Volume 2 – Arco 1
Capítulo 61: All in One
Era dito que a dimensão sombria surgia quando menos se esperava. Um mundo devastado e mórbido repleto por criaturas medonhas, as quais se alimentavam do medo e viviam na escuridão.
Alguns até ansiavam por visitar tal lugar, outros temiam a sua existência; alguns buscavam, através de diversos tipos de rituais, adentrar seus domínios, outros caíam ali por acidente.
As formas de acessar as suas portas de entrada eram desconhecidas e, por vezes, inconsistentes, bem como as de saída.
Podia-se dizer que estavam espalhadas por todos os lados, ao mesmo tempo que não estavam em lugar nenhum.
De qualquer forma, era terrível imaginar-se abrindo a porta de um elevador e deparando-se com um estacionamento — o qual deveria estar cheio de carros — abandonado, sujo e repleto de sangue.
Ou, quem sabe, subir em um ônibus, que traçou um percurso incomum ao habitual, e descer num mundo desconhecido repleto de caos.
Poderia-se dormir no conforto de uma cama e acordar em meio a trapos — que se assemelhavam a panos de chão — fedidos, nojentos e… pegajosos.
— O ar daqui continua tão fúnebre quanto eu me lembro — disse Raizel, enquanto observava a acrópole.
Após lidarem com vários daqueles seres humanóides, os dois decidiram escalar até o alto de um dos prédios decadentes de Setealém.
— De onde vem esse cheiro ruim? — Petra levou uma mão até o nariz. Ainda não tinha se habituado ao odor podre de carniça e esgoto que se espalhava por todos os lados.
À sua frente, era possível reparar as ruínas e os rastros da destruição do que antes já foi uma cidade "comum".
As nuvens cinzas cobriam o céu e impediam a entrada de pouquíssimos raios de um bizarro sol vermelho.
Abaixo, mais dos seres humanoides caminhavam pelas ruas sujas e bagunçadas. Alguns caminhavam pelo aberto, outros se esgueiravam pelas sombras.
Só depois de tanto lutar contra aquelas criaturas, Raizel explicou para a garota que, na verdade, aquelas coisas uma vez já foram humanos comuns, mas que agora eram conhecidas apenas como Hominum Tenebris.
Atualmente, seria exagero chamá-los de "pessoas", apesar do seu corpo humanoide. A pálida pele cinza, os profundos olhos negros e a falta de proporção nos membros denunciavam a sua monstruosidade.
— É, ao que parece, sem sinal de qualquer saída. — Raizel observava o lugar, com as runas faciais ativadas, em busca do que fosse qualquer portal para sair dali.
Assim como era possível cair em Setealém do nada, também era possível sair de lá da mesma forma.
O problema estava em sobreviver até esse momento, que poderia levar minutos, horas, dias ou anos.
E os dois não tinham o privilégio de esperar tanto tempo. Procurar por uma falha no tecido da realidade era a melhor opção.
"Nesse ritmo, o jeito é ter que ir até aquele lugar", pensou enquanto direcionava o olhar para um pequeno ponto ao longe.
Petra, por sua vez, observava o seu parceiro pensativo. Ela estava um pouco impressionada com o fato de ele suportar o fedor do lugar, mesmo após aperfeiçoar seus sentidos com as runas.
Por estar olhando para uma direção diferente da do rapaz, ela avistou algo que lhe chamou a atenção e passou despercebido por ele.
— Rai, o que é aquilo?
Ao olhar para onde a sua parceira apontava, o rapaz cerrou os olhos. Parecia que aquele lugar não iria facilitar para o lado deles mesmo.
— Essa coisa já deu as caras?
Acima das nuvens cinzas, uma grande mancha negra se movia lentamente sem fazer qualquer barulho ou dar sinal de vida.
— Você conhece aquilo?
Das outras vezes em que caiu naquela dimensão, levou mais tempo para se encontrar com aquela bizarrice.
— All in One — disse, encarando a grande mancha negra com seriedade — os Olhos do Rei.
Como se reagindo às palavras do rapaz, vários pontos vermelhos se acenderam pelo corpo da criatura.
Ao mesmo tempo, um barulho macabro, como as vozes de vários animais, ecoou do meio das nuvens.
Os dois já tinham visto de tudo em Setealém, mas aqueles gritos… aqueles gritos foram de gelar a espinha.
— Parece que o nosso intervalo acabou, senhorita. — Sem perder tempo, logo materializoi a Espada do Princípio. — Manifeste-se!
De repente, vários tentáculos de carne dispararam como flechas desde o alto, cortando o ar e mirando bem nos seus alvos que, por sua vez, pularam pela lateral do edifício.
O ataque do monstro reduziu toda a parte superior da construção de concreto a pó, e o restante desmoronou devido ao impacto e ao seu estado precário.
Em meio à poeira dos destroços, Petra manifestou a Bellatrix, ao passo que seus ouvidos captaram o zunido de algo se aproximando.
Foi quando vários lasers de sangue surgiram do meio da poeira, cercando-os por todos os lados.
Raizel se viu forçado a defender-se usando um escudo de energia, pois como o ataque era orgânico, a Absorção de Energia seria inútil naquela situação.
Já a garota conseguiu absorver parte do dano com a Bellatrix, o que deixou a espada mais forte, enquanto desviava do restante dos ataques.
— Vamos! — gritou Raizel, no momento em que criou um Círculo de Propulsão para sair do meio da poeira.
Sua parceira seguiu o exemplo, e ambos dispararam para cima, abandonando os seios da poeira.
Continuar ali apenas daria vantagem para o inimigo que estavam enfrentando — o monstro apenas permaneceria atacando-os de seus pontos cegos.
Uma vez nos céus, era possível ver claramente a aparência da criatura que desceu do alto das nuvens.
— Isso é… — Em um movimento instintivo, Petra levou uma mão até à boca, com certa feição de nojo.
— Já se passaram tantos anos. — Em meio a uma pequena risada, o nefilim debochou: — Mas você continua tão feio.
O ser à sua frente se assemelhava a uma enorme massa de carne viva cheia de olhos vermelhos, olhos estes que eram derivados dos animais impregnados a seu corpo.
O ser grotesco conhecido como All in One era uma mistura de vários animais em um só: vacas, ovelhas, cachorros, gatos, girafas, leões, e o que mais se pudesse imaginar.
De todos os inimigos que os dois já tinham enfrentado, aquele era de longe o mais medonho — uma verdadeira visão do inferno.
As inúmeras cabeças da criatura começaram a gritar e se contorcer em fúria. Logo se pôs a atacar novamente e da forma mais descontrolada possível.
Lançou os seus tentáculos de carne mais uma vez e começou a girar, desferindo diversos ataques por todos os lados e criando um verdadeiro vórtice no céu.
O duo estava prestes a ser puxado pelo ar em direção ao centro de atração do vórtice de All in One. Caso algo não fosse feito, eles seriam destroçados pelos tentáculos, que se afinaram como lâminas cortantes.
Com os braços cruzados, Raizel manteve-se calmo, nem mesmo esboçou intenção de resistir à investida do seu algoz. A tarefa de lidar com aquela situação cabia a outra pessoa.
"Ele é todo seu, senhorita."
Quase que instantaneamente, o monstro parou em pleno ar. Independente do quanto tentasse, o Centro Gravitacional que Petra criou nele o impedia de se mover.
— Agora sim! — exclamou Raizel.
Uma grande quantidade de espadas surgiu ao redor da criatura e foi disparada contra ela em alta velocidade, mais precisamente, em direção aos olhos.
Um a um, os globos oculares de All in One foram perfurados, fazendo uma espécie de líquido negro escorrer a partir deles.
— Vá… ao chão! — Os gentis olhos azuis de Petra brilharam com forte determinação, e a grotesca massa de carne foi puxada para baixo.
Passou descendo como um meteoro até que colidiu com brutalidade contra o chão, esmagando alguns Hominum Tenebris que estavam por perto e espalhando uma grande quantidade de sangue por todos os lados.
No entanto, isso não seria capaz de parar os Olhos do Rei. Os animais que o compunham grunhiram para o alto, ao passo que usava seus tentáculos para se reerguer.
— Não tão rápido, amigão — disse o nefilim, enquanto criava uma grande lança acima das nuvens e a fez despencar com tudo. — Isso acaba aqui.
A arma que rasgou os céus foi a mesma que perfurou o corpo de All in One, espalhando destroços para todos os lados e fez o chão tremer.
Os decadentes prédios das redondezas se abalaram e ficaram a ponto de cair. Foi quando a lança emanou um forte brilho vermelho, o que anunciava a sua auto destruição iminente.
A arma explodiu varrendo o corpo da criatura e qualquer rastro de vida que houvesse ao redor.
As ondas de choque, que se espalharam pelo ar e pela terra, foram sentidas desde longe, mas não foram capazes de abalar os dois que flutuavam vitoriosos acima.
— Você se saiu bem, senhorita. — Fazia um leve carinho na cabeça dela, ao passo que desciam e se aproximavam da cratera abaixo de si.
— Eu pensei que ia ser mais difícil — ressaltou enquanto sentia seu corpo relaxar devido às carícias em seu cabelo. Raizel sabia muito bem como fazer aquilo.
— O problema maior não era enfrentar aquela coisa.
Confusa com a fala do seu parceiro, Petra estava para pedir que ele a explicasse melhor, todavia logo foi interrompida por uma estranha risada macabra, que soou atrás dela.
— Hi! Hihihihi!
Já preparados para o pior, os dois se viraram em direção ao som. Raizel quase cuspiu no chão ao reconhecer aquela risada sádica. Outro ser maldito resolveu dar as caras.
— O Problema, doce moça — disse o indivíduo de casaco preto e máscara de corvo, o qual se manifestava da escuridão — é que vocês foram vistos pelos Olhos do Rei. Hi! Hihihihi!