O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 2 – Arco 7

Capítulo 190: Os Meus Parabéns

Em seu Domínio, o Guardião dos Céus assistia Petra, que se atirava no campo de batalha como uma ovelha que entrava na frente de um lobo sanguinário.

De nada as suas súplicas serviram. Ainda que se ajoelhasse com o seu rosto em terra, aquela garota daria as costas para ela e iria auxiliar Raizel no suicídio duplo.

— Desde que aquele Arcanjo te entregou aos meus, eu me preparei para te proteger de qualquer coisa. — Ziz apoiou os cotovelos na mesa de chá e escondeu o rosto entre as mãos. — Eu nunca estive pronta para te proteger de você mesma.

Um pequenino pássaro pousou no ombro do ser de aparência exuberante, mas sem brilho nenhum que enfeitasse sua beleza.

— Piu-piu — consolou o pássaro, com uma lágrima em seus olhos, audível apenas para o ouvido de Ziz. — Piu…

— Pe… tra… — Raizel tentou se levantar, mas perdeu a oportunidade de fazê-lo no momento em que a garota se virou e o encarou; a visão da parceira dele logo desceu para os seus braços rachados.

— Desculpa, eu demorei muito. — Petra se abaixou e segurou as mãos do nefilim, sentindo um absoluto nada em contato com o tato das suas palmas. — Hã? — Voltou a fitar o cosmos nas íris do parceiro; belo, mas trêmulo pelas pupilas dilatadas ao extremo.

Por outro lado, o que Raizel notou na parceria não foi algo novo, mas ausência: sem runas, sem Ressonância; depois que a alma dele foi destruída, a ligação entre os dois havia sumido.

— Você veio mesmo — mussitou o rapaz, enquanto a figura de um demônio de quatro asas saía da fenda atrás da garota. — Mas talvez fosse melhor se tivesse continuado em um lugar seguro.

A menina deu uma pequena risada tímida.

— Você me protegeu tantas vezes, sabe? — Petra se levantou e ofereceu uma mão para o parceiro, mesmo sabendo que não a sentiria. — Me deixe proteger você ao menos uma vez, tá bem?

Raizel encarou aquela mão até que a segurou, tão calorosa, naquele frio abaixo de zero e, antes que se desse conta, ele já estava de pé de novo.

Palmas soaram, espaçadas entre si, vindas do adversário, que suspirou quando cessou o atrito das suas mãos grossas.

— Ah, que comovente. — Zebub estendeu sua mão esquerda, onde a Amálgama se manifestou. — Agora os dois podem… — proclamou, apodrecendo a neve do ar com a lâmina verde — morrer juntos!

Petra entrou em posição de combate, de imediato, enquanto Raizel sentiu o coração bater forte no seu peito; ele já havia perdido coisas demais ali.

O vento uivou frio entre os três.

Petra sentia um leve tremor em sua espada, não da friagem. Raizel mordeu os lábios e ficou atento, mas sem a coragem de manifestar a Espada do Fim dos Tempos de novo. Zebub sorriu, uma máscara.

“Maldita hora pra essa pirralha enxerida dar as caras.” No cenário anterior, ele poderia aproveitar a hesitação de Raizel para matá-lo. “Porcaria”.

Com Petra ali, se a garota corresse risco de vida, o nefilim nunca pensaria duas vezes antes de recorrer ao Juízo Final, mesmo que ele se destruísse no processo.

Para o desgosto de Zebub, a menina foi a primeira a atacar; ela apareceu em um instante ao seu lado e desferiu uma investida perfurante entre suas costelas.

— Idiota! — A lâmina da Bellatrix parou no tempo, que, junto à sua portadora e à neve ambiente, foram tragadas por Chamas Infernais, que brotaram do chão. — Entenda o seu lugar, pirralha maldita!

Diferente daquele nefilim, que possuía a Autoridade do Criador, Petra estava sujeita aos efeitos de qualquer Habilidade Inata de Zebub, não apenas as da Amálgama.

Nas Chamas do Inferno, a garota viraria cinzas.

— Então, já que voltamos ao um contra um… — Ao retornar o olhar para Raizel, Zebub notou a imagem do nefilim se desfazer em fumaça. — Huh?!

O corpo do avatar pesou, levando-o a cair de joelhos, enquanto o nefilim saía ileso das Chamas Infernais, tendo trocado de lugar com a parceira dele, e desferiu um chute no queixo do inimigo, que foi arremessado para dentro de outra rachadura espacial.

Acompanhado do ruído agudo do espaço quebrado, Zebub cuspiu sangue — o queixo latejando — e caiu no meio de vários cristais coloridos, que foram atraídos para cima dele pela força gravitacional.

— Que porra! — O demônio cortou na horizontal, com a Lâmina da Fome, não só os cristais mas também a própria gravidade. — Pirralha!

Foi então que a vastidão brilhou acima dele; um dourado na velocidade da luz, uma verdadeira Luz Celestial.

— Haja Luz! — recitou a “pirralha”.

O zunido divino engoliu o Príncipe Infernal da Gula, inundou-o com a purificação do Reino Celestial, o que fez o corpo dele arder como brasa incandescente na fogueira.

— Ahhhh! — Zebub recorreu à Amálgama, obrigado a devorar a purificação da Luz Celestial; sua pele fumegava e chiava, cheia de bolhas.

Rosnando ferozmente, o demônio fez jus a ser chamado de “cão”. O avatar negou o evento e se curou em um piscar de pálpebras, apenas para ser encurralado por uma onda de várias Bellatrixes, vindas de uma Dimensão Superior.

— Porcaria! — Fazendo o mesmo que a adversária, o avatar, com um movimento, bloqueou todas as múltiplas lâminas de Bellatrix com a Fome e a Podridão da Amálgama Antagônica.

A quantidade de rachaduras que se espalhou por aquela dimensão a tornou inabitável, um poço de Vazio Existencial.

“Essa desgraçada ainda tá evoluindo?!” O Haja Luz de Lucius, os ataques de Dimensão Superior do próprio Zebub, Petra pretendia replicar tudo o que já tinha visto, usando o seu próprio poder? — Tsc!

Uma quantidade incontável de Petras se fizeram apresentáveis e entraram, cada uma, em um portal esférico, com cada um dando para um universo diferente.

— Acha que vou cair nesse truque?! — Sem dificuldades para identificar a verdadeira, Zebub foi para o portal certo.

— Bem-vindo seja. — O avatar arregalou os olhos ao sair do portal e dar de cara com o nefilim, com o braço direito dele erguido e imbuído com Nether e Inexistência.

Indefensável e inescapável, o braço do nefilim desceu, fatiando Zebub de cima para baixo, rasgando o espaço, dividindo a realidade em dois pólos opostos.

“Impossível…” Sentindo a presença da garota atrás de si, o avatar nem precisava ter acesso ao futuro para saber que seria decapitado por uma arma que alcançava o décimo eixo dimensional. “Eu realmente posso cair pelas mãos desses dois?”

Impensável.

Inaceitável.

Raizel já nem necessitava recorrer mais à Espada do Fim dos Tempos. Aquele nefilim imundo teria seu final feliz: a filha, a família que tanto desejava ao lado da mulher que amava; o futuro dos seus sonhos.

Zebub, viveria na lama da vergonha: um Príncipe Infernal que caiu pelas mãos de uma Chave de Goétia fora de sua plenitude e um Fragmento do Fundador que nem sequer sabia o que ele próprio era.

“Eu sou Belzebu!” Abriu as duas metades da sua boca dividida, cheias de moscas, que se debatiam dentro delas, e urrou: — Eu governo o Terceiro Reino Infernal!

Raizel e Petra arregalaram os olhos ao ver o bater das asas do enxame de moscas destroçar todo o tecido do espaço-tempo; um zumbido infernal que fez os seus ouvidos zunirem até estourarem e sangrarem.

— Ahhh! — Zebub continuou a berrar um trilhão de Moscas Demoníacas e, de quebra, as embutiu com a negação dos conceitos de defesa e desvio. — Ahhh!

Raizel poderia revidar a investida sem qualquer problema, e era o que estava fazendo; mas Petra não possuía a mesma sorte e viu o seu corpo, mesmo protegido pelo Manto de Ziz, começar a sucumbir.

O Duplo Arco Celeste pulsou o seu brilho dourado, buscando negar a origem das Moscas Demoníacas, o que foi respondido pelo movimento veloz da Amálgama.

— Huh? — Um dos olhos da menina estouraram, e, com o olho são, ela pôde ver Zebub sorrir, depois de ter devorado a técnica de negação dela.

Raizel materializou uma série de espadas, mas todas quebraram antes de terem a chance de fazer algo contra o enxame, que recebeu um novo upgrade.

— Só morre de uma vez, porra! — Raizel manifestou e envolveu as Cadeias de Abaddon com Nether e Inexistência. — Zebub!

As Moscas Demoníacas foram elevadas a uma Dimensão Superior, causando dano por dentro e por fora, igualmente, com um único bater de suas pequenas asas.

Girando as correntes, como uma espécie de hélice, o nefilim usou a força de sucção para deletar o máximo possível daquelas moscas nojentas e reduzir a pressão sobre a parceira dele.

“Isso está mesmo em um nível que eu nunca imaginei alcançar.” Com um pouco de espaço para se curar e respirar, Petra vislumbrou o céu daquela dimensão, uma massa extensa de nuvens vermelhas. “Mas eu não me arrependo de ter vindo, Ziz”.

A garota apertou o cabo da sua espada.

Bestas Sagradas alcançavam dez eixos dimensionais, o famigerado 10D. Embora Petra soubesse que seria demais querer alcançar aquele nível de poder ainda naquela luta, a Bellatrix já estava em tal nível; não à toa, mesmo após elevar sua visão a 4D, ela tinha dificuldades de entender a verdadeira forma da sua própria arma.

“Mais rápido do que a luz. Mais rápido do que o tempo. Mais rápido…” Uma lâmina que passava por cima de toda a lógica do mundo. “Mais rápido do que a própria velocidade”.

Os olhos de Petra brilharam e, em um instante, todas as moscas desapareceram, engolidas pela gravidade de um quasar da décima dimensão, dando lugar a um som mudo ao ambiente antes cheio de ruído.

— Sério isso? — Ainda colando suas metades, Zebub se virou para a menina que flutuava, em êxtase, observando as nuvens. “Ela cortou o meu um trilhão de moscas, antes de sequer mover a espada?”

Aquela garota… se continuasse a evoluir tanto, poderia acabar se tornando um grande problema no futuro; no entanto, com uma lâmina preta atravessando seu peito, Zebub jamais iria presenciar isso.

— A-Argh! — Com dificuldade, o avatar virou o rosto para trás a tempo de ouvir Raizel entoar “Espada do Fim dos Tempos, Quarto Ato”. — Você enlouqueceu, idi…?!

— Juízo Final. — Com o corpo de Zebub travado, sem permissão para fugir, as Chamas do Fim dos Tempos cremaram a realidade em volta, reduzindo-a a cinzas, reconstruindo sua existência sem a presença do Avatar da Gula.

Ofegante e trêmulo, Raizel soltou a arma. As rachaduras em roxo-cósmico se espalharam ainda mais pelo corpo dele; alcançaram todo o ombro e boa parte do peitoral; a carne caía e se descascava como cristal, sumindo no ar.

— Ahh… — As mãos do nefilim não cessavam de tremer; quanto mais as mexia, mais se despedaçavam; se as fechasse, os dedos poderiam se quebrar. — Aca… bou…

Como uma estátua rígida, Raizel mexeu apenas a cabeça, em direção à sua parceira, onde deu de cara com uma haste longa virando partículas de luz negra, assim como a lâmina amarelada cravada na barriga de Petra.

— Hã…? — Como pôde ter esquecido? Como pôde ter deixado de sentir falta da Amálgama Antagônica em um possível contra-ataque de Zebub? — A Fome…

Raizel caminhou devagar pelo ambiente, que começava a se quebrar todo, em virtude da investida final de Zebub, um ataque que não visava o corpo de Raizel.

— Petra… — A garota se manteve imóvel, sem reação ao seu chamado.

O Duplo Arco Celeste se expandiu. Raizel parou; os seus braços estalaram com a perda de mais algumas lascas. A Proteção do Guardião dos Céus envolveu a garota, mas logo ondulou e se quebrou junto ao desaparecimento do Manto de Ziz.

— Petra… — Um vazio escuro foi tudo o que sobrou para que o nefilim caísse de joelhos ao lado da garota que, assim como ele, tinha seu corpo se enchendo de rachaduras, porém amareladas, como a lâmina que a atingiu. — Responde… Petra…

Silêncio.

Só silêncio.

Trêmulo, Raizel quis segurá-la nos braços que, começando pela existência de suas mãos, se desintegraram em partículas roxas antes de alcançar a garota pela última vez.

Os Olhos do Todo-Poderoso tricaram os arredores do rosto do nefilim e sumiram do palco das íris vazias de Raizel. Os olhos que, por mais que se recusassem a aceitar o que viam, pouco a pouco ficavam úmidos.

— Eu perdi os meus dois avatares — anunciou a voz do Belzebu verdadeira, desde os domínios do Terceiro Reino Infernal. — Mas você perdeu algo igualmente precioso.

Mudo, Raizel nada respondeu.

Encolhido, com o rosto trincado, na barriga da garota, a boca do nefilim se abriu em um soluço; as lágrimas, agora livres, mancharam o modelo de uniforme que um dia ele fez questão de entregar para Petra.

Por um longo tempo, Raizel se culpou por ter sido arrogante demais, por Karen ter morrido porque ele não usou tudo o que ele tinha à disposição naquela época.

Tudo e mais um pouco.

O que tinha e o que não tinha.

Ele entregou tudo naquele dia, contra Baal e Zebub. Então, por quê? Por que o resultado continuava sendo o mesmo? Por que suas mãos falharam em alcançá-la e tocá-la no fim?

Em meio a soluços no vazio obscuro, o choro de um nefilim se fez presente.

— Acho que podemos dizer que você empatou com um Príncipe Infernal. — Algo impensável para qualquer outro ser na Criação. — Você tem os meus parabéns… moleque.



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