vulnerável.

Aquela gloriosa águia não sairia do seu Domínio Superior nem tão cedo, nem se quisesse; e, mesmo assim, tudo o que conseguiu foi adiar o fim da menina.

— Eu sei, mas… — Sophie mordeu os lábios, encolhida. “Mas…”

Se nem mesmo uma Besta Sagrada, uma criatura da décima dimensão, foi capaz de reverter o efeito da lâmina que engolia a existência da Petra desde a sua origem, o que uma simples Sophie poderia fazer?

— Tem que ter alguma coisa que a gente possa fazer — falou a menina do trio, mais para si mesma. — Tem que ter.

Raizel fitou o chão. Se os seus Olhos do Todo-Poderoso recriassem a Autoridade da Gula, ele poderia obter a Autoridade do Criador sobre ela, ainda assim, a imunidade só se aplicaria a ele.

— Qual é o estado do corpo dela agora?

— Bem ruim — respondeu Trevor, já que sua parceira se sentia mal só de lembrar a imagem da amiga na sala do hospital da Academia de Batalha. — Talvez nem reste uma semana inteira mais.

— Entendo… — mussitou Raizel. — Acho que pra mim também é o mesmo. — Embora ele desejasse morrer primeiro.

— A Valentina tá indo ver a Petra todos os dias — explicou Sophie, percebendo que o tempo que tinham disponível para estar ali se esgotava. — Mas ela e o Andrew também vão para o portal de Stormhold.

A garota e o seu parceiro se levantaram devagar e se prepararam para se despedir, mas, Sophie, ainda com algo para falar:

— Você deveria fazer uma visita… talvez.

Em silêncio, cabisbaixo, Raizel ouviu os passos dos outros dois se afastarem. Estava grato, porém, sem coragem para ver o rosto da parceira dele daquele jeito.

“Passam céus e terra” refletiu o nefilim, com o rosto entre os joelhos, em posição fetal “mas eu sempre acabo assim.”

Algum tipo de maldição, só poderia.

“Eu sempre volto para essa maldita posição”.

Sem os braços para abraçar as pernas.

Sentada em uma cadeira ao lado da cama de Petra, Valentina segurava a mão da amiga, um tanto mais trincada do que no dia anterior. As linhas azuis emitiam um brilho tênue, e as rachaduras, apesar da aparência, não ressecavam a pele.

Ao lado da garota de cabelo rosa, Andrew observava a cena de canto de olho, calado; aquela cena que se repetiu por dias e  dias e, ainda assim, nunca perdeu o ar melancólico.

Aquela expressão no rosto de Valentina, a ponto da garota se desfazer em lágrimas que Andrew sabia que não seria capaz de enxugar. O silêncio da Petra inconsciente deixava ela tão perto, mas tão distante.

— Ela vai ficar bem, né? — indagou a moça, deixando o parceiro com uma resposta ruim entalada na garganta. — Ela vai acordar, né? — Valentina abaixou a cabeça, e algumas mechas do cabelo cobriram seu rosto.

Ela já sabia a resposta.

Três batidas leves soaram do outro lado da porta, o que levou a menina a olhar em direção ao rapaz que girou a maçaneta e parou após dar o primeiro passo para dentro.

As íris verdes fitaram a garota sobre a cama, com pesar, quando então se voltaram para Valentina, que desviou o olhar, sem a coragem de encará-lo diretamente.

“Esse é…” Embora nunca tenha se encontrado com aquele homem, Andrew jamais confundiria os clássicos cabelos prateados do atual chefe da família Lavour e, também, irmão mais velho da Petra. — Caspian?

— Perdoem a minha aparição repentina — desculpou-se o jovem rapaz, ao aproximar-se do dos outros dois. — Se passou um belo tempo desde a última vez em que nos vimos, Valentina.

— Caspian… — mussitou a garota, mordendo os lábios e amassando o tecido da sua saia, com as duas mãos. — Me desculpa, Caspian… — As lágrimas contidas começavam a cair, agora diante do velho conhecido. — Se eu tivesse impedido ela de se envolver com aquele cara…

— Onde o parceiro dela está? — questionou o recém-chegado; por onde sua visão podia alcançar, não havia nenhum traço de Raizel, aquele que mais deveria se fazer presente e que Caspian imaginou que encontraria ali. — Soube que os dois estavam namorando.

Valentina balançou a cabeça com movimentos negativos, mas foi Andrew a responder:

— O Raizel tem ficado na residência dele. — O Visitante franziu a testa, já imaginando o restante da fala do parceiro da amiga de infância. — Ele não saiu de lá nenhuma vez.

— Eu sei que pode parecer um pouco rude da minha, dado o momento — pediu Caspian. — Vocês poderiam me dar um tempo a sós com a minha irmã?

Valentina se encolheu em seu canto. Caspian estava expulsando eles com amargura, apesar do modo refinado de falar? Só podia estar. Foi ela que deu a ideia da fuga da Petra para a Academia, o que resultou na morte da irmã dele.

— Imagino que tenham muito o que colocar em dia — respondeu Andrew. — E nós também temos um portal pra fechar ainda hoje. — Ofereceu uma mão para a garota sentada. — Vamos, Valentina?

A parceira tomou a mão dele e se despediu, com o rosto praticamente no chão, quase grudada no Andrew, ou o mais distante que ela podia de Caspian.

Sozinho com a irmã, o rapaz assumiu o lugar de Valentina na cadeira e observou a Petra. Mal via a hora em que poderia reencontrá-la. Depois que sua irmã retornou do treinamento com Raizel, ela mal teve tempo e já teve que participar do Sojourner.

— Imaginei que você me faria ao menos uma pequena visita — sussurrou. — Mas em que posição estou eu pra reclamar, certo? — Com os acontecimentos recentes na família, ele, como o chefe da casa estava bem atarefado. — Ah, sim. Eu vou casar em breve, você ficou sabendo?

A irmã permaneceu apática à notícia que ela, em condições normais, ficaria super feliz e animada. Quem era a noiva? Como Caspian a conheceu? Quando as duas poderiam se encontrar?

— Amélia é o nome dela, uma moça maravilhosa, por sinal. — Um leve sorriso surgiu em meio às feições melancólicas. — Eu assisti a sua luta no campeonato. Eu estava torcendo por você, a Amélia também. Ela te achou incrível, eu… também.

Caindo de joelhos aos pés da cama, a cadeira em que Caspian estava sentado arranhou um ruído no chão. Ele estava a sós com a irmã, aquela que cresceu ao seu lado, já não havia necessidade de manter sua postura como chefe da família.

— Me perdoe… — choramingou, com o rosto nos lençois da cama. — Quando concordei em te ajudar a fugir de casa… — Que tolo ele foi. — Eu não queria… que acabasse assim.


❂ Contribuições pela chave-pix: ❂

79098e06-2bbf-4e25-b532-2c3bf41ccc53

InstagramDiscord ░ Twitter ░



Comentários