Volume 2 – Arco 5
Capítulo 136: Primordial da Morte
No instante em que recobrou a consciência, seu olfato foi agredido pelo cheiro forte e nauseante de sangue e carne apodrecida.
— Urgh! — A vontade de vomitar veio, e um frio intenso a acompanhou. — Onde… Huh?
Ao tentar se levantar, sentiu a mão de outra pessoa no chão, um membro decepado. Não apenas uma mão mas também outras partes, de muitas pessoas.
Era difícil saber a quantidade com precisão, tanto pelo grande número quanto pela densa névoa carmesim que barrava o alcance da sua visão.
— O lixão? — indagou-se a garota com uma nuvem de gás frio acompanhando sua voz débil.
Aquele era o lugar onde os corpos das cobaias eram descartados? Nem no final de suas vidas, aquelas crianças eram tratadas como gente?
Os cadáveres eram jogados de qualquer jeito na superfície para servirem de alimento aos monstros que rondavam pelas terras do Continente Sombrio de Erebus.
Sem entender o motivo pelo qual haviam jogado ela ali, já que ainda estava viva, a pequena Alicia começou a perambular, sentindo o frio devastador roubar cada traço de calor do seu corpo minúsculo.
— Lucy… — Olhava para os lados, em busca do cadáver da amiga. Se eles cometeram um erro com ela, talvez Lucy também estivesse viva em algum lugar. — Lucy…
Uma esperança falha: já tinham se passado muitos dias desde a morte da garota, ninguém sobreviveria por tanto tempo naquele ambiente inóspito.
Nem mesmo a própria Alícia continuaria viva se demorasse muito ali. Ainda que ignorasse a dor — ou melhor, tenha se habituado ao sofrimento das torturas — o corpo dela ainda sentia o efeito do frio extremo.
Morrer por hipotermia talvez fosse melhor do que acabar esbarrando com alguma besta sanguinária e ser mastigada viva.
Dada a densidade da névoa, era notável que ela se encontrava em um ponto profundo de Erebus, onde só existia o pior tipo de aberração.
Não, era mais correto dizer que as verdadeiras aberrações estavam localizadas na instalação do subsolo.
— Lu… — Tropeçou e caiu, fraca.
No chão gélido, a pequena viu alguns de seus fios de cabelo se espalharem na frente de seus olhos: fios roxos e brilhantes, nem parecia seu cabelo albino.
No momento Alícia não conseguia ver, mas seus olhos também tinham mudado de cor, assumindo aquela estranha coloração roxa, como se fossem duas jóias feitas a partir do mais puro e genuíno Nether.
"Eu vou morrer?" Seria a segunda vez no mesmo dia: primeiro foi uma falência completa de órgãos; agora, congelada.
O eco estridente da pisada de uma bota de metal soou perto dela. Com seus sentidos entorpecidos e falta de mobilidade, a criança não conseguiu olhar direito para a pessoa que a pegou do chão.
— Cobaia 616, Alícia Scarlet — disse o recém-chegado, com um tom calmo e relaxante. — Em meio a uma infinidade de futuros possíveis, esse foi o que você alcançou: os meus braços.
Por alguma razão, a garotinha não se sentia desconfortável ao ser chamada de "cobaia" e ser segurada por aquela pessoa.
Na verdade, estar naqueles braços chegava a ser estranhamente confortável e aconchegante; mais caloroso do que qualquer lareira ou fogueira.
A sua mente fluía junto aos movimentos suaves do longo cabelo claro do homem. O frio realmente havia desaparecido, ou talvez só não existisse frio perto dele.
— Quem é…? — Recobrando seus movimentos, observou os olhos verdes e serenos do seu salvador. — Que lindos.
O homem deu uma risada descontraída, a qual foi abafada pelo estrondo de uma criatura medonha que saiu do solo.
Alícia mal teve tempo para reparar no monstro — que sem dúvidas seria de Rank S. Nenhuma criatura das profundezas daquele lugar seria classificada abaixo disso.
— Sem interrupções, por gentileza — solicitou o indivíduo, sereno.
Uma forte força visível mandou a criatura de volta para debaixo do chão, o qual se fechou e, selado, ficou como se nunca tivesse sido profanado antes.
As feições do indivíduo se mantiveram inalteradas; então, com calma, observou os olhos de Nether da garotinha.
— O que eu deveria fazer com você?
Aquela pequena já não era mais uma tenjin; cada traço do material genético dela havia assimilado o do Nefilim Primordial, tornando-se — assim como ele — uma existência estranha no mundo.
Por possuir traços angelicais, Alícia não seria bem-vinda no Reino Infernal; por ser uma nefilim, não seria aceita no Reino Celestial — nem mesmo entre os tenjins.
— Você vai me abandonar também? — O ar de inocência que a garotinha carregava era grande demais para que ele tomasse alguma ação contra a vida dela.
De repente, dois pares de asas angelicais surgiram nas costas do homem, dando a ele uma aura ainda mais pura e tranquilizadora, ou melhor, divina.
— De certa forma, é melhor que sim — disse enquanto fazia o corpo da menina flutuar em direção a uma fenda que se abria atrás dela. — O dia em que você se encontrará com aquele garoto é certo.
No entanto, caso Raizel soubesse sobre a existência de Alícia naquele momento, ele a aniquilaria sem pensar duas vezes. A existência de uma aberração como ele já era demais para a Criação.
— Até que o dia chegue, repouse um pouco.
Depois de tudo o que ela havia sofrido, passar um tempo dormindo de forma tranquila naquela fenda seria mais do que merecido.
— Torço para que você trilhe um futuro no qual possamos nos encontrar de novo, Primordial da Morte.
Seriam bons séculos até que chegasse uma época em que ela pudesse sair dali sem correr um alto risco de vida, mas era o melhor a se fazer.
Se a Organização Perpetuum descobrisse que Alícia ainda estava viva e que o experimento tinha funcionado, ela voltaria para as garras de Arklev.
— Adeus… senhor fulano — disse a garotinha, ainda com o semblante um tanto vazio, enquanto a fenda espacial se fechava com ela.
— Haha! — Ser chamado de "fulano" chegava a ser cômico, embora alguns julgariam aquilo como um ato mais do que desrespeitoso, caso tivessem presenciado a cena. — Pode se lembrar de mim apenas como Rafael.
Então, sozinho em meio ao mar de neblina carmesim, Rafael deu uma última sondada nos arredores antes de recolher suas quatro asas divinas.
Ao que parecia, aquele ser hediondo realmente estava deixando as peças se moverem com certa liberdade no tabuleiro da vida.
— Deixe os olhos bem fechadinhos, tá bom? — disse Alícia, agora com uma aparência mais jovial, para uma menininha que estava com a cabeça cheia de espuma. — E lá vai a água.
A criança espremeu os olhos com força enquanto a água escorria, levando o sabão consigo. Por sorte, só havia as duas no banheiro do orfanato, então ninguém podia ver as feições engraçadas dela, além de Alícia, claro.
Fazer aquilo despertava emoções nostálgicas, mas também dolorosas na jovem. Lucy também se sentia assim ao lavar o cabelo dela naquela época?
"Fazer isso é agradável mesmo", pensava enquanto terminava o serviço. — Tá prontinha.
— Uhh! — A criança correu desgovernada até uma toalha e deixou a moça para trás, a qual gritou para que tomasse cuidado com o piso molhado. — Brigada, maninha.
Alícia sorriu ao ser chamada daquela forma. Desde que despertou da fenda espacial de Rafael, ela passou seus dias naquele orfanato; ali cresceu e ajudou a cuidar dos mais novos.
— Te ajudo a secar o cabelo daqui a pouco! — gritou para o vulto da criança, que a deixou só. — Sempre tão animada.
Naquele ritmo, não demoraria muito até que ela fosse adotada por alguma família, coisa que Alícia recusou várias vezes.
Cheia de dúvidas e desconfiança, a recém-despertada passou um longo tempo com medo de que a levariam apenas para vendê-la mais uma vez.
Os membros da sua verdadeira família — se assim fosse possível chamar aquela gente — provavelmente, já estavam todos mortos após os muitos séculos que ela passou alheia ao mundo.
Talvez houvesse decentes? De qualquer modo, isso era irrelevante. Todo o material genético de Alícia tinha sido modificado após os experimentos de Arklev.
Nenhum tipo de exame apontaria a menor ligação sanguínea entre ela e os decentes daquela gente, na verdade, a própria Alícia achava que fosse melhor assim.
— Como será que vai ser quando eu me encontrar com ele? — suspirou enquanto pegava sua toalha.
Com o tecido macio, envolveu seu corpo que — apesar de um pouco mais jovem — já mostrava as curvas da bela mulher que viria a se tornar no Campeonato Sojourner.
Os cabelos roxos, os quais ela precisou de alguns dias para se acostumar, carregavam os tons da energia que aquele cara mais detestava no mundo.
A Energia Espiritual era algo que fluia da alma para o corpo, e a alma era onde todas as informações de um ser ficavam armazenadas — fossem do presente ou do passado.
Por ter o Nether da alma de Raizel presente na dela, Alícia acabou por reviver as lembranças mais marcantes da vida dele — na forma de sonhos — durante o período que passou na fenda espacial.
Então, melhor do que ninguém, ela entendia que Raizel a mataria assim que soubesse da existência de outra Nefilim Primordial, da mesma forma que aniquilou os seus semelhantes no passado.
As memórias do fatídico dia em que o pequeno Raizel Stiger massacrou cada Gigante ainda estavam vivas em mente: o sangue, as dores, o lamento.
"Ele vai usar aquela espada em mim?" Receosa, apertou a toalha sobre seu peito. Parada na porta do banheiro, sentia o aço quente da Espada do Fim dos Tempos desintegrando sua alma. — Karen… me ajude.
Restava-lhe torcer para que uma pessoa, que nunca a conheceu, tivesse sido bem sucedida em melhorar a mentalidade do jovem rancoroso.
Karen Necron, a única garota que foi capaz de tocar o coração de Raizel Stiger de tal forma que — para cumprir seu último desejo — ele até mesmo aceitou a criação de dois nefilins artificiais.
No entanto, o trabalho de Karen havia ficado pela metade, Alícia sabia muito bem disso: por causa daquela garota, Raizel sentiu o que era o céu e o inferno.
A fim de se tornar alguém tão importante quanto ela, Alícia abandonou o seu antigo sobrenome, tornando-se a falsa tenjin Alícia Necron.
— E que os céus me abençoem.
Respirando fundo, saiu do banheiro.
Continua no Capítulo 137: Uma Grande Fã
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