O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 2 – Arco 6

Capítulo 164: Contemplação do Abismo

Sozinha em uma mesa redonda, uma pequena garota balançava os pés, que mal alcançavam o chão, enquanto se deliciava com a doçura do seu sorvete de morango.

Hummm! — De olhos fechados e com a colher na boca, por um momento, esqueceu de acompanhar a luta exibida no painel da sorveteria. — As guloseimas deste mundo são pra lá de boas! — ovacionou, de boca cheia.

— Nisso nós dois concordamos. — Assustada pelo comentário vindo de trás de si, a menina quase caiu da banqueta circular em que estava sentada. — Imaginei que viria assistir essa luta.

Com uma mão nas costas da garota, Raizel a impediu de cumprimentar o piso duro com sua nuca, o que chamaria a atenção de muita gente, coisa que ele gostaria de evitar no momento.

— E como você me achou aqui, cara chato? — Sem agradecimentos, uma vez que ele foi o responsável pelo quase acidente, a garota mostrou a língua.

De cima, Raizel a contemplou sem esboçar nenhuma expressão de indignação pela forma mal educada com que foi tratado.

De todos os ângulos possíveis, aquela garota, no melhor dos casos, não era mais do que uma criança birrenta e mimada.

Apesar disso, o vestido preto e cheio de babados, combinado com sua aparência jovial e a gargantilha de couro no pescoço fino, até lhe daria um tom obscuro, se não ela não parecesse fofa de tão minúscula.

— É raro encontrar alguém com coragem suficiente pra sair por aí vestida assim. — Ignorou o biquinho que a menina fez e se sentou na banqueta que ficava de frente para ela. — Você é a única que bate com a descrição que a Petra passou, pequenina Ophelia Abyss, a grande fã.

— Pequeni…?! — Vermelha como um morango, ameaçou um Nefilim Primordial com uma colher de sorvete. — Sa-Saiba que eu ainda tô em fase de crescimento!

— E mesmo assim veio até o meu universo procurar por confusão. — A colher tremeu na mão de Ophelia; os olhos de Raizel a fitavam da mesma forma que fizeram com Lucius, ameaçador. — Entenda que a qui não é o seu parque de diversões, criança.

Hah! Então você já compreendeu quem sou. — Estufou o peito e escondeu o gelo que sentiu por causa das palavras intimidadoras. — Reconheça o quão insignificante você é, Nefilim Merdal, e tenha medo de mim.

Pulou da banqueta em um sobressalto e ficou de pé na frente de seu algoz. Com uma mão no rosto erguido e outra em sua cintura — no maior estilo Síndrome da Oitava Série — agiu como se fosse liberar um grande poder oculto.

— Uma existência inexprimível vinda além das estrelas, com o objetivo de desbravar um novo mundo. — Tirou a mão do rosto, jogou-a para o lado e, eufórica, continuou: — Eu, Ophelia Abyss, uma das…

Cessou o discurso assim que reparou os olhos do rapaz, antes ameaçadores, agora estavam vidrados em outra coisa, e com um ar de admiração ainda por cima.

No painel de transmissão da sorveteria, a cena de Petra amarrando o cabelo em um rabo de cavalo era exibida. Raizel, fisgado como um peixe no anzol, se encontrava seduzido pelo quão bela ela havia ficado.

Contra sua vontade, lembrou-se de como segurou aquele cabelo, de uma forma bem semelhante, antes da luta começar. Era como se conseguisse sentir a maciez e o cheiro do shampoo impregnado em seus dedos.

— Gado — murmurou Ophelia. De braços cruzados, fez biquinho. Com um pouco de esforço, subiu de volta na banqueta, sem querer mais papo nenhum. — Chato.

— Ophelia Abyss, uma das poderosas Chaves Maiores da Goétia — expressou o que, para ele, já era óbvio.  — Parte do Volume Demoníaco, o Retentor do Abismo, Absalon.

— Tava prestando atenção, e me ignorou mesmo assim. — Pegou o sorvete, que começava a derreter, e tentou adoçar um pouco o seu humor amargo que aquele cara trazia. — Mal te conheci, e já te odeio.

Raizel deixou o comentário maldoso passar; aquela era geralmente a primeira impressão que as pessoas costumavam ter dele, afinal. Embora, daquela vez, ele tenha arranjado uma inimizade bem perigosa.

— Eu também odeio pessoas mentirosas que nem você. — Ophelia bateu a colher na mesa e franziu a testa. Aquele cara sabia como irritar alguém. — Seu objetivo é “desbravar um novo mundo”? Conta outra.

Só havia apenas um motivo pelo qual a Chave do Retentor do Abismo iria de encontro à Chave do Guardião dos Céus.

Como conceitos opostos, Absalon e Ziz nunca se deram bem, e o mesmo valia para as suas Chaves de Goétia, que sempre acabavam por se matar.

— Você até que é esperto, ô chatão. — Abrindo os braços para o alto, prosseguiu com empolgação, coisa que pensou ter perdido, depois que Raizel chegou. — Nós duas somos rivais destinadas a se enfrentar em uma batalha lendária!

Algo que, sem sombra de dúvidas, abalaria os alicerces da Criação e as marcaria na história como seres superiores, uma como a vencedora e a outra como a perdedora.

— Legal, né? — Os olhos pretos que antes exibiam uma escuridão absoluta, impossível de diferenciar a íris da pupila, brilharam de puro êxtase.

— O que se passa pela sua cabeça pra deixar esse protótipo de gente vir atrás de outra Chave de Goétia tão cedo? — Ophelia estranhou aquela fala à princípio, embora encarasse as profundezas dos seus olhos, Raizel não se dirigia a ela. — Responda, Absalon.

Em um piscar de olhos, tudo ficou escuro. Sorveteria, mesas, pessoas, o cenário anterior havia sido substituído por trevas tão profundas como os olhos da garota que permanecia na frente de Raizel.

Uma presença pesada pairou sobre o novo ambiente, o que levou o rapaz a direcionar sua visão para cima, de onde dois globos oculares negros, tão grandes quanto estrelas, se aproximavam dele.

— Se você olhar por muito tempo para o abismo, o abismo olhará de volta para você. — E Raizel experimentou essa frase no sentido mais literal da coisa. — Já se passaram bons séculos desde a última vez em que tive de sentir o cheiro desse seu bafo de ovo podre.

— Diga logo o que quer — inquiriu a voz rouca e gutural, quando uma imensa garra parou na frente do nefilim, revelando por completo o dragão que saía da escuridão — cria imunda de Azriel.

Um sorriso se formou no canto da boca de Raizel; aquele bicho ainda guardava certo rancor dele, mesmo depois de tanto tempo.

Antes de responder, primeiro deu uma boa conferida no ombro colossal do monstro, onde tinha deixado uma boa ferida da Espada do Fim dos Tempos.

Infelizmente, Absalon era um dos poucos seres que conseguiam se regenerar dos cortes daquela lâmina; a cicatriz havia sumido de suas resistentes escamas.

— Digamos que… eu vim barganhar. — Ofereceu uma mão, como se fosse entregar algo. — Eu busco um pacto.

— E por qual razão eu deveria firmar um pacto com um homem que está com o pé na cova? — Ophelia riu baixinho, escondendo os dentes com uma mão.

Raizel, por outro lado, franziu a testa pela forma com que a Besta Sagrada se referiu a ele, mas sem ter tempo para interpor argumentos, uma vez que a voz do monstro se elevou.

— Responda-me, Pecado dos Anjos!

— Eu quero um pacto de não agressão entre a Petra e a Ophelia — explanou, sucinto — até que as duas alcancem a plenitude de suas Chaves de Goétia.

Do alto, o Dragão do Abismo rugiu, exercendo uma pressão insana sobre o corpo de Raizel, que o fez ceder de joelhos e sangrar pelos ouvidos e nariz.

— Não foi isso o que eu lhe perguntei! — Aproximou seu rosto e dentes ferozes do rapaz caído. — O que te leva a crer que eu faria um pacto com você?!

— Olhe você mesmo para o futuro. — Cuspiu saliva misturada com sangue e então, com suas runas, curou todos os danos em instantes. — Contra eu e a Petra, a sua Ophelia vai morrer.

Absalon grunhiu e, em seguida, fitou a menina que se encontrava abaixo de si.

Para uma entidade de seu nível, enxergar o futuro era tão natural quanto olhar para a frente, e o que Raizel disse era verdade.

Chaves Maiores da Goétia sempre se mataram entre si ao longo das eras; essa era a razão pela qual esse poder imenso era passado adiante para novos usuários.

Assim, para Petra se manter viva, o meio mais garantido seria eliminar as Chaves de Goétia de Absalon ainda muito jovens, coisa que ela teria dificuldades de fazer contra crianças inocentes.

— Se isso ainda for pouco para te convencer, veja o meu passado — sugeriu Raizel, e de imediato o colossal se espantou. — Se você falhar em ver como eu consegui as Gravuras de Atlas e os Construtos Divinos, então estou à altura de fazer um pacto com você.

— Qual é? — Ophelia deu de ombros para a proposta sem sentido do rapaz; só um louco para se achar digno de fazer negócios com uma Besta Sagrada. — Tá se achando demais pra quem nem tava se aguentando em pé agora pouquinho.

— Como…? — Ao contrário do deboche da garota, Absalon arranhou o chão de escuridão com suas garras, abrindo fendas, inconsciente, entre as dimensões. — Como essas técnicas foram parar aí?

Desde o início, a Habilidade Inata de Raizel nunca funcionou de uma forma padrão: a Manipulação de Energia deveria criar apenas objetos de energia pura, mas a dele imitava diversos tipos de matéria.

Então, do nada, uma técnica de Construtos Divinos — a capacidade de criar objetos literalmente celestiais — havia surgido no arsenal dele, em algum momento dos últimos dias.

Graças a isso que Raizel conseguiu fazer frente à Luz Celestial de Lucius, mesmo usando estrelas que aparentavam ser do Plano Físico… mas não eram.

O nefilim mostrou todos os dentes de sua boca em um largo sorriso, enquanto que o dragão bufou uma fumaça tóxica pelas suas narinas. Os olhos negros dele, ardendo, quase ficaram vermelhos de raiva.

— Moleque…!

Por mais que sondasse até os confins dos trilhões de anos dos infindáveis universos da Criação, em momento nenhum havia resposta para como aquelas técnicas haviam sido implantadas no arsenal de Raizel.

— Ei… Absalon — mussitou a pequena, encolhida no canto, quase sem tocar seus lábios. — Cê tá falando sério mesmo?

Naquele momento, ela viu Raizel de uma perspectiva nova: antes, ele era menos que um anjo qualquer; agora, tinha algo que escapava dos olhos de uma criatura que transcendia todo o espaço e o tempo.

— Vejo que ganhei um pacto. — Então, sem desperdiçar mais tempo, o nefilim deu prosseguimento a um Ritual Pactual.

Tirou um pergaminho de seu anel de ressonância e, jogando-o ao ar, o papel se desfez e deu origem a um círculo espiritual com metade dos símbolos preenchidos por energia roxa e prateada.

O conteúdo era claro e objetivo: Petra Lavour não entraria em conflito com Ophelia Abyss, e Raizel garantiria essa parte; por sua vez, Absalon deveria assumir a mesma responsabilidade, porém em relação à boa conduta de Ophelia.

— Esses são os termos que eu, Raizel Stiger, o Nefilim Primordial, proponho.

Em resposta, metade dos símbolos ainda sem cor foram preenchidos pela energia abissal do dragão imponente, que se aproximou com seu tom de voz gutural.

— Eu, Absalon, o Retentor do Abismo — emendou de forma pausada — aceito os seus… termos.

Em contrapartida aos dois, a pequena garota mordeu os lábios e virou o rosto birrento para o lado. Se recusava a encarar o espaço vazio dos símbolos espirituais.

Como Petra já havia fornecido seu consentimento de antemão, só faltava a assinatura da alma de Ophelia para a conclusão do Ritual Pactual.

“Covarde.” Mesmo tendo dito a Petra que ela era sua grande fã, que tinha grandes expectativas nela, sua rival jurada decidiu fugir com o rabo entre as pernas. — Eu, Ophelia Abyss, a Chave do Retentor do Abismo, concordo com seus termos.

Virou as costas para o rapaz, de modo que nem viu sua Energia Demoníaca preencher os símbolos faltantes do círculo; apenas sentiu a ligação que foi formada entre a sua existência e a dos outros três.

Nenhuma punição foi definida nos termos, uma vez que o preço a ser pago por violar um Ritual Pactual era proporcional ao que estivesse em jogo: um confronto entre duas Chaves Maiores da Goétia.

— Foi um prazer negociar com vo… — Raizel travou enquanto se preparava para ir embora dos domínios daquela dimensão particular de Absalon. — Eu deixei ela sozinha só por alguns minutos, porra…!

Absalon, que contemplava tudo o que ocorria na luta entre Petra e Luminas, e via a gota de suor que escorria pela testa do nefilim — ainda que o mesmo estivesse de costas para ele — gargalhou em alto e estrondoso som.

— Parece que nem tudo saiu de acordo com os seus planos — ressaltou enquanto desaparecia na escuridão e mandava os outros dois de volta para Calisto. — E o seu dia está só começando, moleque!


Continua no Capítulo 165: Graça e Elegância

Ajude a pagar o cafezinho do autor contribuindo pelo pix abaixo:

79098e06-2bbf-4e25-b532-2c3bf41ccc53

Siga-nos no famigerado Discord.



Comentários