O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 2 – Arco 5

Capítulo 135: Cobaia 616

Os pequenos olhos escarlates se abriram devagar, permitindo a uma pequena quantidade de luz do ambiente sombrio passar pelas pupilas, que se dilataram de forma sofrível.

O chão, no qual a pequena garota se encontrava deitada, estava bizarramente frio; mesmo o subsolo tinha dificuldades em escapar do clima gélido daquele lugar.

— Alícia! — Outra garotinha, de curtos cabelos azul-marinho, a pegou pelos ombros, fazendo uma dor lancinante se espalhar por eles. — Você dormiu muito dessa vez.

— Eu dormi… muito?

Encarou as grades enferrujadas da cela que as prendiam nas profundezas do inferno e as roupas gastas que cobriam o corpo da companheira, o qual — assim como o da pequena Alicia — estava cheio de faixas e marcas de agulhas.

— Tem uns cinco dias já — disse, enquanto passava as mãos pelos cabelos branco-neve da amiga. — Ainda bem que vai dar pra tomar um banho hoje, né?

— É… — Com a cabeça um tanto aérea, Alícia ainda parecia perdida no pesadelo que teve durante o tempo em que passou apagada; ou, talvez, o pesadelo fosse apenas a própria realidade. — Banho…

tá toda suja — disse a garotinha, como se não estivesse em um estado tão ruim quanto. Por causa da cor branca, a sujeira se destacava muito nos cabelos de Alícia, mas os da outra também não escapavam da bagunça. — Deixa que eu lavo pra você, tá?

— Obrigada… Lucy.

No banheiro feminino, as garotinhas podiam sentir como se estivessem — de certa forma — livres, uma vez que o espaço superava em muito os cubículos de suas celas apertadas, grandes o suficiente apenas para que coubesse duas crianças lá dentro.

Enquanto se lavavam, o grupo de garotas era supervisionado por um conjunto de guardas bem armados, prontos para puni-las por qualquer tentativa de fuga ou rebeldia.

— Já tô acabando, tá? — Lucy enxaguava a espuma dos fios albinos da cabeça de Alicia e afagava a nuca dela com carinho. — Vou deixar você bem limpinha.

A outra não chegou a esboçar uma resposta: uma reação que Lucy já estava acostumada; sempre que voltava de uma sessão de experimentos, a amiga ficava daquele jeito.

"Mamãe", pensava Alicia, lembrando-se do toque dos dedos carinhosos da mulher que uma vez lavou o seu cabelo daquela forma, a mesma mulher que a vendeu para aquela gente.

As pessoas que tanto a ensinaram que — enquanto tenjin — mentir era algo errado, uma criação horrorosa do demônio, foram as primeiras a mentir para ela e traí-la da pior forma possível.

Mesmo que os últimos dias que teve com aqueles que a chamavam de família tivessem sido complicados e sofríveis, Alicia nunca imaginou que venderiam a vida dela para que eles melhorassem a deles.

Naquele infeliz lugar, onde ela era nomeada como Cobaia 616 e servia apenas para dar andamento às pesquisas de uma mente insana, a única luz que brilhava aos olhos da pequena Alicia era aquela que terminava de lavar o seu cabelo.

— Vamos logo, suas crianças imprestáveis — esbravejou um dos supervisores, batendo a haste de sua lança contra o chão; o tinido metálico assustou todo mundo. — Façam fila e voltem para as celas, já!

— Eita, droga. — Ainda com um pouco de espuma no cabelo, Lucy pegou a mangueirinha que estava usando em Alícia e começou a se lavar bem rápido. "Dê tempo! Dê tempo!"

Ter se empolgado demais com a amiga que tinha acordado depois de tantos dias acabou por fazê-la se esquecer de como as regras naquele lugar eram rígidas.

— Cobaia 615, já era pra você estar na fila — chamou-a um dos supervisores, o qual se pôs na frente dela, irritado. — Pra fila!

Então, antes que a menina conseguisse abrir os olhos direito, recebeu um forte chute na barriga que a fez soltar a mangueirinha e cair com intensas dores abdominais no chão.

— Lu… — Quando Alicia estava para mover uma mão na direção da amiga, outro supervisor também a repreendeu, o que assustou cada uma das crianças enfileiradas.

— Tudo bem — respondeu Lucy, com a dor presente em sua voz. — A gente já tá indo.

Caminhando com uma mão apoiada por trás das costas de Alicia, seguiu o caminho das demais para vestir suas roupas e voltar para a cela miserável.

Não era possível reclamar da ausência de comida, mas elogiar o gosto da gororoba que entregavam para elas era igualmente difícil.

O alimento, em forma de massa cinzenta, carregava todos os nutrientes que os corpos de alguém necessitava para continuar a ser útil nos experimentos.

No fim de tudo, a única coisa que aquela gente desgraçada pensava era: "se fosse pra morrerem, então que rendam o mínimo de dados relevantes".

— Não consigo me acostumar com esse gosto esquisito — reclamou Lucy, com os cabelos ainda com um pouco de sabão.

Por outro lado, Alícia comia bem devagar, não por se incomodar com o sabor ruim, ela apenas não ligava mais. Se algum dia teve esperança de escapar daquela prisão, essa já havia sumido.

Foi então que, para incomodar a refeição que as meninas faziam sentadas no chão, uma dupla de supervisores passou carregando uma marca, a qual possuía o corpo pálido de uma garota.

Urgh! — Lucy tapou a boca com as mãos, segurando a vontade de vomitar. "Mais uma…?"

Os desgraçados faziam questão de sempre carregar o cadáver das cobaias em frente às celas, até pareciam se deliciar com as reações de medo e nojo das meninas.

"Bando de demônios miseráveis." Porém, bastou pensar aquilo para que uma segunda dupla parasse na frente da cela delas a fim de atrapalhar ainda mais a refeição das duas.

— Cobaia 615, você é a próxima da fila — falou imperativo, ignorando o prato de comida nas mãos da pequena. — Anda, vamos!

Dando um espasmo, por causa do susto, a garotinha abandonou a comida e se levantou; no entanto, quando estava para ir, uma pequena mão segurou a borda da roupa dela.

— Lucy… — Alícia, que havia ignorado até mesmo o cadáver de há pouco, parecia tristonha ao ter que se separar da amiga tão cedo.

— Já já eu volto, tá bom? — Deu um sorrisinho breve e se apressou para que não recebesse outra reclamação. — Até mais.

Alícia a viu ser guiada no meio daqueles dois carrascos, de tal modo que se esqueceu de continuar comendo. Ela sabia que, quando Lucy retornasse, as duas ficariam mais alguns dias sem conseguir conversar de novo.

Deitada com a face no chão, Alícia sentia-se consumida por um vazio estranho. O gotejar de um cano era a única coisa que impedia sua mente de ser tragada pela ansiedade do tempo moroso.

Quantas horas já se faziam desde que Lucy tinha saído? Já tinham até recolhido os pratos inacabados das duas; no fim, Alícia também não conseguiu terminar de comer.

Do nada, a fome havia desaparecido.

"Ela também fica assim quando tão me furando lá?" Sua respiração quente era a única coisa que aquecia o chão frio. "Lucy, cadê você?"

Foi quando passos, vindos do corredor, ecoaram em sua direção. Alícia abriu os olhos e caminhou até às grades, quase colocando a cabeça entre as frestas para que conseguisse ver quem era.

Hã? — Eram aqueles dois que carregavam a maca branca; sobre ela, cheio de feridas provocadas por perfurações de agulhas, um braço pálido pendia pela lateral. — Lucy?

De olhos fechados, a garota passou — enquanto era carregada — sem dizer uma palavra sequer para a amiga; talvez fosse por causa da espuma branca que escorria da boca dela.

— Es-Espera! — chamou pelos indivíduos que levavam a maca. — A cela dela é essa daqui.

Eram muitas celas; eles deviam ter se confundido e passado direto. Além disso, Lucy não poderia falar nada enquanto estivesse dormindo. Todo mundo sempre voltava desacordado e levava dias para abrir os olhos de novo.

Os dois homens olharam para ela por um instante, então seguiram caminho rindo e se divertindo da cena.

Segundo um deles, aquilo devia ter acontecido porque o outro deu um chutão na barriga da coitada no banheiro.

— Lucy… — sussurrou, estática; suas pequenas mãos segurando as grades frias — não vá…

Antes que percebesse, uma sensação desconfortável tomou conta de seu peito, uma sensação que ela não sentia há muito tempo — a mesma de quando seus pais a trocaram por um punhado de dinheiro.

— Não me deixe também. — Com a voz entalada na garganta, com um líquido doloroso escorrendo de seus olhos, a pequena Alícia fez algo que ela já tinha esquecido de como era. — Não me deixe sozinha… Lucy!

Chorando, não conseguiu mais manter as mãos firmes nas grades e as soltou, caindo para a frente e batendo a testa no metal solitário. De joelhos, continuou ali, naquela posição, por um tempo que não conseguia contar.

— Volta… por favor... — Era tudo o que conseguia repetir. — Volta…

Suas esperanças sumiram na primeira agulha que perfurou suas veias. O pensamento de que alguém viria em seu resgate desapareceu quando as mãos de seus pais pegaram no dinheiro.

O brilho de seus olhos foi tragado por um breu sem vida no momento em que perdeu a única fagulha de luz que havia naquele lugar, sua amiga.

Não mais do que um pacote de carne amarrado sobre uma mesa cirúrgica, a pequena garota já não mais resistia ou expressava qualquer traço de dor ao receber aquele líquido viscoso em suas veias outra vez.

— Boa garota, boa garota! — Aclamava Arklev, aquele que detinha a alcunha de “o Louco", o cientista da Organização Perpetuum. — Enfim se entregou de corpo e alma em prol do nosso precioso experimento? Que generosa!

Só era uma pena que a garotinha não prestasse atenção nas palavras dele e nem se empolgasse com a ideia de receber a energia líquida do Nefilim Primordial em seu corpo.

Após tantas falhas, ela poderia se tornar a primeira tenjin a ser convertida na forma profana de um nefilim — uma aquisição preciosíssima para a Organização Perpetuum no futuro, uma arma inigualável.

Se aqueles cientistas incompetentes das Academias de Batalha tinham realizado a proeza de criar dois simples nefilins artificiais, por que ele — o Louco Arklev — não conseguiria algo melhor? Um novo Nefilim Primordial!

Hahaha! — Foi então que um som agudo e contínuo do aparelho que media os sinais vitais da Cobaia 616 interrompeu a euforia do cientista. — Ah! Que merda!

Soltando fogo pelas narinas, jogou alguns dos seus materiais no chão, danificando-os com a frustração de ver mais uma de suas cobaias fracassar no único propósito existencial que tinha e levar consigo todo o esforço que ele empregou naquele projeto.


Continua no Capítulo 136: Primordial da Morte

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