O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 2 – Arco 6

Capítulo 169: Contramedidas

Almas, assim como qualquer outra iguaria, possuíam os mais variados sabores e texturas; as dos recém-nascidos, puras, eram suaves ao paladar e apreciadas por grande parte dos demônios.

Um jovem rapaz pôs as botas de couro preto sobre a mesa e jogou o peso de suas costas sobre a cadeira pertencente a um dos renomados diretores das Academias de Batalha de Hervron.

— Os melhores pratos são aqueles que nós mesmos preparamos, não concorda, Percatuum? — interrogou o rapaz.

Para um paladar refinado, almas de bebês nada mais eram do que ingredientes brutos, que nas mãos de um excelente mestre cuca dariam vida ao mais belo, apreciativo e refinado dos pratos.

— O sabor de almas de nada me importa. — Em pé, de frente para a figura jovem que ocupava seu assento, o diretor da Academia Leviatã franziu a testa. — E pare de me chamar de Percatuum por aqui.

Mal havia retornado para a sua sala e já tinha se deparado com aquele projeto de adolescente rebelde usurpando sua cadeira e vandalizando sua mesa.

— Tá, tá, diretor Nabuco Donosor. — O rapaz deu de ombros para a preocupação do outro e continuou com a postura relaxada de antes. — Comigo aqui todos os seus problemas estão sanados mesmo.

Então, qual o perigo de usar o verdadeiro nome dele nas instâncias da Academia de Batalha? Para qualquer inconveniente, bastava dar um sumiço no ouvido curioso.

— Essa sua aparência de delinquente passa menos confiança do que você pensa. — O diretor se aproximou da estante de prêmios da sua Academia, onde, logo em breve, mais um novo troféu seria posto, o do Campeonato Sojourner. — Quem pretende intimidar com isso?

— Para lidar com um jovem problemático, só outro do mesmo tipo. — Logo ao seu lado, um grande espelho tomou forma. — Ou será que assim fica melhor?

Dando uns retoques finais na aparência, suas orelhas ficaram pontudas e um brinco de cruz invertida surgiu em cada uma.

Os olhos vermelhos, um contraste aos globos oculares negros, brilharam, famintos; vermelho e preto, assim como as cores que Raizel costumava usar.

Agora sim, ele estava a rigor para degustar da alma mais saborosa daquele planeta remoto. Restava apenas temperá-la com um pouco de desespero.

— Se você está trajado apenas para o garoto, devo assumir que tem a pretensão de deixar a Chave de Goétia em nossas mãos? — De semblante fechado, o diretor encarou o delinquente desde o outro lado da sala. — Você sempre soube do poder daquela menina, não foi?

Ter o Guardião dos Céus como adversário durante a iminente invasão em busca do Santo Graal poderia ser um obstáculo ainda mais inconveniente do que Raizel.

Principalmente se Petra alcançasse a plenitude de seu poder.

Em contraste à seriedade do diretor, o jovem delinquente maneou a cabeça e estalou os dedos da mão direita, fazendo uma pequena lolita gótica aparecer do nada no meio da sala.

Eh?! — Olhando de um lado para o outro, do requintado diretor para o jovem rebelde, Ophelia arregalou as vistas; e o pior de tudo, seus doces haviam sumido. — Quem de vocês, bastardos, interrompeu o momento da minha refeição? Digam!

— Essa piveta, a Chave do Retentor do Abismo, vai ser a contramedida para lidar com o Guardião dos Céus.

Ao ouvir aquilo, Percatuum quase deixou um dos troféus cair. Como poderia haver duas Chaves de Goétia no mesmo mundo?

Quão pequena era a chance de existirem sequer duas no mesmo universo? Poderiam ser 72 Chaves, mas a quantidade de universos era infinita.

— Ei, para de me ignorar, ô orelha de canivete! — A pequena apontou um dedo rancoroso para o delinquente sentado. — Tá achando que é quem na fila do pão?

— Baal — respondeu com um tom de voz mais sombrio, em contraste ao relaxado de antes — este é quem sou na “fila do pão”.

Ao escutar o nome dele, até Ophelia se calou e quem assumiu o controle da voz dela foi a entidade responsável por fazê-la cruzar universos até chegar ali, a qual sabia a merda que poderia dar se deixasse a garota lidar sozinha com aquele monstro.

— Estive atento à sua mobilização, senhor Baal — salientou Absalon, com o respeito que faltou quando se encontrou com Raizel. — Entretanto, sinto que nada posso fazer em minhas condições atuais.

— O filho do Azriel conseguiu colocar umas boas correntes em você, heim? — Baal gargalhou sem se importar com a força. — Ah, aquele moleque, vou te dizer.

Nem quando viu a possibilidade de um futuro em que Raizel forçava um Ritual Pactual para cima de Absalon, ele conseguiu acreditar no que seus olhos haviam lhe mostrado.

Mas, naquele instante, Baal tinha certeza de que a alma daquele moleque petulante seria um prato de entrada digno para agraciar o seu refinado paladar.

— Eu te ajudo com essas correntes, e em troca você faz um favorzinho para o meu amigo aqui, o que me diz? — Indicou o diretor, que rangia os dentes.

Do outro lado da sala, Percatuum amassou um troféu em suas mãos, sem nem perceber quando o fez.

Naquele ambiente cheio de imortais, ele era o único com prazo de validade.

Por outro lado, Absalon sorriu contente.

Deitada na cama, com o rosto repousado sobre o peito de Raizel, Petra mantinha suas pálpebras fechadas, enquanto as pontas dos dedos dele afagavam sua cabeça com uma delicadeza que restringia sua mente a apenas aquele momento.

Vestindo um shortinho colado e uma das camisetas do namorado, que obteve por meio de um furtou do bem, a respiração da garota estava baixa; mais um pouco de carinho, e ela dormiria naquela posição.

— Rai — ronronou, meiga e sonolenta; deslizou o rosto no peitoral, que subia e descia devagar, e inspirou o perfume cítrico de Raizel. — Vai ter problema por eu ter mostrado a minha Chave de Goétia?

Era bem do feitio dela se preocupar com aquele tipo de coisa, mas a resposta para a questão levantada era algo que Raizel tinha certa dificuldade para responder.

Por causa do poder do Guardião dos Céus, era certo que a Organização Perpetuum ficaria apreensiva; entretanto, interromper os planos de invasão e deixar Petra evoluir até a sua plenitude seria um tiro no pé.

— Você se tornou um obstáculo tão grande quanto eu, ou até maior, na visão deles — sussurrou, encarando apenas o vazio com um vislumbre prateado do cabelo de Petra, logo abaixo. — Esteja preparada pra tudo.

Se ela fosse eliminada antes de ativar a Chave de Goétia, havia uma chance de tirar o Guardião dos Céus de cena. Ao menos Ophelia, a maior ameaça, já havia sido deixada de escanteio por um tempo.

— Eu pensei em algo, mas deixe pra contar para os seus amigos só depois. — Com tantas coisas ruins naquele dia, pelo menos uma boa brilhou em meio a elas. — Talvez você seja capaz de usar a Negação de Eventos para impedir a morte futura do Andrew e da Valentina.

Hã? — Petra arregalou os olhos e perdeu o sono em um instante. — Isso é mesmo possível?

Todas as negações que Ziz fez na luta contra Luminas, ou foram de eventos que já tinham ocorrido ou que ainda estavam acontecendo; no entanto, até mesmo algo do futuro ainda possuía um início e um fim.

Por mais louco que parecesse para a garota, seria possível negar um evento que ainda nem tinha acontecido.

— Então, eu posso…

— Isso se você derrotar a Ophelia. — Petra suspirou pesado com o “porém” final. — Duvido que a Valentina aceitaria viver, se você morresse depois disso.

Sim, Petra sabia. Sua amiga só queria viver para sempre por causa dela, para que ambas continuassem unidas ao longo de infindáveis eras — coisa que Raizel falhou em conseguir com a Karen.

— Rai, eu… posso te pedir uma coisa? — Podia ser um pouco de inveja, ou só curiosidade mesmo, mas se a Karen pôde ter tido acesso àquilo, ela também queria. — Seu cabelo roxo… deixa eu ver.

Sentiu o peito de Raizel parar de respirar, enquanto ele ficou em silêncio; coisa rara de se acontecer com seu parceiro, algo que só ela via, e em momentos mais pessoais e íntimos como aquele.

— Eu sei que você deve ter seus motivos pra negar a sua aparência, mas… — Apertou a camiseta do namorado, seu rosto, no peito dele, fugia do contato visual. — Desculpe, mas esse seu “eu” de verdade, eu quero… conhecer também.

Mordeu os lábios, nervosa. Era óbvio que ela estava tocando em um ponto sensível, e Raizel até poderia ficar chateado com seu pedido invasivo.

Tudo bem se ele escondesse a sua aparência real das outras pessoas, mas por que dela também? Se existia alguém para abraçá-lo e acolhê-lo, seria ela.

“Fala alguma coisa.” Aquele silêncio já estava matando ela, ao menos até que os fios vermelhos, perto do pescoço, assumiram a coloração de um roxo reluzente e ondulado. — Huh?

Sem conseguir se conter, Petra afastou seu rosto e deu uma boa olhada no cabelo que ficou um pouco mais comprido, além das ondulações acentuadas e dos olhos de ametista, iguais aos de Alícia.

— Céus, que lindo — confessou antes que pensasse direito e ficasse com as bochechas rubras, por causa do sorrisinho que o safado deu ao ouvir aquilo. — Er…

Nem foi preciso argumentar contra; o sorriso de Raizel se desfez em pouco tempo; bastou se lembrar do motivo pelo qual ocultava aquela maldita aparência.

— Meu pai. — Se assim poderia chamar o desgraçado daquele anjo caído. — Dizem que eu fico parecido com ele.

Petra hesitou por um instante. Era inegável que tinha gostado do que viu, e ainda mais por seu parceiro ter mostrado, mas Raizel parecia um tanto abalado depois de tudo.

— Acho que é a primeira vez que vejo você chamando o Azriel de pai. — Engoliu em seco e tomou coragem de perguntar um pouco mais. — O que aconteceu entre vocês dois?

— Nada. — Apesar da resposta ser curta, não foi grossa. Raizel inclinou a cabeça para trás e encarou o teto do quarto. — Ele tentou fugir antes de nos conhecermos.

Condenado à escuridão eterna do Abismo sem Fim de Abaddon — o braço direito de Absalon — Azriel nunca teve a intenção de fazer algo pelo seu filho recém-nascido.

Assim como Raizel nunca o viu como pai, Azriel nunca considerou ele como filho. O que estava sendo gerado no útero daquela mulher era apenas o símbolo de sua queda: um pecado imundo.

— Mas e a sua mãe? — Petra segurou uma das mãos do parceiro, para dar força e consolo, ainda que fossem as dela que tremiam. — Por que nunca chamou ela de mãe também?

— Aquela mulher era só uma humana comum. Qualquer um sabia que ela morreria se eu nascesse. — Um corpo humano nunca suportaria o nascimento de algo como um nefilim. — Ela também sabia.

— Mas decidiu te ter mesmo assim? — A mão de Raizel ficou mole no meio das de Petra, ao passo que o semblante dele caiu. — Rai…

— Aquela mulher foi a primeira pessoa a tentar me matar. — Raizel cerrou os dentes e contraiu sua face, com uma dor invisível no peito. — E também foi a primeira… pessoa que eu matei.

Por tempos, durante sua infância — sua pequena era de trevas — um período que deveria ficar na escuridão, para que nunca mais fosse visto, ele teve um só desejo.

Se sua mãe foi a primeira pessoa que ele matou, seu maldito pai seria a última; então, depois de tudo, buscaria uma forma de pôr um fim àquela sua vida indevida.

Mas, naquele momento, com os olhos molhados de Petra direcionados a ele, Raizel já não queria mais se juntar aos outros Nefilins Primordiais.

“Anjos, demônios, até uma simples abelha foi criada com um propósito.” Acariciou a pele suave do rosto da namorada. “Nós, Nefilins Primordiais, nunca tivemos um propósito em nossas vidas”.

Como um erro, não passavam de criaturas sem sentido, existências vazias em si mesmas. Se conquistavam algo ou falhavam nisso, nenhuma diferença faria.

Desejar era fútil.

Mesmo assim, quando seus lábios se aproximaram dos de Petra, um desejo bobo surgiu: ele nunca pôde chamar aqueles dois de pai e mãe, mas…

Da outra vez — com Karen Necron — não passou de um sonho tolo, que parecia mostrar como seus desejos eram inúteis; mas, ao lado de Petra, talvez fosse possível formar aquilo que chamavam de… família.

Hã?! — Antes do beijo ser selado, uma forte ruptura acertou o peito dos dois, que arregalaram suas vistas ao constatarem a mesma coisa terrível. — Como…?

Sem explicações, o Ritual Pactual que eles tinham com Ophelia e Absalon havia sido rompido em um piscar de olhos.


Saudações, caros primordiais!

Mais um arco concluído e uma pequena pausa pra relaxar.

Espero que tenham curtido até aqui e nos vemos de volta no 1º de abril, com o início do arco final deste volume.



Comentários