O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 2 – Arco 6

Capítulo 166: Garota Tola

Suas pernas tremiam, mesmo assim fez o possível para se manter de pé e realizar um comprimento decente àquele que poderia matá-la em um piscar de olhos.

— Saudações, bravo guerrei… — Assim que Karen se inclinou e segurou a barra de sua saia, a visão de Petra escureceu.

A garota cedeu de joelhos, sentindo seu corpo esfriar; o corte, que latejava em seu pulso, também estava longe de colaborar.

“Ela perdeu sangue demais.” Petra sabia melhor do que ninguém quantas vezes a garota havia repetido o procedimento do ritual de invocação. “Aguente firme, Karen”.

— Diga logo o que quer. — Indiferente à dor da moça, Raizel cruzou os braços e a inquiriu de cima. — Ou fez uma invocação apenas para agonizar aos pés de alguém?

— Perdão. — Do chão, engoliu em seco e ergueu os olhos pesados para aquele que seria seu Neblim. — Nós estamos no reino de Arcádia, no período de seleção de uma nova rainha.

Usou de todas as suas capacidades de síntese para resumir a explicação no mínimo de palavras possível, e, para a sorte de Karen, o rapaz parecia já estar habituado ao conceito de invocação.

— Eu sou uma das candidatas à sucessão, e preciso de um representante para lutar por mim nas batalhas.

— Serei direto, então me responda antes de morrer por falta de sangue. — Pôs um joelho no chão sujo e a encarou quase da mesma altura. — Você pretende que eu arrisque minha vida por uma garota que vai ficar segura me assistindo matar e morrer?

— Ao aceitar ser meu Neblim, se você morrer, eu também morro. — Seus lábios congelaram em seguida; tava na cara que ele iria recusar ao ouvir o restante. — E se eu morrer, você também morre.

Raizel abriu bem suas pálpebras, a única vez em que esboçou uma reação que não visava intimidar a pobre garota moribunda, já pálida, com as pupilas quase apagadas.

— Hah! Hahaha! — Se levantou ao escutar a melhor piada de toda sua vida. — Que porcaria de proposta é essa? Se queria que eu rejeitasse, por que me trouxe aqui?

Karen mordeu os lábios com força, e seus olhos arderam. Não bastava ser motivo de chacota para todos em seu próprio mundo, ainda tinha que ser humilhada por alguém vindo de fora?

— Para… — Apertou o tecido nobre de sua saia, molhado com a marca redonda de uma lágrima que caiu sobre ele. — Para de rir de mim! — Sua voz, trêmula, vacilou. — Por favor só… para.

E, por alguma razão, Raizel realmente parou. Calado, ficou imóvel enquanto a pobre moça se desfazia em lágrimas aos seus pés.

Cruzou os braços de novo e ativou as runas de seu rosto; passos cautelosos ecoavam baixo nos domínios daquela residência.

— Você possui uns funcionários bem esquisitos, eu diria.

— A minha família me deixou pra morar sozinha aqui. — Enxugou os olhos e voltou a levantar o rosto, deparando-se com uma marca vermelha na cara de Raizel, quase uma tatuagem tribal. — Só tem eu… aqui.

— “Sozinha”? — O que Raizel estranhou foi a mesma coisa que acendeu uma lâmpada obscura na mente de Petra. — Você não era pra ser uma Candidata Real?

— E qual o problema? — Fez um pouco de esforço e ficou de pé, só então se deu conta do problema que tinha em mãos. — Como assim “funcionários”?

— O que você é, uma garota tola?! — Deu um murro na barreira do círculo de invocação, que soltou faíscas, com o impacto. — Como não tem ninguém pra te proteger até antes dessa merda de Seleção começar, porra?!

Karen deu um passo para trás e, então, sentiu seu peito gelar. Aquilo só podia ser mentira, tinha que ser. Seus pais sempre a viram como um lixo descartável, mas…

Aquilo já era demais.

Se para Karen era difícil aceitar o que estava posto diante de seus olhos, para Petra aquilo parecia bem o tipo de coisa que a família Necron faria; afinal, ela viveu parte das memórias da pequena menina e recebeu o restante em sua mente, depois.

“Aquela gente abandonou ela pra morrer aqui…” A contragosto, Petra foi levada pelos passos cambaleantes de Karen, para fora do porão.

A vontade latejante de ir até a casa dos Necrons e dar àquela gente o que eles mereciam era de fazer os dentes rangerem.

“Família? Que família?!”

Era provável que os assassinos enviados naquela noite até mesmo estivessem sob as ordens dos Necrons — era o que Petra presumia —  mas o mandante que se passava pela cabeça de Karen era outro.

— Natasha… — Impôs o peso do seu corpo na parede mais próxima.

Junto a ela e sua amiga Christine, Natasha também tinha sido selecionada pela Lei do Mundo e, com certeza, era quem mais ansiava por ter a sua cabeça empalada.

— Corre… Corre…

Fracas, suas pernas mal a respondiam e caíram assim que um tremor cataclísmico vindo direto das profundezas do porão fez tudo ao redor balançar de cima a baixo.

— Desde quando tem terremotos nessa porcaria de reino?! — reclamou a voz grave de um grupo de sombras que, no final do corredor, se aproximava da garota. — Era pra ser só um trabalho fácil.

“Foge, foge, foge!” Ao contrário de Petra, Karen começava a aceitar que seu fim se aproximava ao som dos passos dos assassinos. “Você precisa fugir!”

Anêmica, mal tinha forças para reagir.

Rota de fuga? Nunca existiu.

Fechar o pacto com o Neblim? Estava na cara que ele nunca aceitaria lutar por uma inútil como ela… assim como qualquer um.

Invocar outro? Não havia tempo, sangue ou eficiência suficiente nela para isso.

Quando o grupo mascarado e de roupas pretas a avistou ao longe, Karen teve certeza de que sim, sua vida miserável havia chegado a um fim tão miserável quanto o início.

— Boa noite, jovem senhorita Necron — saudou-a um assassino, que se pôs à frente dos outros e, pelo tom de voz, era notável que sorria. — Se importaria de…

O lugar sofreu um abalo sísmico ainda maior que o anterior, levando tanto a garota quanto o grupo de assassinos a ficarem sem apoio ou equilíbrio.

— Ele… se soltou? — Karen virou o rosto a movimentos travados para trás, e Petra vibrou ao reconhecer a silhueta que se aproximava no escuro, acompanhada de várias espadas flutuantes. “Ele se soltou!”

— Hã? — De volta ao seu corpo original, Petra se encontrava em um lugar novo, no entanto levemente familiar. Aquelas árvores absurdas em tamanho, ela jamais se esqueceria. — O Domínio de Ziz?

Desde quando fez o pacto da Veste Divina com o anjo Auriel, o ambiente aparentava ter se mantido sem qualquer alteração.

O céu continuava límpido, o canto dos pássaros era um relaxante natural, assim como o farfalhar das folhas imensas.

A única coisa de diferente era que em vez da águia que tapava o Sol com o abrir de suas asas, uma mulher de longos cabelos brancos a esperava em uma mesa de chá.

— Sinta-se à vontade, minha pequena — convidou-a a sentar-se na cadeira à frente, a qual esperava por Petra com uma segunda xícara já pronta, na mesa. — Você deve estar cansada depois de tudo.

— Obrigada. — Aceitou o convite sem cerimônia, mas sem tomar da bebida oferecida pela mulher. — Eu tenho uma luta para terminar, então, se possível, gostaria de retornar o quanto antes, Ziz.

— Desnecessário, pequena. — Levou o chá com elegância aos lábios e degustou o sabor aquecido com calma. — Aquela luta acabou no instante em que eu agi.

Petra sentiu um frio percorrer sua barriga. Ela passou muitas horas ao lado de Karen, fora os dez anos que haviam se passado entre o início e o fim das memórias.

— Tudo o que eu fiz foi levar sua mente para o passado, no corpo de Karen Necron, enquanto eu assumia o controle do seu corpo no presente.

Ouvindo os pensamentos aflitos da garota, a mulher foi cirúrgica em sua resposta e na exposição dos fatos importantes.

— Acalme seu coração quanto à passagem do tempo; aqui ela é irrelevante.

— O-Obrigada. — Abaixou a cabeça de leve. Aquela era a primeira vez que tinha a oportunidade de conversar com Ziz com calma, ainda assim havia muita coisa para comentar. — Por me ajudar em Erebus e hoje também, obrigada, de verdade.

Sem palavras por um momento, o grande Guardião dos Céus se viu encantado pela simplicidade e sinceridade que a sua preciosa Chave de Goétia emanava.

— Você cresceu bastante desta vez — sussurrou para si mesmo, o que ainda cutucou os ouvidos de Petra e a levou a levantar a cabeça. — Enfim, você ainda tem algo que deseja saber antes de eu devolvê-la ao seu Plano Existencial.

— Ah, sim, tenho. — Ajeitou-se na cadeira e indagou o que a incomodou desde que abriu os olhos no passado. — Por que me fez acompanhar a vida da Karen? Digo, por que logo a da Karen?

— O filho de Azriel já lhe contou como a história dela chegou ao fim. — Encarou sua xícara vazia, que logo retornou a ser preenchida a partir do nada. — Seguir os mesmos passos, eventualmente, vai te levar ao mesmo fim, criança.

— Eu… — Petra apertou a xícara em suas mãos; mesmo que ela fosse como aquele recipiente frágil, jamais se afastaria da pessoa que amava, mesmo que sua vida estivesse na corda bamba. — Eu prometi que sempre voltaria viva pra ele, e vou.

Uma determinação louvável ao mesmo tempo que era ingênua. Como uma Chave de Goétia, Petra tinha um potencial de proporções descomunais, mas com a vida sempre visada por outras Chaves Maiores.

— O filho de Azriel nunca te contou que a alma daquela garota caiu no processo de reencarnação, correto?

Ao ouvir aquelas palavras, o chá tremeu nas mãos de Petra. Então a Karen estava viva em algum lugar por aí? Mas, se Raizel sabia, por que nunca foi atrás dela antes?

— Reencarnação… Céus…

Só então a ficha caiu para a menina.

O processo de reencarnação era algo anormal na Criação, uma vez que apagava qualquer informação da alma de um indivíduo, dando lugar a um ser completamente novo.

— Nova aparência. Novos gostos. Novos poderes ou ausência deles — expôs Ziz. — A alma daquela garota pode estar por aí, mas tudo o que ela foi um dia já não existe mais.

Caso contrário, Raizel teria varrido cada infinito universo atrás dela, independente do tempo gasto, independente das baixas esperanças; mas, naquelas condições, qualquer esforço seria inútil.

— Considere-se alertada, pequena. — Quando Petra percebeu a dilatação do espaço e a distância entre ela e Ziz cada vez maior, já era tarde para estender uma mão ou falar alguma coisa. — Torço para que, em breve, você possa acessar esse lugar por si mesma, minha protegida.

Para fazer companhia à dama, agora solitária, uma simples andorinha pousou em seu dedo, com seus olhinhos molhados de tristeza e compaixão pela menina.

— Sim, você está certa — respondeu aos sentimentos genuínos do simples animal. — Se a pequena sobreviver ao terrível porvir, eu devolverei a ela o restante do passado que lhe foi roubado.


Continua no Capítulo 167: Transcedental

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