Volume 2 – Arco 6
Capítulo 165: Graça e Elegância
Quando Petra abriu os olhos, se deparou com uma mulher de meia idade, a qual vestia trajes semelhantes aos da era vitoriana: saia volumosa, espartilho, luvas e um chapéu adornado; graciosa em todos os sentidos da palavra.
Fosse por tamanha admiração ou por simples falta de atenção, a menina tropeçou em seus pés e sentiu algo deslizar pelo seu longo cabelo preto, para a frente.
— Ai! — Grossos e duros como tijolos, três volumes de livros arranharam seu nariz, e um ainda fez a proeza de cair em cima do seu dedão direito. — Ui!
— Tsc! — Sem dar tempo para que a garota refletisse sobre a redução considerável do tamanho de seu corpo, seus fios de cabelo preto ou seu dedão latejando, a mulher estalou uma régua na própria palma. — Mais um fracasso. Repita outras cento e quinze vezes mais.
— Sim, senhora Freya. — Seus lábios concordaram sozinhos, sem coragem para contestar as imposições da professora de etiqueta. — Peço que pondere acerca desse pequeno desleixo.
Seu peito batia fora do compasso. De todo modo, pegou os livros e retornou para a sua lição de postura, sem dar um pio; qualquer palavra errada poderia ser fatal.
Mais que isso, como ela sabia o nome da senhora que a estava ensinando? Até tinha entendimento da sua rotina matinal: boas maneiras à mesa e a arte de se comunicar com nobreza, além da aula de postura elegante que estava tendo ali.
Vendo a garota falhar mais uma vez em traçar o percurso definido, a professora lamentou o dia em que aceitou ensinar aquele fracasso em forma de gente.
— Os ancestrais da família Necron derramariam lágrimas de sangue, se estivessem presentes para contemplar o quão miserável sua linhagem se tornou.
“Família Necron?!” Entretanto, sem obedecer aos seus comandos, o corpo da menina continuou a se mover sozinho, retraído, travado; segurou as lágrimas já corriqueiras.
Precisava desenvolver habilidades sociais graciosas e elegantes, para que se destacasse de forma positiva no meio da nobreza; a renomada linhagem de necromantes — os Necrons — não poderia decair junto com a incompetência dela.
— Perdão, senhora Freya.
Confusão se espalhou pela sua cabeça ao perceber-se, do nada, em outro mundo, no corpo de outra pessoa e tendo que acompanhar as tarefas árduas impostas a ela.
Surpresa a tomou quando se deu conta de seus olhos roxos e teve certeza de que sua aparência e nome batiam com a descrição dada, por Raizel, para Karen Necron.
Temor e incerteza inundavam seu coração, pois ela não tinha controle sobre aquele corpo e nem sabia como pôr um fim a tudo aquilo.
Era torturante ser obrigada a agir como espectadora mental da vida de outra pessoa; pior que isso só poderia ser a dor em seus pés, que mal se aguentavam.
Descoordenada das demais alunas de dança artística, ela sempre finalizava os passos depois de todas, ofegante e suando pelo corpo todo.
— Ah… Ah… — Karen Fitou o piso impecável do salão, em parte pelo cansaço, em parte pela vergonha de encarar as outras.
“Como eu saio daqui?”, pensou Petra. A tarde já havia chegado naquele mundo, e a luta com Luminas já teria chegado a um fim muito antes disso, em Calisto.
Raizel, Valentina, como todos estavam?
Karen mordeu os lábios; deu uma vontade amarga de chorar, coisa que Petra também compartilhava. Se fosse um sonho, queria acordar logo. As duas estavam sozinhas, ainda que cercadas por tantas pessoas.
— Sério, por que você insiste tanto? — Perante a voz de escárnio, Karen levantou o rosto em direção à garota à sua frente, que a encarava com um semblante tão azedo que poderia vomitar em sua cara. — Dá dó ver um fracasso que nem você aqui.
— Natasha…! — Um sentimento ardente se espalhou pelo peito de Karen, o que no decorrer do dia havia sido algo inédito para Petra. — Vê se cuida da sua vida.
— Que modo deselegante de se expressar — gargalhou, coisa que fez com a graça de uma dama e a delicadeza de uma donzela. — Estaria a ludibriar a sua professora de etiqueta?
Karen cerrou mãos e dentes, tudo para que não avançasse no pescoço daquela pirralha; já estava com problemas demais, e arrumar confusão só iria piorar as coisas no salão de dança.
— Provocar os fracos e indefesos se encontra longe de ser um comportamento digno de uma jovem dama — ressaltou uma menina loira de olhos cinza, que retornou ao reparar no que acontecia. — A professora deseja tratar algum assunto particular com você, Natasha.
— Humph! — Empinou o nariz e começou a ir embora, sem fazer contato visual direto com as outras duas. — Pode ficar com essa escória, se assim desejar.
Sozinha com a recém-chegada, Karen desabou os joelhos no piso lustroso do salão. O dia mal estava na metade, e ela já nem se aguentava mais de pé.
— Que ódio. — Bateu um punho fechado no chão; sua visão embaçada pelas lágrimas. — Que ódio, que ódio, que ódio!
— Karen… — A loira se ajoelhou na frente da caída e pôs as mãos no rosto dela com a delicadeza de uma flor frágil. — Olha pra mim. Vai ficar tudo bem, tá?
Virou o rosto inflexível para o lado, mas de nada adiantou; uma lágrima involuntária escorreu por sua bochecha até uma das mãos da boa samaritana, que compartilhou de sua dor corriqueira.
— Desculpa, Christine — lamentou assim que a loira a abraçou, sem se importar com o que as demais alunas pensariam ao ver elas naquela posição. — Vão te ver que nem… me veem também. Me solt…
— Negado. — A manteve em seu abraço, mesmo que a contragosto, e aos poucos Karen perdeu as forças para se opor a ela. — Pode contar comigo sempre que precisar, entendeu?
“Que quentinho”, pensou Petra enquanto Karen fechava suas pálpebras devagar e se entregava ao consolo de que tanto necessitava e que só encontrava nos braços de Christine Labyrinth.
A consciência de Petra, tomada por uma leveza gentil, naufragou nas águas calmas e profundas de um mar distante.
Quando voltou a abrir sua visão, a primeira coisa que chamou a atenção de Petra foi o tamanho da mão de Karen, relativamente maior do que antes.
Péssimos dez anos haviam se passado desde então; podia sentir isso na mente cansada e nos batimentos cardíacos fora de ordem; a respiração estava tão pesada.
Porém, o que ela mais estranhou, além do quarto mal iluminado, foi uma marca branca em forma de foice, que se encontrava nas costas da mão direita da moça.
“Essa marca…” Ao se dar conta do significado por trás daquilo, a consciência de Petra foi inundada por um tsunami de informações acerca dos últimos anos.
O tratamento em relação a Karen nunca mudou, na verdade, apenas foi de mal a pior; praticamente renegada pelo país, passou a viver em uma mansão isolada.
Apenas alguns serviçais a visitavam em certos períodos para deixar o imóvel em perfeito estado, afinal ainda fazia parte dos bens dos Necrons.
“A-Ah!!” Se possível, Petra levaria as mãos até a cabeça, que latejava à beira de explodir. Processar tantas informações em tão pouco tempo era surreal. “Essa gente… Isso nem é família”.
Mesmo que nunca tenha conhecido seu pai e só tenha passado parte da infância com a mãe, antes dela também ir para o pós-vida, Petra conheceu o que era amor e carinho; já Karen, nunca teve isso.
Pelo contrário, foi posta de lado assim que a talentosa irmã mais nova nasceu. Ao menos algo bom aconteceu: a marca nas costas da sua mão, o símbolo de que a Lei do Mundo escolheu uma Candidata Real.
Uma fagulha de esperança surgiu, algo havia enxergado potencial nela e a reconheceu; triste engano. Ninguém, em especial sua família, tinha esperanças na vitória dela na Seleção Real.
O fracasso Karen Necron nunca teria êxito em invocar um guerreiro de outro mundo para representá-la — um Neblim — muito menos triunfaria sobre outras candidatas.
A confirmação das suspeitas dessas pessoas parecia estar estampada na visão turva da garota, que no porão mal iluminado por velas quase totalmente derretidas, sentia seu corpo frio.
— Só dessa vez — mussitou enquanto fechava sua mão direita e derramava sangue do pulso cortado sobre um símbolo de invocação desenhado por ela. — Dê certo só uma vez… droga!
Havia perdido tanto sangue nas falhas anteriores, que cortar apenas a palma da mão já era estava tendo efeito nenhum.
Karen estava ofegante e quase cambaleou para frente quando, enfim, o Círculo de Invocação emitiu um fraco brilho roxo e pequenas faíscas saltaram dentro dele.
A jovem Necron congelou seus membros e olhos naquela fagulha de esperança, e Petra quase sentiu seu coração parar de ansiedade, se bem que aquele coração pertencia a outra garota.
“Rai…”
— Meu… Neblim.
Uma barreira de energia translúcida se ergueu das extremidades do Círculo de Invocação e selou o guerreiro que começou a tomar forma dentro dela.
De olhos fechados, como que com a mente imersa em algo, as mãos dele dedilhavam o ar, até que sentiu a ausência de uma coisa bem importante em seu tato.
— Huh? — Devagar, revelou seus olhos escarlates, que logo foram em direção aos dedos sobre o vazio e, então, desceram para o círculo sob seus pés. — Invocação, é?
Se Petra desejou ser capaz de mover os lábios de Karen para chamar pelo seu namorado, a dona do corpo gelou ao se deparar com o nefilim pela primeira vez.
Só então Petra entendeu o porquê: quando ela o conheceu, Raizel transmitia uma sensação de vazio e distância; mas, naquele momento, ele parecia totalmente preenchido.
Preenchido por amargura e rancor.
Se Karen tinha certeza de algo, além de sua existência fracassada, era de que se aquele cara conseguisse sair da barreira do Círculo de Invocação, ela iria morrer.
Continua no Capítulo 166: Garota Tola
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