O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 1 – Arco 4

Capítulo 39: Xeque-Mate

— É, parece que a minha escolha foi ruim mesmo.

Sophie observava o movimento das pessoas ao redor. Todas as mesas espalhadas pelo vasto salão estavam cheias de adultos e crianças que testavam os produtos dos outros alunos. A mesinha de Sophie, por outro lado, possuía um tabuleiro de xadrez solitário.

Aquele seria um tabuleiro comum se não fosse pelas peças feitas de vidro que refletiam o mínimo de luz que as alcançasse. Além disso, as peças e casas pretas foram substituídas por outras de cor verde-esmeralda.

“Eu deveria ter escutado o pessoal. Quem teria interesse em um jogo tão antigo?”

— É um belo tabuleiro — disse um rapaz que se aproximou tão sutilmente que a pequena Sophie quase deu um pulinho para trás e cai da cadeira que estava sentada. — Eu nunca joguei com peças de vidro antes.

— O senhor... — Era um tanto quanto estranho chamar aquele rapaz de "senhor'', eles tinham praticamente a mesma idade. Eh… Você conhece o jogo?

— O meu mestre me ensinou. Segundo ele: "se eu não puder vencer o meu adversário em um jogo, em que o venceria?"

Que mestre mais estranho.

— Então… nós podemos jogar? — O garoto a desafiou sem a menor hesitação. Mal sabia ele com quem estava se metendo.

No fim, ela aceitou o confronto — era o primeiro, e talvez o único, que recebia.

Era reconfortante ter o seu trabalho reconhecido. Nenhum dos seus colegas de classe aderiu à ideia de desenvolver um jogo antigo para um evento escolar. Mas Sophie ficou maravilhada ao descobrir esse jogo quando criança.

Ela jogou sozinha tantas vezes que mesmo o seu oponente demonstrando destreza durante as partidas, ele perdeu três vezes seguidas. Ainda assim, ela ficou surpresa por encontrar alguém que conhecia estratégias tão boas.

“Se o Raizel visse isso, ele ia me chutar de um penhasco, certeza”, pensou o rapaz enquanto segurava a peça do rei esmeralda. — É, eu perdi de novo.

— Obrigada por jogar comigo, sen… — Só então ela se deu conta de que ainda não sabia o nome dele. — Eh… Qual é o seu nome?

Ah, sim! Pode me chamar de Trevor — disse, fazendo uma breve reverência. Quando também iria perguntar o nome dela, o garoto estranhou o fato daquela mesa estar tão vazia em meio a outras tão lotadas. — Por que ninguém mais vem jogar?

Depois de tê-la animado tanto, ele acabou por tocar bem na sua ferida.

A garota abaixou a cabeça, evitando encarar o rapaz. O momento foi bom enquanto durou, mas assim que Trevor saísse, ela estaria sozinha de novo.

— A minha ideia foi ruim.

— Eu discordo. — O garoto apontou a peça que estava segurando para ela, como se a estivesse intimando por um crime grave: duvidar de si mesma. — Essas pessoas mal sabem o que estão perdendo.

Hã? — Como ela poderia reagir a isso? Alguém a estava apoiando mesmo?

Até os seus pais acreditavam que era um desperdício usar o seu talento para pesquisa em algo tão idiota quanto jogos.

Sua filha deveria procurar objetivos mais relevantes do que aqueles jogos inúteis. Ela tinha um futuro brilhante pela frente, mas o seu hobby estranho era uma total perda de tempo.

Infelizmente, antes que a garota pudesse falar algo, sons de explosões e grunhidos de monstros ecoaram do lado de fora da escola.

O rapaz na sua frente se levantou num pulo e olhou para a direção do barulho de imediato.

— Isso só pode ser brincadeira.

Um pequeno tremor precedeu a explosão da parede mais ao fundo, e alguns monstros apareceram dilacerando as pessoas próximas. Em menos de um segundo, o caos se espalhou por todos os lados.

De repente, o espaço ao redor das pessoas ficou distorcido, e os monstros se viram incapazes de alcançá-las com as suas garras sedentas por sangue.

— Tão poucos? — indagou-se o rapaz, analisando a situação.

Se esse era o caso, então aqueles bichos eram apenas os remanescentes de algum portal que se rompeu em outro lugar.

Sem perder mais tempo, o garoto partiu dali em direção ao buraco na parede, desaparecendo da visão de Sophie em meio ao alvoroço que tomava conta da multidão.

Por alguma razão, seu peito bateu forte e, sem se dar conta, a garota partiu atrás dele, passando com dificuldade pela multidão que a apertava. Mas ela queria ver, ela queria ver o que ia acontecer.

Porém, a visão do lado de fora fez seu estômago embrulhar. Sangue e pedaços de corpos e tripas estavam espalhados por todos os lados. No momento era até difícil discernir o que era pedaço de monstro e o que pedaço de gente.

Mas o que mais lhe chamou a atenção foi Trevor perfurando uma espécie de libélula gigante no ar. Só que ter se aproximado muito do monstro foi um erro grave para o garoto. Aproveitando a chance, a criatura conseguiu prendê-lo em um movimento rápido.

Outra libélula veio por trás, pronta para perfurar as costas dele quando uma flecha de energia explodiu sua cabeça.

Quando Trevor olhou para a direção de onde a flecha veio, viu Sophie segurando um pequeno arco.

Assim o rapaz conseguiu se soltar e, com a ajuda de alguns duos que estavam chegando, ele finalizou o restante dos inimigos e foi até a garota que o salvou.

— Quem diria que você possui uma Habilidade Inata?

— Manipulação Temporal. — Ao que sua voz ficava mais fraca, o arco em sua mão sumia. — Mas o campo de batalha não é o meu lugar. Eu só sirvo pra pesquisar.

Era o que ela dizia, mas o pesar em sua voz expressava o contrário, e o rapaz reparou nisso.

— Eu manipulo o espaço — disse enquanto retirava um pequeno medalhão do seu relógio. — Se mudar de ideia, use isso  quando ingressar na Academia de Batalha. Eu irei até você.

Hã?

— Tempo e espaço, heim? — refletiu com o olhar para o alto e uma mão no queixo. — Nós seríamos uma dupla e tanto, não acha?

Essa foi a primeira vez que alguém a incentivou a colocar sua vida em risco em um campo de batalha. Esse momento ficaria para sempre marcado em sua memória.

— Ainda vai levar uns três anos até que eu possa fazer o teste, e talvez eu nem  passe de primeira.

— Eu espero — disse, estendendo a sua mão com o medalhão para a garota. — Eu ainda quero uma revanche no xadrez.

Sophie pegou o medalhão com as duas mãos, ele era feito de metal, mas ela o segurou com a mesma delicadeza que segurava as peças de vidro do seu jogo.

— Se der tudo certo, eu quero treinar com o mesmo mestre que você.

— Não, não, não. — Trevor repentinamente começou a balançar as mãos em sinal de negação. Colocar ela pra treinar com aquele maluco? Nem pensar. — Eu treino você.

A garota riu do comportamento do rapaz. Aquilo simplesmente não combinava com ele, mas foi o suficiente para diminuir um pouco da tensão.

Só ao retornar para a Academia de Batalha, Trevor perceberia que esqueceu de devolver a peça de xadrez que estava segurando no momento em que os monstros começaram a atacar.

Trevor estava sentado com alguns papéis em mãos na sala do Laboratório de Análises da Academia. Enfim, os resultados dos interrogatórios dos prisioneiros que eles capturaram em Oprantis havia saído.

— Quase nada — lamentou o rapaz.

— Perpetuum, não é? — Sophie segurava uma cópia dos papéis na cadeira ao lado do seu parceiro. — O que essa gente quer, afinal? Tipo, o que alguém pode ganhar criando portais?

Infelizmente, os prisioneiros possuíam poucas informações relevantes para compartilhar, mesmo obtendo bons termos com a justiça por contribuírem para a investigação.

Como a tal organização denominada Perpetuum usava pessoas comuns para abrir os portais era difícil conseguir alguma informação decente delas, embora fosse fácil capturar essas pessoas antes de usarem a Pirâmide de Hórus.

O dispositivo usado para criar os portais possuía o formato de uma pirâmide com um olho esculpido em um dos lados, por isso, mesmo que não soubesse o seu nome real, Sophie decidiu nomeá-lo de Pirâmide de Hórus.

— Parece que a gente anda, anda e não sai do lugar. — A moça já estava para jogar as folhas daquele relatório em cima da mesa e ir tomar um ar.

De repente, alguém bateu na porta, solicitando permissão para entrar. Quem entrou não foi ninguém menos do que a própria técnica-chefe, Giovanna, carregando mais papéis.

— Vocês esperaram muito?

Hm! Hm! — Sophie negou. — Você descobriu a origem da essência bestial que a gente te entregou?

Assim como suspeitado, a garota Luxúria carregava a essência de um monstro misturada na sua energia espiritual. Mas Trevor e Sophie não conseguiram identificar o monstro.

Então eles passaram essa tarefa para o pessoal do Laboratório de Análises consultarem na sua base de dados. O motivo de tanta dificuldade estava estampado nas feições de Giovanna.

— Aquela essência bestial era de um monstro de Erebus.

— Do Continente Sombrio? — Não era à toa que eles tiveram tanto trabalho para identificar a origem dessa essência bestial.

Mesmo hoje, ainda havia muitos monstros de Erebus que nunca foram catalogados. Principalmente os da Classe Apocalypse, já que aqueles que os viam, morriam.

Trevor, por sua vez, levou uma mão ao rosto e começou a divagar em seus pensamentos. Era apenas uma pequena hipótese, mas…

"Será que eles conseguiram alguma forma de lidar com aquelas criaturas?"

Se um grupo capaz de criar portais pusesse as mãos nos temíveis monstros do Continente Sombrio, seria apenas questão de tempo até ocorrer um inferno na terra.

"Ou talvez seja mais plausível considerar que eles só conseguiram uma amostra do monstro e se retiraram?"

Quando o rapaz voltou a si, ele se deparou com dois pares de olhos arregalados lhe encarando.

Ah, eu agi de forma estranha?

— Tirando o fato de que a sua mente foi abduzida? Não, você parecia perfeitamente bem.

Giovanna se esforçou um pouco para conter um pequeno e modesto riso. Eram poucos os momentos em que os dois pareciam tão relaxados. Aquela investigação já havia se prolongado e exigido bastante deles.

— Vocês são tão bons nesse trabalho que às vezes não faz sentido arriscarem suas vidas enfrentando monstros.

As feições de Sophie fecharam quase de imediato. O brilho que ela transmitia sumiu como a água no deserto, e o que veio a seguir foi um som ríspido e seco:

— E daí? Eu faço o que eu gosto. — Já tinha um bom tempo desde a última vez que ouviu essas palavras, então acabou respondendo no impulso. — Eh! Não foi o que eu…

Era um pouco tarde para se retratar. O estrago já estava feito, e a moça a encarava quase que congelada no tempo.

Haha! Tá tudo bem. — Quem diria que justo ela seria capaz de irritar aquele "pedacinho do sol". — Acho que eu falei demais.

Como sua parceira não sabia como lidar com a situação, Trevor se levantou e agradeceu a Giovanna por toda a ajuda até ali e se pôs a sair, deixando as duas para trás.

No entanto, Sophie o acompanhou como uma criancinha, cabisbaixa e quase agarrando a camisa dele com as suas pequenas mãos.

Os dois mal andaram pelo corredor, quando Trevor parou repentinamente. Sophie que estava logo atrás olhando para o chão, bateu a cabeça nas costas do rapaz.

Ai!

— Você vai se despedir dessa forma? — A garota voltou a olhar para o chão. — Esse semblante triste não combina com você, Sophie — disse, acariciando os cabelos dela. — Eu estarei te esperando em casa. Boa sorte.

Quando ele estava para baixo, sempre foi ela a responsável por levantá-lo. Nesse momento, Trevor só queria retribuir um pouco por tudo o que ela fez por ele.

Assim, os dois se despediram, e Sophie caminhou a passos largos em direção à sala do laboratório.

Ela hesitou um pouco em abrir a porta, mas, por sorte, a sua amiga ainda estava arrumando algumas coisas antes de sair.

Giovanna poderia estar longe de ser o maior exemplo de autoestima, era muito fácil ferir os sentimentos dela.

Eh… Sinto muito! — Sophie ainda estava parada na entrada segurando a maçaneta da porta, sem coragem para entrar. — Eu fui um pouco rude.

— Tudo bem. Fui eu que me distraí e acabei falando besteira. — Giovanna começou a emaranhar os dedos. Era um pouco difícil olhar para a sua amiga agora.

— "Se você é tão boa no ramo da pesquisa, por que arriscar sua vida lutando contra monstros?" Era o que a minha família costumava falar pra me desmotivar. Eu me exaltei um pouco ao lembrar dessas palavras. Sinto muito.

— "Hã?" Sophie nunca foi de tocar em assuntos relacionados à família antes, então isso acendeu uma pequena chama de esperança no coraçãozinho de Giovanna. — Então… você não tá brava comigo mesmo?

Haha! Claro que não — respondeu, voltando a sorrir. — Quem ficaria com raiva de alguém como você?

Então Sophie contou um pouco sobre como a sua família se preocupava demais com a sua proteção. Ela sempre teve uma aparência delicada demais, como um cristal que poderia se quebrar a qualquer momento.

Aliado ao fato de ser a filha mais nova, os seus pais sempre quiseram manter a pequena longe de coisas perigosas, por isso, eles a incentivaram a buscar uma profissão que oferecesse poucos riscos.

Mas a garota sempre admirou os duos da Academia de Batalha que salvavam várias vidas ao evitar a ruptura dos portais.

Quando ela fez o Teste de Aptidão e descobriu que possuía uma Habilidade Inata, esse sonho se intensificou mais. No entanto…

— Eu era apenas uma marionete controlada pelos outros.

Ela nunca teve coragem de desafiar as ordens dos seus pais, ao menos, até o dia em que conheceu um garoto estranho que lhe fez uma proposta um tanto quanto duvidosa.

Ele realmente a esperaria por cerca de três, sem montar um duo com outra pessoa? Era difícil ter garantia alguma disso, mas ela queria ter o controle da sua própria vida.

— Ele me esperou mesmo — disse, ao que observava o anel em seu dedo com ternura.

Na sala da sua casa, Trevor estava sentado em um sofá com os relatórios dispostos sobre a mesa. Ele queria terminar de ler assim que chegasse, mas o seu intuito mudou durante o percurso.

Em sua mão, uma pequena peça de xadrez feita de um vidro reluzia um brilho tenaz: um rei esmeralda.

— Sinto muito, Sophie, mas acho que eu não vou te devolver isso.

Um pequeno sorriso brotou em seu rosto, todavia foi interrompido por uma notificação da Academia que chegou no seu MIC de última hora.

— Quê?! — A notícia que recebera estava longe de ser das mais animadoras. Ele tinha que se apressar, e logo. — Um portal de Rank S… se rompeu?


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