O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 2 – Arco 6

Capítulo 155: Envelhecido como Vinho

Em sua sala, na Academia de Batalha Ziz, o diretor Kriven Stear Nosferatu observava o conteúdo de uma carta sobre a mesa em formato de meia lua à sua frente.

Enquanto fechava os olhos e apoiava o rosto aborrecido em um punho fechado, o homem suspirou com profundidade.

Só alguém como aquele nefilim maluco para colocar uma bomba de tais proporções em seu colo e agir como se não tivesse feito nada de mais.

— Ainda nessa carta, velho diretor? — chamou-lhe a atenção a mulher sentada na segunda mesa da sala. — Acredita mesmo que a Organização Perpetuum despertou o interesse de um Arcanjo?

Diferente do seu companheiro de trabalho, a vice-diretora Sapphire de Leroy não se mostrava muito crédula quanto às informações fornecidas por Raizel.

Parte dessa dúvida era culpa do próprio rapaz, que optou por ocultar a fonte das informações fornecidas em sua carta: a falsa tenjin Alicia Necron.

Ele não julgou apropriado comentar sobre o processo de tortura que a garota passou no experimento de criação de um novo Nefilim Primordial, realizado pelo cientista da Perpetuum, embora tenha citado o experimento.

— A falta de fonte para a informação incomoda, no entanto — disse, revisando cada palavra no papel com seus olhos cinza — a ideia de que a Cura Divina, São Rafael Arcanjo, pisou no solo do Continente Sombrio mais uma vez é assustadora.

Que a Organização Perpetuum atuava nos domínios do Continente de Erebus já era algo conhecido, porém, o que realmente importava era se o que Raizel havia dito estava ou não certo.

Se as Academias de Batalha tivessem que lidar com algo que despertou até mesmo o interesse de um dos poderosos Arcanjos, então o buraco era muito mais fundo do que eles pensavam.

— Saber disso justo quando nos encontramos na iminência de um ataque, é problemático — refletiu o velho diretor. — Na última vez que esse Arcanjo teve que agir aqui, o mundo virou de ponta cabeça.

— Ei! — Sapphire colocou as mãos sobre sua mesa e se pôs de pé em um sobressalto. — Por acaso cogita a ideia de compartilhar informações infundadas?

Estando Raizel certo ou errado, fazer seus duos pensarem que iriam lidar com algo de proporções inimagináveis, como nos primórdios do mundo, plantaria uma semente de dúvida que abalaria e muito a confiança e a moral dos combatentes.

— Devo dizer que em certos momentos você aparenta subestimar a minha vasta experiência, minha nobre vice-diretora — disse, claramente alfinetando a companheira de trabalho justo onde ele sabia que incomodaria. — Que rude de sua parte.

— Por “vasta experiência” refere-se à velhice? — Sentou-se novamente e cruzou as pernas esbeltas e chateadas. — O que pretende fazer, no fim?

— Nada — respondeu de forma curta e precisa, o que levou a mulher a esbugalhar os olhos. — Se o garoto estiver errado, não existe problema algum; se estiver certo, as nossas esperanças são inúteis, de qualquer forma.

— Então… — mucitou enquanto enrolava uma tímida mecha de cabelo no dedo — está concordando comigo? Evento raro.

Nosferatu riu da forma “doce” como sua parceira reagiu; bem diferente da mulher confiante que parecia sempre trilhar um caminho árduo com passos inabaláveis.

— As únicas pessoas com quem seria sensato compartilhar o conteúdo dessa carta seriam os diretores das outras Academias. — Já podia imaginar como cada um deles reagiria. — Mas eles ririam da minha cara por confiar apenas na palavra do garoto.

Para que levassem a sério, seria necessário que Raizel expusesse os detalhes de como obteve a informação, o que no melhor dos casos apenas mudaria o peso da palavra dele para o da de Alícia.

— Pode-se dizer que desta vez você chegou a uma conclusão sensata, minha jovem vice-diretora.

— O que quer dizer com “desta vez”? — Cruzou os braços e franziu o cenho. Aquele velho astuto não cansava de encher-lhe o saco.

— Eu quero dizer que você certamente se tornará uma excelente diretora em breve. — Suas palavras em tom saudoso fizeram Sapphire perder as feições de indignação que possuía em sua face. — Estivemos juntos por bons anos, não foi?

Nosferatu podia vislumbrar o dia em que se despediria de seu assento — um causador de prestígios e inúmeros problemas — ou talvez fosse melhor dizer que ele se livraria de uma grande dor de cabeça.

No entanto, não compartilhando nem um pouco do clima ruim provocado pelo diretor, Sapphire se levantou de sua cadeira e — a passos firmes e ecoantes de seu salto — se pôs perante o diretor.

Os objetos sobre a mesa dele tremeram assim que as mãos da mulher bateram sobre a madeira de ébano negro das montanhas enavoadas do sul do continente, algo que nem de longe seria barato.

— Esse é um comportamento um tanto quanto inapropriado para uma vice-diretora — disse, mantendo-se calmo perante o aparente descontrole da companheira de trabalho. — Enquanto não oficializar minha aposentadoria, eu ainda sou a autoridade máxima desta Academia de Batalha.

— O que você está aprontando? — Apesar de Nosferatu se manter inabalado com sua ação, Sapphire o fitou ferozmente, determinada a arrancar respostas da boca daquele velho. — Não me venha com essa conversinha de querer se aposentar justo agora.

Ela já tinha trabalhado tempo demais ao lado daquele homem para saber que ele nunca ficaria de braços cruzados após receber algo como a carta de Raizel, mesmo que sem poder contar com o apoio dos diretores das outras Academias de Batalha.

— Eu irei pôr um fim à ameaça conhecida como “Organização Perpetuum”. — Afinal, era pra isso que ele estava lá. Sem preocupação, encarou a silhueta inclinada na sua direção; a Academia de Batalha Ziz certamente estaria em boas mãos após a sua saída. — Acalme seu coração. Eu jamais jogaria essa bomba em seu colo.

— Não duvido que você faria isso. — Arrancou uma boa risada do diretor, que teve seu humor levantado na hora. — Se for fazer alguma loucura, eu sou seu braço direito, lembre-se disso.

O homem que ria despreocupado viu seu riso se desvanecer devagar. Sapphire falava com convicção; ele podia sentir.

“Sério.” Levou uma mão até o rosto e respirou pesadamente. “Quando eu me tornei tão previsível”.

Talvez já estivesse mesmo na hora de se aposentar. Ao menos, quem via através de suas intenções veladas era aquela que iria o suceder e levar a sua Academia adiante.

— Nunca gostei da ideia de te ter como meu braço direito — expressou com sinceridade, apesar da ausência de ofensa na voz. — Eu sempre te tive como a vice-diretora Sapphire de Leroy, nada mais que isso.

— Só fala isso agora? — Virou-se enquanto caminhava de volta para a mesa dela. —  Você costumava ser mais objetivo. — Deslizando a ponta dos dedos na superfície de sua mesa, concluiu a fala com um certo teor de deboche. — Seria coisa da idade avançada?

— O que me diz de um jantar no final de semana? — Pegar com a guarda baixa, Sapphire viu seus passos travarem antes de alcançar a cadeira.

Ela só podia ter entendido errado o que tinha acabado de escutar. Um convite para um jantar logo depois de debochar dele?

Sim, seus ouvidos a enganavam.

— Ascender à posição de diretor é uma grande conquista — salientou Nosferatu, como se não ansiasse por se ver livre de tal posição. — É justo comemorarmos. Claro, isso se a minha velha companhia não for desagradável.

Aham! — A vice-diretora levou um punho fechado à boca e limpou sua garganta com elegância. — Sua companhia, de fato, se encontra longe de ser das mais atraentes.

E o termo “atraente” não foi usado por menos; até mesmo Sapphire de Leroy era obrigada a reconhecer que, apesar de brincar com a diferença de idade existente entre os dois, o diretor da Academia de Batalha Ziz era alguém que tinha envelhecido como vinho.

Os cabelos acinzentados da família Nosferatu caíam tão bem com os fios grisalhos que chegavam a proporcionar um charme rústico e maduro — bem cuidado — assim como a barba e as linhas simétricas do rosto dele.

— Entretanto, em respeito ao período que compartilhamos juntos — disse, enquanto ficava de frente novamente para ele, agora de volta à sua postura inabalável — me vejo no dever de aceitar o seu convite.

Se Nosferatu tinha por objetivo fazê-la vacilar em sua presença, então que estivesse preparado para operar milagres durante e após aquele jantar.

— É sempre bom poder contar com a sua consideração, senhorita Sapphire. — O diretor sorriu sagaz. — De fato, fiz bem ao antecipar uma reserva para aquele restaurante que você costuma comentar.

A vice-diretora encarou-o, sem palavras.

Preparado?

Sim, aquele velho astuto estava.

E Sappire... Ela que se preparasse também.

Lentos e desanimados, os passos de Alícia se faziam quase que completamente silenciosos na vastidão dos corredores desolados da Academia de Batalha Leviatã.

O local carregava um silêncio mórbido, assim como ela esperava, já que quase todo mundo estava nos palcos de transmissão pública.

Como logo se ausentaria dos duos da Academia de Batalha Behemoth, Alícia evitou assistir as lutas do último dia na sala com seus companheiros Top Rankings.

“O que é que eu estava pensando?” Pondo uma mão sobre o coração, suspirou baixinho; ela mesma mal escutou o ar sair de sua boca. “Eu já devia imaginar que iria acabar desse jeito, né?”

Mas, para onde iria após se despedir de sua Academia de Batalha? Sequer havia alguém ou algum lugar esperando por ela.

Era estranho como tinha se habituado a uma vida que jamais poderia viver. Doía ter que dizer adeus aos seus companheiros, sem que pudesse ser ao menos honesta com eles no final.

“Huh?” Só ao escutar o som arfante e quente de uma voz feminina, Alícia se deu conta do quanto tinha caminhado em seu momento de melancolia. “Eh?!”

Olhou de forma brusca para os lados: todas as paredes dos corredores eram praticamente iguais. Onde era que ela estava mesmo? E principalmente, o que deveria fazer? Ir embora?

Se o que tinha ouvido fosse o que ela estava pensando, o melhor seria sair de fininho, sem barulho nenhum e fingir que aquilo nunca aconteceu.

Girou seus pés na direção oposta do sons depravados e se preparou para sumir da face daquele corredor, ao menos até que seus ouvidos captaram um “Rai” aveludado de uma voz que ela conhecia muito bem.

“Pe-Petra?”

Realmente seriam aqueles dois?... Ali?... Fazendo aquelas coisas?... A luta deles não estava prestes a começar?

“Vai embora, vai embora, vai…” repetia, inutilmente, para si mesma.

Seus passos se recusaram a obedecê-la; era impossível tentar convencê-los do contrário, e Alícia se deu conta disso quando sua visão periférica se estreitou.

“Por quê….?” As pupilas, antes circulares, assumiram o formato de fendas em seus olhos roxos cheios de pecado, cheios do Fruto da Luxúria. “Por que logo agora?”

No fim, a jovem Necron havia se tornado uma verdadeira Nefilim Primordial, com todas as suas vantagens e, acima de tudo, com todos os seus defeitos.


Continua no Capítulo 156: Vermelho, Azul e Roxo

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