Volume 2 – Arco 3
Capítulo 79: Fogo Amigo
A passos largos, Inveja percorria o último corredor que a separava da sala de reuniões. Por causa do cochilo de Lilith, as duas estavam a ponto de se atrasarem. Era bom que o mestre não fosse tão pontual naquele dia, ou elas estariam encrencadas.
— Yuunaa… — lamentava a outra logo atrás, arrastando-se pela parede com a mobilidade de um zumbi — me espeera.
Naquele estado, a Patrona da Luxúria estava mais para a representação do pecado da preguiça. Até a forma lenta e pausada de falar daquela garotinha, Lilith estava copiando.
— Me agradeça por não ter te abandonado antes. — Pegou sua parceira pelo braço e a puxou com força, assim como uma mãe faria com um filho rebelde. — Deixa de frescura.
Diferente do que Yuna esperava, Lilith soltou um sorrisinho discreto enquanto seguia cabisbaixa. Ser tratada de forma rude era o paraíso para uma masoquista. Dava até vontade de continuar fingindo aquela indisposição por mais tempo.
De repente, quando estavam quase chegando na porta da sala de reuniões, a Patrona da Inveja parou. Distraída, Lilith bateu de cara nas costas dela.
— Ui! — Sem entender a situação direito, levou uma mão ao rosto e coçou o nariz machucado. — O que foi que deu em vo…?
Só ao observar por cima dos ombros da sua amiga, ela veio a entender o motivo da parada repentina. Logo à frente das duas, mais um Patrono estava a ponto de se atrasar naquele dia.
Aquele troglodita caminhava de queixo erguido, carregando o habitual olhar sanguinário. O desgraçado não mudava mesmo. Fosse amigo ou inimigo, ele sempre os julgava baseado em sua força.
Como alguns dos seus companheiros se saíram mal em lutas contra membros das Academias, principalmente a Ziz, todos perderam valor diante dos olhos do grandioso Patrono do Orgulho — Romulus Superbus.
"Esse cara é um porre." Lilith estava escondida atrás de Inveja, e lá continuou. Estava aí uma das pessoas pelas quais ela não sentia nenhum pouco de atração.
Mesmo dali era possível sentir o cheiro do suor repugnante que exalava do corpo marombado daquele indivíduo. Ele parecia mais uma fera do que um humano.
Provavelmente se atrasou porque estava treinando que nem louco no supino. "Só pensa em músculo mesmo".
— O que fazem aí plantadas feito batatas?
Fuziladas pelos olhos animalescos do grandão, as duas se mantiveram em silêncio. Yuna sabia muito bem que só existia um Patrono pior do que ele para se irritar. Pena que Lilith não possuía o mesmo bom senso.
— Entrem logo de uma vez — disse, enquanto lhes lançava um último olhar de cima a baixo antes de colocar sua mão no dispositivo de entrada da porta — perdedoras.
Suas palavras carregavam o peso da derrota das duas. Yuna ainda estava incomodada pela surra que levou de Petra após sua oponente usar aquele poder desconhecido. O mais frustrante era que ela já estava a um passo da vitória.
Já Lilith, nem se incomodava tanto assim. Trevor a proporcionou uma dor bem saborosa quando decepou sua mão dentro do seu Espaço Dimensional.
Por um tempo até ficou chateado com ele, afinal foi frustrante ser derrotada. Mas agora não via a hora de reencontrá-lo para repetir a dose. Se bem que — dessa vez — pretendia usar alguns dos seus brinquedinhos com o nefilim.
Deixando isso de lado, a moça não ficou nem um pouco feliz com o jeito de falar do seu companheiro. Se tivesse zombado só dela estaria tudo bem, mas ele também falou mal da sua amiga.
— Humph! Olha só quem fala. — Tomou a frente de Yuna e levou as mãos até a cintura, alfinetando o grandalhão. — Metido a fodão, mas tomou um pau do tal do Raizel.
— O que disse?! — De imediato, o indivíduo arqueou os olhos ardendo em fúria para a garota que se mantinha em sua pose inabalável.
— Rum! — Empinou o nariz e rosto para o lado em um claro ato de desrespeito. — É surdo, além de um perde…?
Quando Orgulho estava para se esquecer da reunião e avançar contra a garota, pronto para desferir um soco que a jogaria corredor a fundo, Inveja se apressou a chegar pelas costas de Lilith e tapar a boca dela.
— Hm?! — Por mais que tentasse falar, suas palavras não passavam de meros sons estranhos enquanto estivesse com a mão de Yuna a silenciando. — Hm! Hm! Hm!
— Sem fogo amigo aqui, por favor — disse, ao passo que usava o braço livre para envolver a barriga de Luxúria, imobilizando-a de vez. — Você sabe que ela fala demais.
Assim como a garota esperava, o indivíduo parou a alguns passos antes de alcançá-las e, com um suspiro pesado, diminuiu a pressão imposta sobre o punho que havia fechado de forma inconsciente.
Aquele cara era um predador nato. O seu maior desejo consistia em caçar e subjugar as mais poderosas e formidáveis presas. Ele jamais aceitaria que entregassem uma vitória fácil em suas mãos.
Tendo consciência disso, Inveja usou sua astúcia para transformar Lilith em um mera ovelhinha indefesa, incapaz de reagir às provocações ou golpes do seu oponente.
— Tsc! Que seja. — Dando as costas às garotas, pôs-se a caminhar rumo à sala, mas não antes de dar o aviso afinal: — Vê se coloca uma coleira nessa cadela. Seria ruim se o seu pet desaparecesse do nada.
Livre de qualquer confusão, Yuna pôde respirar aliviada, ao menos até sentir algo úmido fazendo cócegas na palma da sua mão. Instintivamente, soltou a boca de Lilith em um salto.
— Q-Que deu em você?!
Dando um passo, limpou sua palma na lateral da saia, enquanto observava a outra que lambia seus lábios carnudos, como se saboreasse a mais deliciosa das refeições.
— O seu sabor. — Com um olhar sugestivo, levou um dedo até a boca. — Nunca vou esquecer dele, tá?
Por mais que tentasse formular algum argumento coerente, a mente de Yuna entrou em pane por alguns segundos. Depois de tantas tentativas, aquela garota conseguiu quebrar as suas defesas. Já era possível sentir o seu rosto enrubescendo.
Assim como Inveja fez com o Orgulho, Lilith também usufruiu da sua própria astúcia, juntando as mãos baixas em frente ao corpo e desviando o olhar de forma tímida.
— Você vai colocar uma coleira em mim mesmo? — indagou, ao passo que voltava a observá-la de canto de olho. — Isso seria tão cruel, sabe?
— Hã? — Juntando o que lhe restava de firmeza, pegou a garota pelo braço outra vez e a puxou com tudo para a entrada da sala de reuniões. — Eu já disse pra você parar com essas coisas!
Sem encarar a moça nos olhos, entrou na sala e — para a sua sorte — viu que todos, exceto o mestre, já estavam reunidos ao redor de uma grande mesa.
Logo soltou a sua parceira e se sentou em uma das cadeiras que ainda estavam desocupadas. Para sua frustração, Lilith sentou justo na cadeira ao lado da dela.
Aquela reunião tinha tudo para ser uma das mais irritantes que Yuna já participou. Nem começou, e ela já queria que acabasse.
Logo à sua frente, estava uma garotinha com os braços debruçados sobre a mesa, e o rosto enfiado entre eles. Se não a conhecesse, juraria que Trivia Ignai — a Patrona da Preguiça — estava dormindo.
Ao lado da mocinha estava aquele que falhou, junto a ela, em capturar Trevor para extrair a sua Habilidade Inata, Hoss Glutony — o Patrono da Gula. Como era de se esperar, o rapaz segurava algumas coxas de frango frito, as quais devorava sem dó.
Com a cabeça jogada para trás e encarando o teto, Avarus Murdock — o Patrono da Ganância — estava entediado por não ter algo de valor para apreciar naquela sala.
Um cara tão rico quanto o mestre da Perpetuum deveria ter pelo menos uma estátua de ouro colocada em um pedestal na sua famigerada sala de reuniões.
Os outros dois Patronos, por sua vez, estavam em meio ao mais puro silêncio. Romulus Superbus — vulgo Orgulho — se mantinha com os braços cruzados e com a cara fechada. Estava pouco a fim de interagir com aquele pessoal.
Já a garota ao seu lado — a única que não teve nenhum encontro com os membros das Academias — possuía cabelos pretos e curtos, além de um belo par de olhos tão vermelhos e perigosos quanto os de Raizel.
Com as mãos apoiadas nos braços da sua cadeira, ela transmitia uma calma e plenitude tão grande que se tornava difícil dizer que Elesis Hiratus — a Patrona da Ira — era a pior pessoa para se provocar dentre os integrantes daquele grupo.
Do nada, Lilith deu umas cotoveladas no braço da sua amiga, chamando a atenção dela. Como Yuna já esperava, a garota só tinha groselha para falar.
— Bando de gente esquisita — sussurrou, inclinando-se na sua direção. — Por isso eu só gosto de você.
De fato, a interação entre os Patronos do Pecado estava longe de ser das melhores. Poucos se consideravam como companheiros — muito menos como amigos. Fora o seu objetivo em comum, nada os mantinha unidos.
No entanto, antes que Inveja pudesse responder à garota, a porta se abriu pela última vez. Acompanhado pelo cientista louco, o mestre da Perpetuum — Ekron Percatuum — entrou sem falar nada e se sentou no assento reservado a ele.
Com a sua chegada, aqueles que se encontravam em posições mais relaxadas logo corrigiram suas posturas. Até mesmo Inveja sentiu seu corpo enrijecer.
Quando estava para engolir em seco, sentiu, por debaixo da mesa, um delicado toque acariciar as costas da sua mão. Contrariando a reação dos demais, Luxúria sorria para ela, em uma tentativa de acalmá-la.
"Você não entende o clima aqui, né?" Queria reclamar e colocar um pouco de juízo na cabeça daquela idiota. Um sorriso não servia de nada em um momento como aquele.
Mas, por mais que Yuna odiasse admitir, era fato que ela invejava o comportamento descontraído da sua amiga. Ela jamais seria daquele jeito, então, ter aquela garota por perto, era mais do que irritante.
O único que estava mais irritado do que ela era o homem que cruzou as pernas e apoiou o queixo em um punho fechado. Sem qualquer tipo de anestesia, Ekron anunciou:
— Vocês são… uma vergonha.
Continua no Capítulo 80: Açoite
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