O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 2 – Arco 1

Capítulo 62: Corvus Pragis

Por alguma razão, era impossível sentir qualquer indício de hostilidade vindo daquele estranho ser, o que era algo incomum, visto que tudo ali parecia querer matá-los.

Ou, quem sabe, suas reais intenções estivessem apenas escondidas por baixo do sobretudo preto, o qual se destacava tanto quanto a cartola e a máscara de corvo.

Dado alguns acontecimentos bizarros do passado — desconhecidos por muitos — o antigo médico da peste se viu, em algum momento, amaldiçoado a viver para sempre em Setealém.

No entanto, ele recebeu algo em troca — algo que parecia uma bênção, mas fazia parte de sua maldição: Corvus Pragis se tornou capaz de ver e acessar os portais que ligavam aquela dimensão à Terra.

Assim a sua maldição seguia: guiando os outros para um lugar que estava ao alcance das suas mãos, mas que elas jamais poderiam tocar.

— Então… vocês querem sair daqui, correto? — indagou o antigo médico com a sua voz rouca, como se estivesse afetado pela doença a qual deveria combater. — Hi! Hihihihi!

Huh… — Mesmo que não sentisse hostilidade vindo do homem, Petra se via na defensiva. Tudo naquele indivíduo era estranho e suspeito.

— Procure algum otário para roubar, Corvus — afirmou Raizel, fazendo um sinal de desaprovação com a mão e, logo em seguida, como se estivesse espantando um animal para longe. — Vaza daqui.

Hum?! — Ainda que estivesse com o rosto coberto pela máscara de corvo, era possível imaginar as feições de surpresa de Corvus Pragis ao ouvir aquilo. — Você…

Mesmo que os cabelos e os olhos estivessem com cores diferentes, o antigo médico da peste jamais esqueceria aquela postura arrogante e aquela presença imponente.

Ah, sim! — Só então Raizel percebeu que ainda estava cobrindo seus cabelos e olhos com a energia preta, mesmo que já não estivesse mais na Terra. — A necessidade de usar essa aparência já acabou.

Logo seus cabelos e olhos pretos retornaram ao habitual tom de vermelho-sangue. O mesmo ocorreu com a aparência da sua parceira.

— Sabe como é, né? — disse com um sorriso altivo. — Força do hábito.

Oh! Quando foi a última vez que você pisou nessas terras? — indagou, enquanto coçava seu pescoço com as unhas sujas. — E quem diria que dessa vez iria trazer algo pra pagar a passagem?

Um frio logo percorreu a espinha de Petra. Os instintos dela apontavam com todas as forças que os olhos da criatura estavam encarando-a com ganância por detrás daquela máscara.

— Como eu já disse: "procure algum otário para roubar".

Petra, que até então esteve em silêncio e sem entender quase nada do que estava se passando, decidiu perguntar para o seu parceiro:

— O que é esse tal de "pagamento", afinal?

No entanto, antes que o rapaz pudesse responder, o outro se pôs na frente com uma empolgação duvidosa.

— Apenas um preço justo, bela moça.

— Ou seja, o que a pessoa mais valoriza. — Com os braços cruzados, direcionou um olhar afiado para o indivíduo, indicando que o mesmo deveria manter distância.

Mãos, olhos ou pés… o que alguém deveria sacrificar para retornar à sua rotina comum na Terra? Se bem que essa rotina ainda seria "comum" após perder algo tão importante e passar por uma experiência tão traumática?

Todavia, dado o terror de Setealém, alguns aceitariam a proposta do estranho ser sem muita hesitação: dariam tudo para fugir dali. Esses eram os clientes que Corvus mais adorava.

— Da última vez, você não tinha nada para me oferecer, garoto — disse, olhando mais uma vez para a moça — mas vejo que agora é diferente.

Petra quase deu um passo para trás, mas manteve seus pés firmes e mordeu os lábios, inquieta.

— Deixe a garota aqui e retorne para o seu mundo. — Seus lábios salivavam só de imaginar o quanto lucraria naquele dia, parecia não perceber o risco que corria. — Hi! Hihihihi!

No entanto, a resposta do nefilim veio de uma forma que atingiu o orgulho do antigo médico da peste como uma flecha.

—  Hahaha! — riu, ao passo que levava uma mão ao rosto. Nunca ouvira uma proposta tão ridícula em toda a sua existência. — Que idiota.

— O quê?! — Pela primeira vez, o ex-humano demonstrou raiva e hostilidade. — Eu estou apenas propondo um negócio justo!

— Nunca fui bem-vindo, seja aqui ou em qualquer outro lugar. Então, me diga, por que fecharia esse negócio?

Aí estava o tipo de cliente que Corvus mais detestava: as pessoas que não tinham nada a oferecer ou não estavam dispostas a abrir mão de nada.

— Agora aproveita que essa piada me deixou de bom-humor e vaza daqui — expressou, ao passo que apontava a Espada do Princípio em direção ao médico — ou eu acabo com a sua maldição te matando agora mesmo.

— Maldito seja! — vociferou enquanto seu corpo se desfazia em uma poça de lama escura. — Um dia você vai se arrepender disso! Um dia vai perder o que mais ama! Todos perdem!

Aos poucos, a poça de lama foi absorvida pelo solo pútrido e sumiu dali como se nunca houvesse existido, deixando os dois sozinhos para trás.

Ao fim de tudo, a garota podia sentir os pelos eriçados de seus braços. Era como se realmente estivesse dentro de um pesadelo.

— Ele dava calafrios. — Com um sorriso simpático, Raizel colocou uma mão sobre os cabelos dela e fez um pequeno carinho. — Vocês tinham comentado algo sobre os Olhos do Rei, né?

— Eles já devem estar chegando. — disse, ao passo que olhava para o horizonte. — É melhor mostrar na prática.

Todavia, o ataque sorrateiro veio pelas costas. Sem fazer o menor barulho, uma fenda se abriu no espaço, e um monstro semelhante a um cachorro raivoso saiu dela.

Huh?! — Surpresa pelo que viu, Petra sentiu um calafrio ao ver que seu parceiro seria mordido. — Rai!

Sem pensar duas vezes, usou a Repulsão Gravitacional para jogar a criatura para longe, no momento em que os dentes dela alcançariam o rapaz.

Oh! Eles nunca mudam — disse no momento em que fez um movimento com a mão em direção à sua parceira. — Permita-me retribuir o favor.

Várias espadas surgiram para perfurar um segundo cachorro demoníaco, o qual se esgueirou por outra fenda, dessa vez, nas costas de Petra.

O animal ainda foi lançado para longe pela habilidade da garota, assim, os dois escaparam do ataque surpresa dos monstros.

— O que são esses cachorros? — perguntou, espantada.

Aos poucos, várias fendas dimensionais se abriam ao redor do duo. Uma quantidade incontável de cachorros demoníacos os cercaram, fosse pelo chão ou flutuando no ar.

Canis Infernum — respondeu Raizel ao observar a aparência das criaturas raivosas. — Os Carrascos do Rei.

Tão grandes que, mesmo em quatro patas, poderiam se equiparar à altura dos dois.

A pelagem rala dava lugar a músculos expostos e carne cheia de bolhas, da mesma cor que seus olhos bestiais.

Suas bocas eram repletas de afiados dentes irregulares capazes de perfurar e rasgar aço como se fosse papel.

Uma única coisa poderia ser perceptível nas feições dos Canis Infernum: o desejo feroz de saciar sua fome incessante.

Esse desejo logo foi compreendido por Raizel e Petra que se colocaram de costas um para o outro, visando evitar mais ataques vindos de pontos cegos.

— É isso o que acontece quando alguém é visto pelo All in One — explicou para a garota que olhava de um monstro para o outro. — Os olhos daquela massa de carne estavam conectados diretamente ao governante desse lugar.

— Parece que ele não gosta muito de visitantes.

— É, pode ter certeza disso.

Os dois se inclinaram para a frente, preparando-se para avançar contra as criaturas que rosnaram e salivaram de fúria.

— Dessa vez é cada um por si, senhorita. — Logo Círculos de Propulsão formaram-se aos pés de ambos. — Manifestem-se, Cadeias de Abaddon.

As correntes surgiram do chão e dispararam com as pontas afiadas contra os Canis Infernum, forçando as criaturas a desfazerem sua posição de forma desorganizada.

Aproveitando a oportunidade, Raizel e Petra dispararam com o auxílio dos Círculos de Propulsão e iniciaram o contra-ataque.

Em um piscar de olhos, o lugar foi tomado por diversas linhas vermelhas e prateadas, as quais marcavam o trajeto dos dois de um círculo até o outro.

Tal cena deixou os monstros desorientados. Era muito difícil prever os movimentos das suas presas enquanto continuassem naquela velocidade.

Uma grande fúria foi descarregada dos olhos rubros durante o tempo em que alguns dos cães demoníacos caíam um após o outro, dilacerados pelas espadas.

Os monstros, que se mantinham de pé, soltaram um vapor quente carregado de ódio das suas narinas. Estavam indignados, eles deveriam ser os predadores, não as presas.

Puxando a mágoa do fundo dos seus pulmões, um ardor de enxofre percorreu suas gargantas, manifestando-se na forma de labaredas escaldantes.

O calor inundou o ambiente e forçou Raizel e Petra a entrarem em modo de defesa — era isso ou seriam queimados vivos.

A garota ativou um escudo de energia ao redor de si para se proteger do fogo infernal, o qual se alastrou por todos os lados.

Aos poucos, as construções decrépitas começaram a derreter, e o solo passou a se tornar magma puro.

Com exceção dos Canis Infernum, ninguém era capaz de se manter confortável ali. Até mesmo os Hominum Tenebris das redondezas tiveram a infeliz sorte de serem cremados a ponto de se tornarem cinzas.

Ufff!… — suspirou a garota, ao passo que o suor escorria pela sua testa. Até mesmo sua respiração estava ficando quente. Os seus pulmões ardiam. — Huh?

De repente, todas as chamas passaram a ser sugadas para um único ponto, deixando tanto a moça quanto as criaturas surpresas.

— O fogo do Klaus era mais quente. — disse Raizel, ao passo que suas mãos absorviam todo o fogo infernal. — Agora é o meu turno.

Pela sua vontade, as Cadeias de Abaddon se enroscaram nos pescoços dos cães, obstruindo parcialmente a passagem do fogo e puxando seus focinhos contra o chão.

De repente, o comportamento animalesco dos Canis Infernum se esvaiu e, em vez de ficarem se debatendo nas correntes, eles simplesmente se acalmaram.

Oh! Parece que nós fomos reconhecidos?

Os animais deram uma última olhada de desprezo para os invasores e se lançaram nas fendas dimensionais, partindo ao encontro do seu dono.

— Isso foi reconhecimento? — Após ver aquelas feições de desgosto, Petra tinha dificuldades em acreditar que aquelas coisas os reconheceram ou algo do tipo.

— Talvez "desafio" seja uma palavra mais adequada, senhorita — disse, enquanto acenava para que a moça o acompanhasse até um certo lugar. — É raro ver aquele louco se dispor a ficar na linha de frente.

Mas, de qualquer forma, se quisessem um meio de sair dali sem a ajuda de Corvus Pragis, cedo ou tarde os dois teriam que enfrentar o maldito Rei da Catástrofe.



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