O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 2 – Arco 1

Capítulo 66: Contrato Forçado

A dor em seu peito machucava mais do que ele poderia imaginar. Era como se centenas ou até mesmo milhares de agulhas invisíveis perfurassem o seu coração.

Que fosse com qualquer pessoa — que fosse com ele próprio — mas que a mulher deitada à sua frente naquela cama decrépita pudesse desfrutar de uma vida tranquila.

Antes de ser afligida pela doença que ceifou cerca de um terço da população europeia, aquela moça seria considerada uma beldade inigualável, uma mulher entre as mulheres.

Mas, naquele momento, seus sedosos cabelos castanhos estavam sujos e ressecados, desprovidos de qualquer traço de vida. Seu corpo magro e desnutrido já nem se aguentava em pé — apenas a morte a aguardava.

As manchas inchadas e inflamadas em seu pescoço e axilas denunciavam sem dó a causa do seu estado deplorável: a temível peste negra.

Seu sofrimento só era superado pelo do homem que a observava cabisbaixo na cadeira ao lado da cama.

— Ver a sua expressão de tristeza é o que mais me dói, querido — disse a pobre mulher.

O homem apertou os punhos e mordeu os lábios em frustração. Por debaixo daquela fria máscara de corvo, lágrimas clamavam por escorrer.

De que outra forma ele poderia se sentir? Mesmo sendo um dos médicos da peste, ainda era incapaz de tratar a pessoa que mais  amava.

Mesmo com seu rosto coberto pela máscara de corvo e o seu corpo envolto por uma capa preta — seu uniforme de trabalho — ela era capaz de ler perfeitamente as suas emoções.

Em outras situações não seria diferente, a moça perceberia se ele estava feliz ou triste. Ela o conhecia como a palma da sua mão.

O médico queria arrancar aquela máscara e olhá-la olho no olho. Despir-se daquela capa obscura e abraçá-la com todo o afeto do mundo.

Mas a moça se recusava a aceitar isso. As causas da doença ainda eram desconhecidas, e infectar seu querido era a última coisa que ela queria.

"Se for para morrer, que morramos juntos." Ele havia lhe dito, mas ela o repreendia sempre que o mesmo tocava no assunto.

"Viva. Eu quero que você viva, meu querido."

— Meredith… — falou, estendendo a mão para tocá-la. Queria senti-la uma vez mais, no entanto…

Cof! Cof! Cof! — A moça levou uma mão até a boca para conter a tosse.

Ao ver o sangue manchando a palma da mão e os doces lábios da sua amada, o médico gritou:

— Meredith! — Sem pestanejar, levantou-se da cadeira para ajudá-la. Todavia, tudo o que recebeu foi um sinal para que mantivesse distância.

— Fi… Fique longe — expressou com pesar. — Eu… Eu não quero que você passe por isso. Eu jamais… me perdoaria se te fizesse ficar assim também.

Naquele dia, aquele homem ficou disposto a recorrer a todo e qualquer meio para salvá-la. Fosse pela ciência, fosse pelo ocultismo, nada importava além da saúde da sua amada.

E foi nas artes das trevas onde pensou ter encontrado a solução. De forma surreal, em um certo dia, o médico alcançou a dimensão sombria de Setealém.

Todavia, o resultado estava longe de ser o desejado. Mexer com as artes das trevas acabou por amaldiçoá-la a viver preso naquele lugar.

Ele nem mesmo foi capaz de estar ao lado de Meredith em seus momentos finais. Tudo o que lhe restava era se tornar Corvus Pragis, aquele que desejava o que os outros mais valorizavam.

Se ele não poderia ter aquilo que tanto amava, se não poderia ser feliz, então os outros… também não.

— Me largue — ordenou o Rei enquanto jogava o desgraçado para longe com todo o ódio que possuía — seu corvo imundo!

Mesmo colidindo contra alguns escombros que flutuavam no ar, Corvus sentia que o seu trabalho estava feito. — Hihi! Idiota.

O monarca só entendeu o que o médico da peste quis dizer quando o som de uma lâmina cortando o ar foi captado pelos seus ouvidos.

Já era tarde demais, mesmo se virando o mais rápido que podia, seu peito foi rasgado de cima a baixo por uma lâmina ardente.

— Mas o quê…?! — De súbito, só pensou em se afastar o quanto antes.

A arma segurada por Raizel era diferente de qualquer outra que o rapaz havia mostrado até então.

As quatro asas angelicais do guarda-mão anunciavam a invocação da impiedosa Espada do Fim dos Tempos.

— Olha só — zombou o garoto. — Escapou de ser dividido em dois.

O Rei apenas riu daquelas palavras. Aquele garoto já tinha se esquecido de quem ele estava enfrentando? Um mísero corte era nada para alguém que podia reescrever a própria morte.

— É uma bela arma, mas é uma pena que eu posso simplesmente… — Por alguma razão, o ferimento em seu peito não se fechou. Independentemente do quanto tentasse alterar o passado, a ferida continuava lá. — O quê? O que você fez?!

— Permita-me te apresentar uma coisinha chamada de — disse, apontando a arma para ele — Ordem Superior.

— Im-Impossível… — O Rei observava a arma, estupefato.

Ainda que estivesse com a maior parte de suas habilidades seladas, a Espada do Fim dos Tempos continuava sendo um armamento projetado para um arcanjo.

Uma simples Lei de Mundo era insignificante perante ela. Mesmo o grande Rei de Setealém estava sujeito às suas feridas incuráveis.

"Esse desgraçado…", pensou enquanto mordia os lábios a ponto de fazê-los sangrar. "Esse desgraçado pode me matar?!"

Aquela inquietação que lhe afligia o coração era algo que não sentia a muito, muito tempo: o cruel abraço do medo.

— Eu me recuso a aceitar isso!

Batendo suas mãos uma contra a outra, toda a dimensão cedeu à sua vontade e uma grande massa de energia passou a se condensar ao redor dele, formando uma espécie de casulo.

— Fútil — disse Raizel, desapontado, preparando-se para cortá-lo de novo.

Uma vez ferido pela Espada do Fim dos Tempos, era impossível escapar do seu alcance, independente de para onde o alvo fugisse — fosse naquela dimensão ou até mesmo em outra.

— Você precisa acabar com ele logo — expressou a voz rouca do médico da peste, o qual se aproximou ao ver que o monarca entrou na defensiva. — Aquele ataque… você não pode recebê-lo.

De fato, Raizel podia sentir muito bem o que estava acontecendo ali. Toda a energia da dimensão de Setealém estava se reunindo em um único ponto: naquele casulo medonho.

Oh! Vai me dizer que tá preocupadinho com a gente?

Hihi! Cof! Cof! — riu com dificuldade, suas costas ainda doíam por causa do golpe que recebeu. — Eu só quero que ele morra.

— Senhor Corvus — indagou, educadamente, a moça que também se aproximou — por que veio ajudar a gente?

— É simples, mocinha. — Olhando para o casulo sombrio logo acima com pesar, respondeu: — Enquanto ele estiver vivo, esse lugar vai existir.

Os gentis olhos azuis da garota falavam que continuavam sem compreender a situação dele. Parecia que o seu parceiro não tinha contado tudo para ela.

— Enquanto esse lugar existir, a minha maldição continuará.

— Maldição? — falou baixinho, refletindo consigo mesma. — Você esteve aqui sozinho e amaldiçoado? Deve ter sido bem difícil.

Huh? — Tanto Corvus quanto Raizel foram pegos de surpresa pela reação da garota.

O médico já havia pensado nisso antes, quando a viu pela primeira vez: "elas eram parecidas".

Aquela moça lembrava a sua falecida amada, por isso propôs a Raizel que a deixasse naquele lugar como forma de pagamento pela passagem dele de volta.

Mas, agora, era diferente. Após pensar com mais calma, ele jamais aceitaria vê-la vivendo em um lugar tão decadente como aquele por todo o sempre.

— Eu sinto muito, mocinha — falou, ao passo que Petra desaparecia em um piscar de olhos.

— O quê? — Raizel, que mirava um ataque no casulo do Rei, teve todo o seu foco direcionado para o homem da máscara de corvo. — Corvus!

Em um movimento imperceptível, direcionou para Corvus Pragis o ataque que preparava para o cara do casulo, enfiando a espada flamejante no peito do homem amaldiçoado.

Argh! — praguejou, ao passo que cuspia uma grande quantidade de sangue. — Que insano. — Sem medo, encarou os olhos escarlates que o observavam com fúria. — Você realmente pode matá-lo.

— O que… você… fez?!

— A única coisa que eu posso fazer, garoto. — Ele nunca foi um guerreiro, mas ainda possuía uma habilidade especial. — Eu mandei ela de volta para a Terra.

— Minta para mim, e eu te farei ter um destino pior do que o daquele reizinho caduco.

Haha! Cof! — Logo tirou uma pequena esfera do bolso do sobretudo preto. — A sua passagem de volta. Ela só vai ativar quando o Rei morrer.

Aquele era um contrato especial firmado à força entre os dois maiores inimigos do Rei de Setealém.

Tsc! — Pegando o dispositivo, chutou o indivíduo para trás e retirando a espada do peito dele. — Me diz isso depois de reduzir o nosso poder de fogo?

À primeira vista, a atitude de Corvus de mandar a garota embora foi um tiro no próprio pé, mas o que o homem realmente queria era provocar uma certa reação.

Haha! — expressou, enquanto passava a mão no ferimento que ardia como se um sol estivesse queimando dentro de si. — Eu sei, melhor do que ninguém, o que um homem é capaz de fazer pela mulher que ele ama.

Para a surpresa do médico, o nefilim deu as costas e recolheu tanto a Espada do Fim dos Tempos quanto as asas escarlates.

— O-O que você pensa que tá fazendo, moleque?!

— Cala a porra dessa boca.

Corvus Pragis travou de imediato no momento em que viu que os cabelos de Raizel começavam a mudar de vermelho-sangue para um roxo perturbador.

"Q-Que sensação é essa?" Era como se o calor abrasador em seu peito fosse substituído pelo frio imparcial da própria morte.

Então, puxando a luva da sua mão direita contra o pulso, o nefilim disse para o Rei no casulo enquanto seus olhos também ficavam roxos e brilhavam como se refletissem estrelas — ou melhor, a imagem do próprio universo:

— Isso vai acabar bem rápido.


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