Volume 2 – Arco 6
Capítulo 160: Criança Querida Pelos Céus
No princípio, os humanos reinavam sobre as feras selvagens do planeta Calisto. Sem a presença de portais iminentes, usuários de Energia Espiritual e Habilidades Inatas ainda não se faziam presentes.
“A Lei do Mundo é absoluta e, contra ela, nada pode se opor”, era o que muitos pensavam; mas, se nada era capaz de ir contra ela, isso significava que ninguém poderia dominá-la e usá-la a seu favor?
Darius Caesar, um homem ganancioso influenciado por um dos grandes Príncipes Infernais, encontrou a resposta: um artefato de grande poder, mas sem consciência própria, a Lei do Mundo era uma verdadeira arma, não um regente.
Ensandecido e corrompido pelo poder, Darius virou o mundo de cabeça para baixo: misturando humanos e bestas, os primeiros semi-humanos surgiram.
Transformando o Mundo em uma zona, os portais passaram a eclodir por todo o Calisto e a ameaçar a vida de cada criatura que por ali existisse: humanos, animais, bestas e os recentes semi-humanos.
Porém, assim como Darius alcançou as profundezas do Reino Infernal, um certo homem, Longinus Vitellius, fez sua voz alcançar o íntimo do Reino Celestial.
Mobilizado pelas súplicas do humano e de toda a vida do planeta, um dos poderosos Arcanjos — a Cura Divina, São Rafael — entrou em cena contra o Príncipe Infernal orquestrador de tudo: a Gula, Belzebu.
Ao fim, apesar do planeta permanecer até os dias de atuais, toda a sua estrutura mudou; além dos semi-humanos, duas novas raças surgiram: os tenjins agraciados pela benção do Arcanjo, e os majins herdeiros da corrupção do Príncipe Infernal.
— Assim Darius Caesar foi considerado o primeiro majin, enquanto que Longinus Vitellius foi o primeiro tenjin. — Leitura encerrada, o pequeno Lucius fechou o grosso livro com um baque seco e o colocou mais ao canto, na mesa da biblioteca. — E o próximo vai ser… Huh?
O próximo livro da sua leitura diária, o qual deveria estar bem na frente dele, apenas evaporou como água no deserto, e o pior de tudo, ele nem tinha visto quando.
Revirou cada um dos livros que tinha retirado das estantes. O pessoal daquela biblioteca era bem chato; reclamavam até da forma com que se passava as folhas.
Conferiu livro por livro. Nada.
Levou as mãos até a cabeça.
Olhou debaixo da mesa. Nada.
Enfiou o rosto nas mãos.
— É hoje que comem meu fígado com farinha. — À beira de aceitar o trágico destino que batia à porta, pequenos braços envolveram o pescoço dele por trás
— Eu pensei que, dessa vez, você ia chorar. — Nas mãos da pequena menina, estava o livro que Lucius caçava. — Já tá quase anoitecendo, sabia? E você nem comeu nada, né? Pode falar.
O ronco da barriga dele dizia tudo. No seu estado de concentração, Lucius esquecia do mundo; mas bastou ouvir falar em comida que o corpo dele se pronunciou.
— Eu tenho que ler mais esse hoje. — Pegou o livro que estava na mão de Luminas e o abriu, ignorando o fato de que a garota permanecia abraçada a ele. — É sobre as armas sagradas entregues por São Rafael Arcanjo para combater as tramóias do Príncipe Infernal Belzebu.
— Tá! Tá! Eu conheço o básico da história. — Foi por causa daquilo que as armas demoníacas e divinas passaram a existir em Calisto. — O símbolo da nossa ligação com a graça e a benevolência dos santos anjos. Blá, blá, blá.
— “Blá, blá, blá”? — Parou de passar as páginas em um determinado ponto e virou o rosto em direção ao da garota, que estava quase colado ao dele. — Você também é uma tenjin. Deveria ter mais respeito por essas coisas.
— Ah, tá bom, menino chato. — Fez biquinho e, então, prestou atenção na arma que o amigo escolheu para estudar: a Lança Sagrada de Longinus. — Essa daí é a que vai ser sua, né?
Lucius assentiu com a cabeça. Já havia séculos desde a última vez que aquela arma tinha aceitado um novo portador. Por todo esse tempo, havia se tornado apenas um item de exibição em um templo.
Isso até o dia do nascimento do pequeno Lucius Arcadius, quando um dos sacerdotes do templo anunciou uma revelação de que aquele menino se tornaria o portador da Lança Sagrada.
Sem dúvidas, tinha vindo ao mundo uma criança querida pelos céus. Desde então, Lucius trabalhou para que isso se concretizasse: se dedicou em estudos, postura e caráter para que se tornasse realmente digno de tal benção.
— Essa semana eu despertei a minha Habilidade Inata, a Manipulação de Luz. — A qualquer momento, a Lança Sagrada que uma vez pertenceu a Longinus Vitellius iria parar nas mãos dele, que se fecharam em determinação. — Eu tenho que me esforçar mais.
— Hum… — Ainda abraçada ao amigo, sussurrou no ouvido dele: — Se esforça assim por mim também.
— Huh?! — De rosto vermelho, o corpo do garoto deu uma leve tremida; no entanto, quem repreendeu Luminas pelo comportamento inapropriado na biblioteca foi uma das funcionárias.
— Desgrudem, vocês dois…! — Com a voz intensa, porém fazendo o possível para não gritar naquele ambiente, a mulher espumava pelas narinas. — Vão ficar de namorico em outro lugar, pirralhos. Aqui é um espaço de leitura.
— Tá bom então. — Luminas agarrou o companheiro pelo braço e o puxou para fora da biblioteca. — Vamos, Lucius.
O garoto, confuso, não sabia o que seria pior: se opor à amiga, que certamente ia ficar chateada e aumentar a confusão, ou encarar aquela besta sanguinária em forma de bibliotecária.
“Ai de mim.” Acabou por seguir a amiga birrenta. Quando ela ficava naquele estado, nada podia ser feito. “O que eu fiz pra merecer isso?”
Guardada dentro de uma estrutura de vidro, a Lança Sagrada de Longinus era exibida sobre um suporte de prata, para quem a desejasse ver.
Caído de joelhos e com a cabeça encostada no vidro, Lucius — em seus 16 anos de idade — via-se de olhos arregalados, perdido em si mesmo.
— Por quê? — Colocou uma mão sobre o vidro. Seus dedos, pela falta de nutrição adequada, estavam finos, de modo que a pele poderia se fundir aos ossos. — Já se passou tanto tempo.
Quatro anos de duro treinamento com a sua Habilidade Inata. Uma vida dedicada a herdar a vontade de Longinus, o primeiro da sua raça. Dezesseis árduos anos de puro empenho para… nada.
— Eu errei? — A Longinus se recusava a aceitá-lo. — Onde… eu errei? — Mordeu os próprios dentes, e as lágrimas escorreram pelas suas bochechas.
O que faltava que a sua mente, levada à exaustão, falhou em vislumbrar? O que seu corpo treinado a ponto de se quebrar não conseguiu alcançar? Em que o seu comportamento honrado foi insuficiente?
— Um erro. — Seus dedos deslizaram pelo vidro até cederem à queda e, bambos, ficarem suspensos no ar. — A revelação do sacerdote só pode ter sido um erro.
O portão que dava acesso ao Salão da Lança foi aberto, e mesmo sem se virar para ver quem entrou, Lucius escutou o som agudo de um salto se aproximar.
— Hã? — Ele esperava que fosse alguma sacerdotisa vindo pedir para que ele se retirasse; afinal, mesmo sendo o futuro portador, Lucius já tinha passado tempo demais ali sozinho; mas aquelas mulheres não usavam salto. — Luminas…
— Er, bem. Oi — cumprimentou-o, meio sem saber como se expressar, ou melhor, como contar a notícia para ele. — Imaginei que você estaria aqui. Você sempre tá.
— Por que veio? — Limpou o rastro das lágrimas em suas bochechas e, quando estava para se levantar, Luminas o impediu, pondo-se sobre ele. — Ei!
Aquele lugar era um templo. Se alguém os pegasse naquele tipo de posição, iria dar ruim, muito ruim. Certeza que pensariam coisa errada. Por que Luminas tinha que ser daquele jeito?
— Promete que não vai me odiar? — Um tom melancólico preenchia a voz dela, coisa incomum para alguém como a jovem Luminesk. — Tudo bem se alguém me odiar, mas… você não.
— O que quer dizer? — Com seus rostos próximos um do outro, foi rápido e fácil para que o toque dos lábios suaves da garota alcançasse os dele. — Huh?
Agora sim os dois estariam encrencados se fossem pegos por algum sacerdote, principalmente porque Lucius não conseguiu resistir aos doces lábios de Luminas.
Na escola, todos diziam que ela era deslumbrante de linda, e embora Lucius não parasse para prestar atenção em nada além da sua consagração, até ele era obrigado a concordar com isso.
Porém, o que o pegou de surpresa foi sentir que o beijo de Luminas tinha tanta experiência quanto o dele: nenhuma. Apesar de bom, nenhum dos dois parecia saber direito para onde ia.
No fim, Luminas — que iniciou o beijo — também foi a responsável por encerrá-lo. Ainda com o sabor de Lucius em sua boca, encarou o rosto desnutrido dele com pesar.
— Eu ganhei uma arma divina. — Mal terminou de tirar o chão do jovem tenjin, com um beijo, e já tirava-o de novo com a notícia. — A Espada da Eventualidade: Fermat é minha.
— Como…? — Ela ganhou uma arma divina antes dele? Logo Luminas que vivia sem preocupação com a sua imagem como tenjin? Lucius, estado catatônico, balbuciou: — Como alguém que nem você conseguiu, e eu não?
— “Alguém que nem eu”... — Levantou-se devagar e deu uns passos para trás; ouviu que estava com medo de escutar. — Eu tô longe de ser um exemplo de pessoa, né?
— Espera, Lumi…
— Por isso você nunca prestou atenção em mim, mesmo eu estando sempre ao seu lado, né? — Mordeu os lábios trêmulos e encarou-o com seus olhos marejados. — Eu nunca quis merda de arma nenhuma e nem que você me olhasse assim, sabe?!
Era óbvio que os dois nunca seguiriam suas vidas como antes, não depois que seu amigo soubesse que ela recebeu de mão beijada o que ele, com muito sofrimento, nunca teve.
Só podia ser uma pegadinha dos céus dar aquela arma para ela, enquanto deixava Lucius de mãos vazias, mesmo depois de ele ter se esforçado tanto.
Ele merecia. Ela não.
— Desculpa por te dar esse beijo ruim. — Virou-se e se preparou para ir embora. — Eu vou estar torcendo pelo seu sucesso.
Luminas correu alguns passos, quando escutou o ruído de vidro sendo estraçalhado contra o chão. Apavorada, encarou o punho do amigo manchado de sangue e com fragmentos do vidro entre os dedos.
— Eu nunca disse que te odiava — falou, dando uma última olhada na lança para a qual dedicou sua vida. — Nem disse que o beijo foi ruim.
Deu as costas à Longinus e caminhou cambaleante em direção à garota; ter ficado sem comer por tanto tempo estava começando a ter um efeito, e dos piores.
A visão de Lucius escureceu. Seus passos vacilaram. Seu corpo cedeu à queda nos braços de Luminas, que foi rápida em o segurar antes de ele apagar pelo desgaste acumulado nos últimos anos.
— Eu desisto — sussurrou, quase chorando, nos braços dela enquanto sua consciência se apagava de uma vez. — Eu já não aguento mais isso… Luminas.
Seguiria o caminho que julgava ser o bom. Seria um exemplo, assim como sempre quis. Mas a busca por aquela arma havia chegado ao fim. Talvez nunca fosse aceito por ela depois daquilo. Talvez…
— Descanse um pouco, tá? — Passou a mão com cuidado pelo cabelo loiro e todo bagunçado dele. — E desculpa por te entender mal. Eu só tava com medo.
Um brilho pulsou do pedestal onde a Lança Sagrada de Longinus se encontrava, o que chamou a atenção de Luminas e a fez esboçar um sorrisinho discreto, ainda que com dificuldade para aquela arma sagaz.
— Eu vou cuidar melhor desse menino teimoso. — Riu. — Pode deixar comigo.
Continua no Capítulo 161: Criança Desprezada Pelos Céus
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