O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 2 – Arco 6

Capítulo 168: Mentiras

O chão frio alcançou os pés descalços da jovem Inveja, mas nada forte o suficiente para a distrair ou sequer chegar a afetar a temperatura elevada de seu corpo suado.

De cabelos bagunçados, ela segurava uma pequena toalha branca em frente ao corpo despido. Ofegante, o rosto vermelho se recusava a acreditar no que havia feito.

— Yuunaa — ronronou, cheia de dengo, a gatinha em forma de Luxúria, logo abaixo dos lençóis do colchão d’água. — Volta pra cama. A gente ainda tem um tempinho, vai.

Lilith colocou o rosto para fora, os ombros ainda nus; com seus olhos tentadores, entoava um cântico hipnótico de sereia em forma de um doce e envolvente “vem”.

De pé, buscando manter distância, Yuna sentiu suas pernas bambearem; ansiava por retornar aos braços delgados da Patrona da Luxúria e de lá nunca mais sair.

Huh? — Espantou-se e interrompeu seus passos ao reparar que quase caiu na armadilha ardilosa de Lilith uma segunda vez. — O que foi que você fez comigo?

Ela nunca fez questão de se aproximar de Lilith mais do que o necessário, ainda que a outra sempre arranjasse um jeito de estar ao seu lado, perseguindo-a para cima e para baixo, escolhendo, quando possível, missões em conjunto com ela.

Então quando? Quando surgiu o desejo de se deitar com aquela garota? Quando Lilith se tornou tão irresistível aos seus desejos?

A declaração sobre querer fazer aquele tipo de coisas com ela, desde que a viu pela primeira vez, foram tão afrodisíacas assim?

— Fa-Fala alguma coisa! — inquiriu, suas unhas bem feitas apertando a toalha a ponto de rasgar. — Você colocou alguma coisa na bebida, no ar, no… no perfume, sei lá! O que foi que você fez?!

— Como eu vou falar algo se é você que não para calada? — Deitada de lado, apoiou o queixo em uma mão e deixou o lençol escorregar pelo seu corpo, mostrando mais do que devia. — Só pra deixar claro, aqui tá tudo puro e lícito.

— Então… — Apesar da pele exposta da companheira, os olhos de Yuna mal se desviaram do batom desbotado na boca de Lilith, resultado de seus beijos cálidos.

— Você só fez o que já queria fazer. — Presa no movimento moroso dos lábios luxuriosos da acompanhante, Yuna perdeu os argumentos. — Além disso — enfatizou Lilith — fazer com você foi muito gos.to.so.

Quase deixando a toalha cair de suas mãos trêmulas, coisa pela qual a outra torcia, e torcia muito, a Patrona da Inveja, com as bochechas rubras — se de raiva ou de vergonha, ninguém sabia — correu para o banheiro sem questionar mais nada.

— Me erra, Lilith, me erra! — Bateu a porta do banheiro atrás de si e se abaixou no primeiro canto que encontrou, abraçada àquele pequeno pedaço de pano branco. — Mentira, mentira, mentira. É mentira.

Ninguém naquela Organização Perpetuum prestava ou se preocupava com o que acontecia com os outros. Se voltariam vivos ou mortos, de nada importava.

Era assim que as coisas eram, era assim que as coisas tinham que ser; eles eram o mal, afinal. Então por que Lilith fazia parecer que era a visão dela que estava errada no fim de tudo?

“Ela não se importa de verdade com você, Yuna”, lembrava a si mesma; o rosto entre os joelhos agora gelados, sem o calor de Lilith em seu corpo. “Ninguém se importa”.

Com menos faixas curativas do que seu parceiro, uma vez que foi enviada para a enfermaria antes de sofrer algum dano muito grave, exceto as costelas quebradas e o buraco em sua barriga, que curou com o Vislumbre da Glória, Luminas observava o rapaz reflexivo na cama dele.

Enfaixado da cabeça aos pés, Lucius mantinha os braços cruzados em frente ao peito regenerado há pouco tempo pela parafernalha do corpo médico.

Se não fosse pela respiração mais pesada que o habitual, Luminas poderia imaginar que seu parceiro havia dormido sentado, já que até os olhos dele estavam fechados.

— Ei, Lucius — chamou-o com uma voz dengosa e meio triste — você vai ficar me ignorando até quando?

Hã?

— Tratamento de silêncio é tortura psicológica, sabia? — O rapaz, que até então parecia uma estátua petrificada, arregalou as vistas, de sobressalto.

— N-Não tem nada a ver com você — corrigiu-a, já imaginando as maluquices que poderiam se passar pela mente de sua parceira. — É só… coisa daquele cara.

Luminas riu; com a mão na barriga, caiu na gargalhada, o que fez Lucius ser pego com a guarda baixa em um primeiro momento e suspirar depois: havia caído em mais uma das tramóias daquela menina.

— Sério, você poderia parar com isso.

— Nem vem — negou com um balançar de cabeça para os lados. Ela adorava quando o namorado caía como um patinho nas suas brincadeiras. — E você tava bem distraído, nem deu pra evitar, sabe?

Lucius suspirou de novo. Ao menos com Luminas ao seu lado, ele poderia se distrair um pouco daquilo que Raizel havia dito antes do fim da luta, o que voltou a perturbá-lo quando bateram na porta.

Permissão para entrar concedida, e uma garota de longos cabelos roxos os comprimentou, preocupada com o bem-estar dos seus futuros ex-parceiros.

— Quem bom que vocês estão bem. — O estado físico de cada um foi a primeira coisa que Alícia sondou, embora soubesse que a maior dor estava em carregar o fardo de ficar na última posição do Campeonato. — Quando o Guardião dos Céus apareceu, eu fiquei com o coração na mão.

Hehe! Pois é. — Ao contrário do rapaz que desviou o rosto da direção de Alícia, Luminas brincou com a simulação de um corte em sua garganta. — Pensei que eu ia bater as botas naquela hora.

O bom-humor da garota múmia arrancou um sorriso dos lábios tensos da visitante, que ficou sem jeito quando Luminas deu uns tapinhas no colchão da própria cama.

— Deixa de ficar em pé — insistiu ao notar a resistência da amiga. — Senta aqui, vai.

Alícia permaneceu plantada igual a uma bananeira, ao menos até que a outra cruzou os braços e fez beicinho.

Aí não tinha mais jeito, ou sentava na cama ou sentava na cama.

De preocupada para assustada, Alícia ficou ao lado da garota, de frente para Lucius, onde Luminas aproveitou para abraçá-la, tirando uma lasquinha antecipada da despedida da amiga.

— Obrigada. — O sorriso alegre da visitante sumiu, substituído por outro um tanto mais abatido assim que dirigiu suas palavras ao rapaz. — Eu vi quando você me defend…

— Você vai mesmo abandonar a gente por causa daquele cara? — cortou a fala da garota, sem um pingo de anestesia.

Ainda sem encará-la nos olhos, aquele Lucius que a defendeu com fervor parecia ter sumido, substituído por um interrogador determinado a arrancar as respostas que queria da boca dela.

— Se vai fazer isso, ao menos nos diga o porquê. — Deformou os lençóis da cama entre seus dedos enfaixados. — O que rolou entre você e ele que te faz querer virar as costas para nós, seus amigos?

— Eu gostaria de poder contar, mas acontece que…

— Você é uma nefilim.

Os argumentos de Alícia travaram como um tijolo áspero em sua garganta, e um silêncio repentino reinou nas instâncias daquele quarto de enfermaria.

Lentamente, a garota abaixou a cabeça; assim como Lucius, que se calou após jogar aquela bomba. Alícia também não conseguia mais fazer contato visual.

— Que ideia de girico é essa, Lucius? Tá viajando na batatinha? — Luminas, abraçada a Alícia, então notou as feições caídas no rosto da amiga. — Pera aí, vocês… estão falando sério?

Alícia mexeu seus lábios, mas as palavras se recusaram a sair, faltava coragem para tal. Seu coração por pouco beirou uma parada cardíaca, o que ela agradeceria.

Nada a livraria da miséria de sua mentira. Ainda que perdesse cabeça e coração, ela retornaria à vida e seria obrigada a receber o desprezo e a aversão de quem um dia já foi um de seus amigos.

Segurou o soluço na garganta.

Já estava tudo acabado, sempre esteve. Foi ingenuidade dela querer fugir enquanto ainda podia manter as boas lembranças que construiu com aquelas pessoas.

Sem um lugar para ir. Sem um rumo para seguir. Sem amigos para retornar. Desde cedo, a vida sempre insistiu em querer apagar qualquer lampejo de felicidade que ousasse brilhar em sua frente.

— Me perdoe por isso — pediu Lucius, o que pegou tanto Alícia quanto Luminas com a guarda baixa. Aquele Lucius era mesmo capaz de pedir perdão a um nefilim? — A história se repete pra mim, heim?

Levantou seu rosto em direção ao teto, onde podia vislumbrar os dias em que a Longinus se manteve afastada dele por causa de sua personalidade inflexível.

Mais doloroso foi se lembrar de quando encontrou Raizel no primeiro dia do Sojourner, de quando falou que alguém como ele nunca deveria ter nascido.

Aquele “alguém como ele” estava bem ao seu lado na hora e o considerava como amigo. Pensar no quanto tais palavras poderiam ter machucado Alícia…

“O que foi… O que foi que eu fiz?”

Mais um pouco e, então, Alícia se afastaria dele pelo mesmo motivo que a Longinus o rejeitou por tanto tempo.

O maior problema era que, daquela vez, não havia nenhuma profecia para que os dois se acertassem e ficassem bem.

— O pedido de sair da Academia de Batalha Behemoth — retomou a palavra antes das meninas — cancele ele, hoje.

Hã? — Engasgaram em uníssono, as duas garotas. — M-Mas eu…

Lucius voltou a encará-la com empatia, e o pequeno coração de Alícia se aqueceu mais uma vez. Talvez, só talvez, ela já não estivesse mais tão sozinha naquele caminho árduo.

Ainda assim, de todas as Academias de Batalha, permanecer logo na Behemoth poderia ser arriscado, caso alguém mais soubesse sobre sua real natureza.

— Seu segredo, sua mentira, está tudo seguro com a gente. — Fitou sua parceira, ainda incrédula com a postura anormal dele. — Ninguém aqui vai abrir a boca sobre isso. Certo, Luminas?

— Mas é claro! Nós somos seus amigos. — A Garota deitou seu queixo no ombro Alícia e a abraçou, calorosa, pela cintura. — Pode contar com a gente, tá?

O peso do medo diminuiu sobre os ombros da jovem Nefilim Primordial, que sentiu seus pés flutuarem no chão. Sem notar, as palavras saíram fluidas pela sua boca.

— Eu vou ficar. — Chorosos, com inéditas lágrimas de alegria, os olhos de Alícia já falavam por ela mesma. — Eu quero… ficar… de verdade.

O corpo da pobre garota tremia entre os braços de Luminas, mas o coração batia seguro em seu peito.

Da mesma forma, um alívio incomum preencheu a alma de um tenjin que jamais pensou mentir pelo bem da existência vil de um nefilim.


Continua no Capítulo 169: Contramedidas

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