O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 2 – Arco 5

Capítulo 104: Karen Necron

Pela vasta galeria de música, o som frenético do piano se espalhava com a mesma ferocidade com que as teclas eram dedilhadas pelos exímios dedos de Raizel.

Diferente das demais composições, aquela que o nefilim tocava era de cunho autoral. Apesar de inacabada, já era possível sentir o significado de seu nome em cada nota tocada: Amanhecer em Glória.

No momento em que o rapaz alcançou o último trecho produzido e — enfim — a música parou, o som de um bater de palmas ecoou atrás dele.

— Bravo! Bravo! — ovacionou a voz empolgante e charmosa de sua tola e jovem mestra. — Esse é o meu neblim.

Todavia, Raizel não se deu ao trabalho de olhar para trás; ainda com os dedos pousados sobre o teclado do instrumento musical, sentiu o calor envolvente dos braços de Karen contornarem o seu pescoço.

Acompanhados pela clássica fragrância de lavanda que a moça carregava, os cabelos negros dela caíram sobre os ombros de seu querido e rebelde servo.

Com a cabeça apoiada próximo ao rosto dele e abraçando-o por trás, observou o quanto o seu neblim — o seu representante na seleção real — estava compenetrado na tarefa de compor algo para celebrar a vitória de ambos.

— Isso me deixa feliz, ver o seu empenho. — De fato, aquela música estava ficando tão longa que já passava dos 50 minutos. Karen sabia que só alguém que realmente se importava com ela faria algo tão exaustivo assim. — Mas você deveria anotar alguma coisa, ou vai acabar esquecendo as notas.

— Você me subestima, senhorita Karen — disse com o seu habitual tom indiferente e um tanto quanto orgulhoso. Isso ele nunca mudava. — É mais simples só transcrever tudo para a partitura de uma única vez, quando a música estiver pronta.

Com uma cara cheia de dúvidas, a moça sabia que Raizel estava mentindo. No fim, aquele cara só queria jogar na cara dela o quão sortuda foi ao conseguir invocar alguém como ele.

— Contudo, eu me concentraria mais se você tivesse me entregado um piano comum. — Deslizando um dedo, da direita para a esquerda, provocou uma sequência de sons, a qual desceu dos mais agudos até os mais graves. — Você sabe que eu não gosto dessa cor.

No final das contas, o problema não estava na qualidade sonora do instrumento, e sim na tonalidade roxa, que estava substituindo a cor preta habitual do piano.

— Chato! — Soltando-o devagar, Karen ficou de pé e chateada; então, de um ponto de vista mais alto, encarou o rapaz pelas costas. — É a mesma cor dos meus olhos.

— O seu caso é uma exceção, senhorita Karen. — Com um sorriso sugestivo, desceu a visão daqueles olhos de ametista em direção aos lábios finos e convidativos da jovem mestra tola. — Os seus olhos, sim, eu gosto deles; tão frágeis e vulneráveis, mesmo assim, não deixam de suplicar quando…

Hm! Hm!

Não tardou em balançar a cabeça para os lados, em forma de negação. Os dois poderiam estar sozinhos naquela galeria, mas ainda dava certa vergonha falar sobre aquele tipo de coisa.

— Mantenha o mínimo de decoro, entendeu? — Com o rosto levemente rosado, sentou no banquinho do piano, dividindo o espaço apertado com Raizel. — É uma ordem da sua mestra.

Oh! Posto desta forma — disse, com um tom característico de ironia — parece que eu não tenho outra escolha senão obedecer.

Esforçando-se para não dar uma cotovelada em seu acompanhante, Karen franziu a testa e o encarou com olhos selvagens.

Aquele cara nunca mudava… mesmo.

Todavia, em vez de extravasar, a moça se debruçou sobre o piano, escondendo o rosto entre os braços. Fato era que o tempo que ela tinha com Raizel estava prestes a acabar. Seria ruim desperdiçá-lo com discussões.

— Você vai conseguir terminar a música a tempo? — Fez a pergunta ainda com o rosto escondido. — A gente só tem mais alguns dias.

Em breve a seleção real, que determinaria a nova rainha do reino de Arcádia, estaria se encerrando — o que significava que os guerreiros invocados de outros mundos seriam mandados de volta, ou melhor, o único sobrevivente dentre eles.

— Estará concluída a tempo, não se preocupe. — Todavia, o rapaz já havia entendido o que perturbava o coração da sua mestra. — Verbalize logo, o que mais você quer?

— Como você vai ficar quando voltar para casa e… — o que ela mais queria saber no fim de tudo — eu não estiver mais ao seu lado?

— Farei o que sempre fiz. — Sem precisar pensar muito, revisou a pequena lista de vida. — Matar, treinar e tocar.

 — Encontre alguém especial, tá? — Sua garganta doía ao ter que falar aquilo, o que também deixou Raizel surpreso. Era difícil acreditar que ela falava sério. — Eu só não quero que você fique sozinho quando retornar para o seu mundo.

Por mais que quisesse negar, Karen estava ciente do quão profundas eram as feridas cravadas no coração daquele nefilim.

Ela sabia que não seria capaz de terminar de curá-las no pouco tempo que tinha disponível.

Por isso, mesmo que significasse ter que entregá-lo às mãos de outra garota, ela queria que esse outro alguém pudesse fazer o que ela não conseguiria.

— Você continua sendo tola, Karen. — Com a voz mais ríspida do que a habitual, o rapaz se levantou do banco do piano e, nenhum pouco feliz, caminhou em direção à saída da galeria. — Me entregar às mãos de outra pessoa como se eu fosse um objeto quebrado, é isso o que você quer?

"Não", pensou enquanto ouvia os passos dele cada vez mais distantes. "Eu queria que você pudesse ficar aqui."

Mordeu os lábios em frustração, com a mesma força com que amaldiçoava as regras daquela seleção e a Lei do Mundo.

"Eu queria que você pudesse ser o meu rei."

Com o olhar baixo, Raizel se viu reflexivo, de uma forma que ele não esperava se encontrar após tanto tempo.

Aquelas lembranças, além de amargas também poderiam ser um fardo, principalmente, considerando as suas condições atuais.

Ainda assim, se perguntava se Karen estaria feliz ao saber que — mesmo precisando de bastante tempo — no fim, ele realmente encontrou o tal "alguém especial" que ela havia comentado.

"Óbvio que não", imaginou, enquanto cruzava os braços e direcionava o olhar para a moça sentada entre círculos espirituais logo à sua frente. "De qualquer forma, isso já não importa mais".

De olhos fechados e em posição de meditação, Petra emanava uma densa e poderosa aura dourada, a qual destoava muito da sua habitual energia prateada.

O poder do Guardião dos Céus era algo verdadeiramente admirável e, ao mesmo tempo, assustador. Contudo, mais impressionante do que isso era a velocidade com a qual a moça o estava dominando.

"Eu não poderia esperar menos de uma Chave de Goétia." Assim como os círculos espirituais, o estigma no peito da garota emitia um brilho tão forte que se tornava visível mesmo por baixo da blusa do uniforme.

Foi quando todo o brilho se apagou e, suando, Petra abriu os olhos e se inclinou ofegante para a frente.

Ao fundo, havia uma colossal esfera devoradora de luz — a qual ficava no centro do seu Espaço Dimensional distorcendo o tempo e o espaço ao redor — um buraco negro supermassivo, um verdadeiro quasar.

Apoiando um joelho no chão transparente, Raizel segurou a moça que caía para a frente, de exaustão. Com uma mão nas costas dela, pôde sentir como o tecido do uniforme estava encharcado de suor.

— Você tem se esforçado bastante, senhorita.

Uhum! — Com os braços ao redor do pescoço do seu parceiro, Petra repousou o rosto sobre o ombro dele, carinhosa e confortável. — Tudo bem pegar toda essa energia do Ziz?

— Nós estamos falando de uma Besta Sagrada. — Se havia alguém que sabia a dimensão dos poderes daquelas criaturas, esse alguém seria o próprio Raizel. — Acredite, você pode pegar o quanto de energia quiser, não vai fazer a menor falta.

A parte difícil estava em liberar todas as Habilidades Inatas presentes na Chave de Goétia. Como um dos Primordiais da Criação, o Guardião dos Céus tinha acesso a uma diversidade de manipulações simplesmente surreal.

O que não era nenhuma surpresa, tendo em vista que todas as Habilidades Inatas existentes eram derivadas dos poderes dos Primordiais da Criação: Arcanjos, Príncipes Infernais e Bestas Sagradas.

— Entendo — disse, enquanto se soltava de Raizel e se sentava de frente para ele, puxando um assunto novo: — Então, o que aconteceu pra te deixar assim, Rai?

Surpreso com a precisão da pergunta, o rapaz ficou calado por um momento. A sua instabilidade emocional estava tão evidente assim, ou seria aquela a tal da intuição feminina?

De qualquer forma, aquilo transmitia uma sensação estranha: era como se Petra estivesse começando a ler ele com cada vez mais facilidade.

— Tem a ver com aquela Alícia de novo, né? — Soltando uma risadinha, Raizel percebeu que era inútil tentar esconder isso dela no momento. — Desde que aquela garota apareceu, você tá agindo meio estranho.

— Eu a encontrei quando estava voltando para assistir a segunda luta. — Era desagradável como aquela estranha sabia coisas sobre ele, principalmente as relacionadas a Karen, as que gostaria de deixar de lado. — Digamos que não foi o melhor dos encontros.

Hmm… — Com o rosto virado para o lado, Petra comentou baixinho: — Alícia, Karen… — Então, voltou a encará-lo nos olhos. — É meio desconfortável ter outras mulheres entrando na sua mente assim.

Sempre que algo estava relacionado aquela Karen, seu parceiro parecia incomodado; e, embora ela tivesse com receio de perguntar, Petra sabia que tinha caroço naquele angu.

— Olha só — disse seu parceiro que, ao apoiar uma mão sobre o peito dela e aplicar um pouco de pressão, a fez se desequilibrar para trás — que garota mais ciumenta.

Er, bem… — Todavia, antes que conseguisse falar algo a mais, Raizel se aproximou, deitando-a no chão transparente e ficando por cima dela; deixou-a sem rota de fuga.

Ao segurar uma de suas mãos e entrelaçar os próprios dedos nos dela, Raizel sussurrou enquanto seus lábios se aproximavam:

— Ocupe toda a minha mente, Petra.

Era isso o que ela queria e faria. Sozinhos dentro daquele espaço solitário, puxou a boca dele para mais próximo da sua.

Agindo como a forte gravidade do quasar no centro do seu Espaço Dimensional, Petra não queria que Raizel escapasse dela.

Contudo, diferente das outras vezes, o beijo do seu parceiro carregava algo que ela nunca imaginou que sentiria vindo dele: uma pitada de… desespero.

"Eu tô aqui." Sentindo o ritmo do beijo ficar mais lento, deslizou a mão livre pela nuca do parceiro e o manteve por perto. "Eu tô aqui por você, Rai."


Continua no Capítulo 105: Dia de Pintura

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