Volume 2 – Arco 4
Capítulo 98: Uma Única Vez
Sentado na janela de uma cafeteria de Krakauer, uma cidade vizinha à Academia de Batalha Absalon, Eslly observava uma tênue marca circular em seu dedo anelar direito, onde costumava se encontrar o seu antigo anel de ressonância.
Porém, mais do que a ausência do acessório, o que se destacava era a tremedeira quase incessante em seus dedos.
Desde o fatídico dia, ele não conseguia mais segurar o seu arco sem que a arma balançasse igual às folhas de uma bananeira ao vento.
Acertar o mais imóvel dos alvos nunca havia se mostrado uma tarefa tão difícil. Em meio às circunstâncias atuais, o jovem semi-humano só enxergava uma solução — uma desagradável.
No momento em que tirou um documento do relógio em seu pulso, dois jovens — os quais vestiam o mesmo uniforme que ele — o reconheceram e cochicharam enquanto caminhavam para fora do estabelecimento.
— Ei, não é aquele cara dos boatos? — indagou a moça semi-humana, a qual possuía orelhas felinas. — Ele tá sozinho.
— Parece que a história é real mesmo. — O rapaz humano abaixou seu rosto e, em respeito ao seu veterano, se preparou para ficar em silêncio. — Deve tá sendo difícil pra ele.
Ainda que fosse novo na Academia de Batalha Absalon e tivesse acabado de formar um duo, o jovem rapaz podia imaginar as proporções da dor que o arqueiro estava sentindo.
"Um duo recém-formado, heim?" Com um olhar de canto, Eslly conseguia enxergar nitidamente o passeio daqueles dois. "Ela também gostava… dessas coisas".
Sem que percebesse, mordeu os lábios com força e apertou o documento com as duas mãos no mesmo instante em que uma mancha molhada surgiu no papel.
Uma a uma, as lágrimas voltaram a verter de seus olhos, manchando ainda mais o documento e forçando-o a enfiar seu rosto entre os braços sobre a mesa a fim de esconder-se de olhares alheios.
"Que merda…" Com um grito silencioso, o rapaz expôs, em sua mente, a frustração que inundava seu peito. "Por que eu errei?!"
Não importava quantos dias se passassem, ou o quanto ele tentasse esquecer, todas as vezes em que fechava aqueles malditos Olhos de Águia, a mesma imagem sempre surgia diante dele.
A cor viva do sangue carmesim manchando as garras afiadas do boss Lobisomem Prateado, enquanto perfurava o abdômen da parceira de Eslly, pelas costas, permanecia nítida na mente dele.
Mas, naquele momento, ainda havia uma chance, uma esperança. Bastava que sua flecha criasse um buraco na testa da besta sanguinária.
Bastava apenas isso… mas não foi o que aconteceu.
A situação era desesperadora: matar ou ter sua parceira morta. E, pelo desespero, suas mãos tremeram.
O disparo foi impreciso. O boss inclinou a cabeça para o lado. Os até então devastadores ventos de sua flecha serviram apenas para acariciar os pelos resistentes da criatura.
Irado, o monstro segurou a cabeça da garota com a mão livre — a qual vomitava sangue e agonizava de dor — e, sem ao menos pestanejar, cravou suas garras no rosto dela, arrancando-lhe a cabeça.
Paralisado de horror, o garoto ficou sem saber o que fazer, além de observar o cadáver da companheira ser jogado ao chão e pisado pela monstruosidade, sendo reduzido a nada mais do que uma massa de carne, sangue e ossos quebrados.
— Urgh! — De imediato, levou as mãos em direção à boca. Lembrar-se do acontecimento ainda lhe causava ânsia de vômito. — Huh?
Ainda esforçando-se para evitar que o café que tomou há pouco fosse posto para fora e sujasse o estabelecimento, Eslly percebeu que acabou por soltar o documento que, de tanto que ele apertou, havia se tornado a mais pura definição de "amassado".
— Não sirvo pra proteger nem um pedaço de papel? — Isso era ruim. Desse jeito, ele teria que ir até a Academia pedir outro. — Eu não consigo mais pisar naquele lugar.
Com as mãos no rosto, soltou um suspiro pesado. Bastava assinar aquele Requerimento de Desligamento para que seus laços com as Academias de Batalha fossem rompidos de vez.
Já havia se passado um mês desde o incidente, mesmo assim, ele nunca mais conseguiu pôr os pés dentro de um portal.
A simples ideia de ter, em suas mãos, a responsabilidade sobre a vida de outra pessoa fazia seus dedos tremerem sem parar.
E, independente do quão bons fossem a Visão de Arqueiro e os Olhos de Águia, se suas mãos não se estabilizassem, ele nunca mais conseguiria acertar um alvo.
Essa era a dura realidade de um campo de batalha: ele poderia acertar inúmeros disparos consecutivos, mas bastava errar uma única vez para que a sua parceira morresse.
— Eu sinto muito — sussurrou, ainda com as mãos no rosto. — Eu não consigo mais. Eu… Eu…
Foi quando o som de uma devastadora explosão ressou ao longe, chamando a atenção de todas as pessoas presentes tanto na cafeteria quanto nas ruas.
Embora apertassem as vistas, dado a distância, ninguém conseguia enxergar nada além de uma enorme nuvem de fumaça negra ascendendo aos céus.
— Será que aconteceu um acidente em alguma fábrica? — indagou uma senhorinha, que estava na mesa atrás da de Eslly. — Que perigo.
— Não… — sussurrou o semi-humano para si mesmo, abismado. — Não foi um acidente.
Como pequenas aves negras sobrevoando a fumaça da explosão, criaturas aladas dominavam o céu. O quão grande elas seriam de perto e o quão… perigosas?
Engolindo em seco, Eslly se levantou da cadeira, deixou o pagamento pela bebida na mesa e saiu correndo do estabelecimento.
Mesmo que Krakauer ficasse localizada próximo de uma Academia de Batalha, ainda levaria algum tempo até que os duos fossem acionados.
Naquele meio tempo, era difícil saber quantas pessoas poderiam morrer por causa de uma infestação de monstros.
— Droga. — Com as suas asas abertas, alçou voo tão rápido quanto pôde.
Era possível que, assim como ele, havia alguns membros da Academia na região? O máximo que Eslly conseguia pensar era naqueles dois que encontrou na cafeteria. Mas eles eram novatos. Conseguiriam dar conta?
— Huh?! — Foi só então que o mesmo se deu conta de algo mais importante: ele daria conta?
Fosse pelo desespero da situação ou por puro hábito, lá estava ele se metendo no meio do campo de batalha mais uma vez. Mas o que um arqueiro ineficiente poderia fazer?
Então, como se quisesse arrancá-lo daquela encruzilhada mental, o retumbar de um trovão ecoou das nuvens junto a um poderoso raio que eletrocutou algumas das criaturas aladas.
— Tem alguém aqui?
Como uma espécie de disco elétrico, um poderoso machado cruzou os céus perseguindo os monstros enquanto girava e roubava a atenção deles para si.
Assim, as pessoas presentes nas ruas caóticas conseguiam escapar do local da batalha com o mínimo de segurança possível.
Com isso em mente, Eslly focou em se aproximar do epicentro do caos. Lá estava uma garota enfrentando todos os monstros sozinha.
Como a arma dela ainda estava rodando pelo ar, a moça se encontrava enfrentando os monstros na base do combate corpo a corpo.
Por sorte, o simples fato de entrar em contato com ela já era suficiente para fazer os inimigos sofrerem com os raios que a envolviam. Todavia, isso não seria suficiente para lidar com tantos monstros.
Talvez por ainda ser inexperiente em combates reais ou por se encontrar exausta por ter que lidar sozinha com a situação, os movimentos da garota estavam cada vez mais pesados.
— Isso é mau. — Enquanto a moça se encontrava distraída e ofegante, uma das aberrações se esgueirou de forma silenciosa pelas costas dela.
Sem pensar duas vezes, Eslly materializou seu arco e carregou uma Flecha de Vento, contudo, mesmo que soubesse onde tinha que acertar, a mira parecia dançar em suas mãos.
Sentindo o coração bater a ponto de quase sair do peito, Eslly viu o desastre na iminência de se concretizar. Mais uma vez, outra pessoa morreria por causa da incompetência dele.
— Merda! — Suas cordas vocais quase se rasgaram devido ao grito, que anunciou o seu primeiro disparo após tanto tempo.
Como se visse tudo desacelerar, contemplou a flecha rasgar o pescoço da criatura de raspão, o que — para o desespero dele — não foi suficiente para fazer com que a besta parasse.
Contudo, quando ele pensou que estava tudo perdido, a garota se virou e, com um movimento abrupto, usou um de seus braços como escudo.
Mesmo que com a carne perfurada pelos grandes dentes irregulares da aberração, a moça envolveu o braço livre com eletricidade e — criando uma espécie de lâmina — decepou a cabeça da criatura.
— Ai! Ai! — praguejou enquanto balançava o braço ferido na tentativa de se livrar da cabeça bestial, a qual deixou vários furos, sangue e baba em seu corpo. — Eca! Que nojo.
— Ei! Você tá bem? — indagou o rapaz, assim que se aproximou. — Seu… Seu braço…
A moça o encarou com feições um tanto quanto confusas. Aquele cara parecia desesperado demais. Parecia até que ela iria morrer só por causa daquilo.
— Ah, tudo bem. Eu sou da Classe Guerreiro, sabe? — disse com um largo sorriso de orgulho estampado no rosto. — Nois é duro na queda.
— O-Oi? — Como alguém poderia ficar tão tranquilo após quase virar comida de monstro?
— Ah! E obrigado pela flecha e… pelo grito também. — Eslly pôde sentir um pouco de provocação na última parte. Mas o que mais o marcou naquele dia foi a fala seguinte: — Se não fosse pela sua ajuda, acho que eu não teria sobrevivido nem à minha primeira luta como membro da Academia.
Por alguma razão, aquilo fazia seu peito doer. Ele não se via sendo digno de agradecimento nenhum. Mesmo assim, no meio de todo aquele desespero, havia um pouco de alívio em seu coração.
Só então Eslly percebeu o significado por trás das palavras daquela garota: independente de quantas vezes ele acertasse, quando errasse uma única vez, as consequências poderiam ser desastrosas.
Contudo, se ele não estivesse lá para errar em algum momento, nem mesmo o primeiro dos seus acertos chegaria a acontecer — ele não salvaria ninguém.
Vendo que a moça estava usando energia espiritual para curar o ferimento no braço e já se preparava para continuar a enfrentar os monstros remanescentes nas redondezas, Eslly segurou o braço dela por impulso.
— Espera! — Com um pedido, que mais parecia uma súplica, ele disse: — Não sei se serei muito útil, mas me deixe acompanhar você.
Pega de surpresa, a garota demorou um instante para responder. Mas, no fim, a resposta era um tanto quanto óbvia.
— Será um prazer. — Então percebendo que ainda não haviam se apresentado, ela falou: — Ah, sim! Eu sou Tília.
— Eslly. — Sem perceber que naquele momento suas mãos tremiam menos do que o habitual, o jovem semi-humano abriu um simples e modesto sorriso. — Eu sou Eslly.
Continua no Capítulo 99: Monstrificação
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