O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 2 – Arco 7

Capítulo 178: Riel

Tudo não passava de escuridão. O cansaço em seu corpo era notável no abrir vagaroso das pálpebras, pouco a pouco iluminando a visão.

— Huh… — Uma voz infantil e sonolenta soou sobre o peito de Raizel, junto ao movimento de um corpo pequeno.

De olhos abertos, ainda turvos pelo descanso imprevisto que acabou tendo no sofá da sala, o nefilim reconheceu o habitual teto escuro que ele costumava usar em casa.

Mas o que mais chamou a atenção foi o cabelo prateado, bagunçado, da criança que começava a acordar; ela bocejou um “ahh!” antes de deixar o rostinho cair sobre o peito dele de novo.

Com esforço, a menina levantou-se um pouco, coçou seus olhos com uma das mãos minúsculas, quando então os abriu na direção de Raizel.

Roxos… Iguais aos olhos de puro Nether dele, um magnífico par de ametistas.

— Dia, papai — bocejou a pequena.

— Dormiu bem? — Bagunçou um pouco mais o cabelo da menina, que fez um biquinho birrento, balançando a cabeça para os lados enquanto soltava um “hum!” — Riel.

Mais ao canto, a risada alegre da garota que Raizel mais adorava ouvir interrompeu o momento matinal de pai e filha.

— Enfim vocês acordaram. — Petra os observou com doçura, sentimento que se fazia presente no rosto radiante de sua criança. — Quase deixo a Riel faltar à escolinha hoje.

A criança brilhou com a ideia, nem o sono resistiu e sumiu.

— Mas deixou a gente virar a noite neste sofá. — Ainda deitado no dito móvel, Raizel fingiu um certo desconforto. — Que cruel da sua parte.

— Estavam tão bonitinhos dormindo juntos — ressaltou a moça, com um tom nostálgico. — Eu nunca teria coragem de interromper a cena linda de vocês dois.

O nefilim sorriu e deixou a cabeça cair sobre o sofá, dando-se por vencido; já a pequenina, que se levantou e correu até a saia da mãe, retomou o assunto antigo.

— Faltar escolinha. — Fitou a mãe, com os olhinhos cheios de dengo, uma arma fatal; tinha que ser filha daquele Raizel. — Posso?

Apesar de sua vasta experiência no campo de batalha, Petra se viu à beira de cair nas artimanhas de uma criancinha esperta.

O pior foi evitado quando Raizel chegou perto das duas e pegou a menina pela cintura, suspendendo-a no ar.

Desesperada, Riel se debateu sem o chão sob seus pés; já podia imaginar como o querido pai dela iria estragar seu plano vil.

— Deixa que eu arrumo ela. — Deu um beijo na testa da esposa e seguiu com a refém suspensa pela cintura. — Estou ansioso para ver o que é o café de hoje.

— Haha! Pode deixar.

Diferente de Riel, que soltava gritinhos e se debatia, já tendo conhecimento da água fria que a aguardava, Petra sorriu, feliz.

— Eu fui presa! — E logo seria punida com um belo banho gelado. — Socorro, mami!

— Sem essa. — Raizel prosseguiu em sua missão de falso vilão. — Em hipótese nenhuma, você vai perder aula porque eu te deixei dormir no sofá.

Pensar que o pai que a abraçou com calor e carinho durante o sono seria o mesmo a levá-la para o frio de um banho matinal… E por que sempre tinha que ser frio?

— Hum…! — Ainda fazendo beicinho, Riel tentava ficar no mais puro silêncio, enquanto o pai terminava de secar seu cabelo, o que ela falhava com fofura. — Hum…!

Parou de fazer birra quando percebeu que Raizel concluiu o trabalho em seu cabelo e que foi ele a ficar calado e de cabeça baixa.

— Papai?

O nefilim arregalou as vistas.

De volta para o momento que ele vivia, deparou-se com um semblante preocupado da menina no reflexo do espelho.

— Tá bem, papai?

— Ah, sim. — Encarou a projeção da menina de uniforme escolar no espelho com um pouco mais atenção. — Você realmente se parece mais com a sua mãe do que comigo.

E aquilo era um alívio.

Mas Riel ainda era muito nova para ouvir a interpretação por trás daquela fala, fosse pela dificuldade que teria para entender direito ou talvez por acabar não fazendo muito bem para ela.

O que a pequena entenderia se ouvisse que o pai não queria que eles dois fossem parecidos?

— A mamãe é linda! — Abriu os braços, orgulhosa de ser a cara de Petra.

— A mais linda do mundo. — Raizel segurou a vontade de bagunçar o cabelo da menina de novo. Se tivesse que ajeitar tudo outra vez, ela certamente perderia o dia de aula. — Vocês duas são.

Foi então que a moça em questão limpou a garganta atrás deles, um tanto envergonhada, apesar de contente, diga-se de passagem.

Raizel e Riel se viraram para a Petra, na entrada do quarto. Ela ficou satisfeita em saber que a filha estava pronta para a escolinha, mas como aqueles dois chegaram naquele tipo de assunto?

— O café já tá pronto. — Disfarçou a falta de jeito com o tema e abriu passagem para que pai e filha fossem para mesa da cozinha. — E a Valentina vem te buscar daqui a pouco.

— Uhum! — Riel saltou da banqueta em que estava sentada e foi a primeira a se prontificar para a refeição. — Comer, comer! Comer, comer! — cantarolou. — Comer, comer, pra poder crescer.

Como havia um portal de Rank S marcado para Raizel e Petra naquele dia, seria Valentina a responsável por levar, buscar e cuidar da pequena até seus pais voltarem.

Lembrar da programação daquele dia levou Raizel a fitar o chão.

Acima, no céu, o portal circular brilhava em dourado e cativava a alguns duos por sua beleza e a outros pelo perigo iminente.

Raizel e Petra flutuavam sozinhos no alto. Tudo estava pronto, e, como esperado, a passagem para o outro lado foi liberada.

— Sempre bate saudades da Riel quando vamos entrar em um portal. — A moça olhou para trás, na direção da Academia de Batalha Ziz, onde sua filha já deveria estar em sala de aula. — Rai?

Diferente do habitual, Raizel não criou nenhuma arma ou se preparou para a missão; até tentou, mas a vontade sempre acabava por falhar no fim.

— Está muito em cima, eu sei disso. — O nefilim encarou uma última vez a ameaça que aquela estrutura espacial representaria para qualquer um. — Você poderia cuidar deste portal sem mim?

— Hã?

No nível em que se encontrava, Petra certamente seria capaz de fechar um portal de Rank S sozinha; no entanto, algo a incomodava, e isso se encontrava nas feições de Raizel.

— Você parece meio pra baixo desde hoje cedo. — Raizel fitou a parceira, naquele ponto esposa, um tanto surpreso. — É claro que eu ia notar.

— Eu só… — confessou parte do que o assolava enquanto se virava em direção aonde estaria a filha. — Eu gostaria de passar um pouco mais de tempo com ela.

— Mas a Tina já vai…

— Eu quero buscar a Riel na escolinha hoje. — Petra podia sentir peso naquelas palavras, e pelo que conhecia de seu esposo, tinha uma breve noção do que o incomodava.

— Tá bom. — Deu um abraço e um carinhoso beijo de despedida no parceiro. — Agora eu vou ter que sentir saudades de vocês dois.

Raizel conseguiu sorrir, discreto.

Daquela forma, ele acabaria por se sentir culpado.

— Farei o meu melhor pra te compensar por isso depois.

Ao lado de Ethan Strough, filho do Andrew e da Valentina, a pequena Riel balançava as pernas ansiosas, sentada num banquinho em frente à escola.

Seus pais nunca demoravam muito para retornar do trabalho, e era divertido passar alguns dias com a tia Valentina, embora também fosse muito bom visitar o Cédric na casa do Trevor e da Sophie às vezes.

Por falar no menino de olhos verdes e cabelo azul-escuro, quase preto, como o do pai, Cédric acenou com modéstia para ela, ao lado de Sophie.

A mãe do menino arregalou as vistas ao perceber a figura que apareceu atrás das duas crianças e assustou Riel; a menina deu um pulinho.

— Surpresa? — indagou Raizel, pondo um joelho no chão, para ficar numa altura mais próxima à da filha. — Ou tá com medinho?

— Papai… — A menina olhou meio emburrada na direção dele, o que só durou um breve segundo. — O senhor já voltou?

Riel virou o rosto para os lados em busca da mãe, mas sem sucesso algum. Raizel pôs uma mão sobre o cabelo dela e manteve o foco da pequena nele.

— A Petra ainda vai levar um tempinho pra voltar. — Deixando-a assimilar as ideias como podia, voltou sua fala para Ethan. — Diga a Valentina que eu vou deixar a Riel lá mais tarde, certo?

— S-Sim, senhor. — Fosse pelas histórias que sua mãe contava ou pela presença que o pai da amiga carregava, Ethan sempre tremia, quando perto de Raizel. — Eu falo pra ela.

Guiando a filha pela mão, os dois foram se afastando um pouco do menino, que começava a respirar com calma de novo.

Após um tempo de caminhada, Riel puxou assunto, principalmente sobre a mãe, a que Raizel respondeu de forma superficial.

— Me deixaram sair mais cedo, por assim dizer. — Vendo que a menina parecia meio descontente com a resposta, apelou para a tática suprema. — Quer ir no meu ombro?

— Uhum! — Balançou a cabeça para cima e para baixo antes que o pai acabasse por mudar de ideia, caso ela resistisse. — Sim, quero, sim.

Raizel se abaixou para que ela pudesse subir. Riel podia ser baixinha, mas nos ombros do pai ficava gigante.

— Uooou! — Quando Raizel se levantou, ela se segurou firme, sentindo o céu cada vez mais perto de si, até o vento parecia mais gostoso. — Papai, cê é um poste.

— “Um poste”, é? — Agora sim ele já tinha sido chamado de tudo no mundo. — Se segura bem, viu? — Deu o primeiro passo. — Se você cair, o chão te pega.

— Eh?! — Riel agarrou o cabelo do pai com força, o que arrancou um “ou!” dele. — Disculpa.

— Tudo bem. — Fixou as mãos nas pernas dela, como se fossem o cinto de segurança, e seguiu caminho. — Eu vou caminhar com cuidado agora.

Riel se tranquilizou ao ver que o pai cumpriu o que prometeu, coisa que era característica dele. A pequena pôs as mãos nos fios de cabelo roxo de Raizel, com zelo e apreciação.

Seu pai estava longe de ser tão vaidoso quanto o tio Klaus, mas, talvez pela sua natureza divina, tudo na aparência dele poderia ser chamado de “celestial”.

— Hum… — Era meio difícil de entender ele.

Carinhoso e zeloso na forma que a tratava naquele momento; rígido e inflexível na hora de enfiá-la debaixo de um choveiro frio, isso só pra mandar ela pra escola.

Mas, em meio a tudo, se Riel tinha certeza de algo era que seu pai a amava de verdade.

— Er, papai… Eu gostei da aula. Foi bom.

— Oh! E o que aconteceu pra você dizer isso depois de chorar tanto pra ficar em casa? — Virou o rosto para o lado, em direção à área infantil de um parque, onde crianças faziam estripulias, algumas ainda com o uniforme da escola.

— A gente tava falando do Dia dos Pais. — A menina se inclinou com cuidado para frente, em busca de enxergar o rosto do nefilim. — Todo mundo ficou de fazer alguma coisa junto com o pai e apresentar no dia.

Cédric pensou em desenhar algo com Trevor e expôr, já que estava aprendendo desenhos com ele.

Ethan queria uma maquete de vulcão grandona, e Andrew ia ser o fogo da sua explosão.

Já Elysia estava certa de que iria ensaiar e apresentar uma curta peça teatral com Klaus, e se o pai fosse contra a ideia, ela iria chorar nos pés de Eirin, mas ele iria apresentar a peça com ela sim.

— E no que você pensou pra mim? — Raizel esboçou um risinho debochado. — Já tô até com medo.

— Num é ruim, não! — A menina fez beicinho, mas como o pai ficou atento ao seu silêncio, ela resolveu contar a ideia. — Eu quero fazer aquilo de tocar junto, tipo como o senhor e a mamãe fazem.

Um dueto musical.

Fazia sentido. Riel estava aprendendo a tocar violino com a mãe, assim como Petra aprendeu com a mãe dela.

— Sinto muito. — Raizel parou de caminhar e olhou para o chão. — É uma ótima ideia, mas…

— Que foi, papai?

Aquilo já estava baixo demais.

Mesmo antes de nascer, ele foi abandonado por Azriel, e sabia que, mesmo após tanto tempo aprisionado no Abismo sem Fim, aquele anjo o amaldiçoava com todas as forças.

Riel não tinha que ser igual a ele, fosse em aparência ou em trajetória de vida. Ela era uma boa menina; merecia ter o dueto que tanto queria e que seu pai estivesse lá por ela.

— Sinto muito por isso. — A menina pensou em falar algo, quando notou que uma lágrima escorreu da bochecha do pai seu até cair no chão. — Esse dueto…

A voz de sua filha o chamava, cada vez mais distante, pedia para que ele não chorasse. Se doía em algum lugar, eles iam pegar um remédio em casa, e a dor ia passar.

— Acho que eu não vou conseguir tocar com você… Riel.

Com o céu familiar de Calisto ao alcance de sua visão, o único olho bom de Raizel reconheceu sua derrota absoluta.

Mesmo com o colapso da Grande Muralha Hércules Corona Borealis e a extinção de seu Espaço Dimensional, o fim chegou.

A Espada do Fim dos Tempos caiu de sua mão destroçada; despencava das alturas como uma bela estrela cadente.

— A-Argh! — O nefilim cuspiu sangue sobre a asa demoníaca cravada em seu peito.

Tanto ele quanto Belzebu gastaram uma quantidade descomunal de energia na luta, mas apenas um dos dois possuía uma reserva sem fim ao seu dispor.

Esgotado, Raizel já não conseguia regenerar os braços e as pernas perdidos.

O buraco na barriga se recusava a se fechar, enquanto as entranhas insistiam em escorrer para fora dele.

— Ilu… são… — O rapaz realmente desejava que aquela visão fosse apenas uma farsa ilusória, embora já soubesse a verdade.

— Um futuro. — Curado até a última célula, Belzebu aproximou uma mão do peito miserável do nefilim. — Um futuro onde eu não me interessei pelo gosto das almas deste mundo.

Do corpo de Raizel para a palma de Belzebu, uma massa espiritual disforme era extraída com o mais belo sabor.

— Um futuro em que você vive. — Aproximou a alma do garoto da sua boca, e deixou a casca vazia dele despencar do alto. — Um futuro que nunca irá se concretizar.

Apesar de ter a alma devorada, o corpo de Raizel ainda existia.

A existência daquele moleque estava ligada ao próprio conceito de morte.

Enquanto houvesse vida, haveria morte; enquanto houvesse morte, aquele nefilim nunca morreria de vez.

Ou Belzebu acabaria com toda a vida, incluindo a sua própria; ou teria que destruir o Arcanjo da Morte, o Azrael; ou teria que…

— Devore, Amálgama.

A Lâmina da Fome fez seu trabalho e engoliu o conceito de morte nas redondezas, o que levou o que restava do corpo do moleque à desintegração total.

— E no fim, ninguém veio te ajudar, heim?

Observou o olhar vazio de Raizel virar um pó roxo brilhante, assim como todo o resto.

Uma poeira cósmica, como a imagem do universo, até sumir no mais absoluto nada.

— Mas agradeço pela refeição. — Lambeu os lábios, guloso. — Estava uma delícia.


Continua no Capítulo 179: Transmutador Vetorial

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