Volume 1 – Arco 3
Capítulo 23: Déjà-vu
Passaram-se quase dois dias desde que Andrew e Valentina entraram no portal irregular. Os reforços não deveriam demorar para chegar, ao menos, assim eles esperavam.
O interior do portal era uma floresta semelhante à floresta Greenwood, do exterior.
Contudo, haviam monstros espalhados por todos os lados. Até as criaturas que pareciam ser dóceis e inofensivas demonstravam hostilidade quando os dois se aproximavam.
No primeiro dia, Valentina tentou pegar um tatu-bola fofinho. O animal girou em direção à garota e acertou sua cabeça, mostrando os dentes pontudos para mordê-la.
Se Andrew não tivesse rebatido o animal com sua lança, a garota ainda estaria com as marcas dos dentes do monstro.
Os outros monstros também se assemelhavam a animais comuns, como: araras, macacos, tucanos, cobras, onças, gaviões e gorilas.
De comum eles só tinham a aparência. Aqueles animais eram muito hostis, fortes e rápidos. Se saíssem para o exterior, causariam uma bela confusão.
Os duos que os estavam aguardando teriam um belo trabalho para lidar com todos de uma vez.
Andrew e Valentina não tinham escolha, exceto procurar abrigo em uma caverna e esperar pelos reforços de fora.
— Ahhh! — esbravejou Valentina, levantando os braços e inclinando-se para trás. — Que tédio!
— É, não posso negar que eu também me sinto assim. — Andrew riscava o chão com um graveto.
Valentina não havia percebido por causa da sua própria inquietação, mas o rapaz também estava inquieto.
Como Andrew sempre manteve um comportamento ponderado por causa do jeito imprudente da sua parceira, a forma com que agia agora era um tanto estranha.
— Eu quero sair dessa caverna — reclamou Valentina, enquanto se levantava. — Vamos vasculhar a área e encontrar alguma informação do Boss.
— Sem objeções. — Andrew já se preparava para sair da caverna também. — Nós temos que testar as nossas habilidades ou a nossa vinda aqui terá sido uma completa perda de tempo.
Após algumas horas vasculhando o local — entre arbustos e plantas — para não chamar atenção desnecessária dos monstros, os dois resolveram subir até o alto de uma grande árvore.
De lá era possível observar a maior parte da estrutura da floresta.
Havia um padrão que se repetia entre as árvores, assemelhando-se a uma espécie de trilha deixada por alguns animais terrestres.
Muitos animais se dirigiam para o centro da floresta carregando algum tipo de fruta ou alimento pelas árvores.
— Que comportamento esquisito — ressaltou Valentina.
— Essa esquisitice é o que precisávamos. — Andrew fitava a trilha seriamente. — Vamos.
No que os dois começaram a descer da grande árvore, depararam-se com alguns macacos que começaram a subir.
— Parece que as coisas vão esquentar um pouco — disse Andrew, enquanto sacava sua lança, fazendo a ponta da arma começar a aquecer.
Os macacos não perderam tempo e avançaram para cima deles, gritando em euforia e debatendo-se entre si.
Andrew e Valentina aproveitaram a oportunidade causada pela confusão dos próprios monstros.
O rapaz pegou na ponta do cabo da lança, fazendo vários movimentos horizontais e colocando fogo nos galhos da grande árvore.
As chamas rapidamente foram lançadas na direção dos macacos pelas rajadas de vento de Valentina.
O que se seguiu a partir daí foi o duo cortando os monstros, em meio às chamas, enquanto despencavam em direção ao solo.
— Esses não foram tão problemáticos quanto os outros — observou Valentina.
— Você poderia apagar esse fogo antes que ele acabe se espalhando por aí?
As chamas começaram a se propagar pela floresta. Nesse ritmo, tudo queimaria e eles seriam asfixiados pela fumaça.
Diferente de Klaus, a Absorção de Fogo era algo que Andrew não dominava.
Valentina tinha a tarefa de apagar o fogaréu, com cuidado para não espalhar ainda mais com o vento.
— Esse é um péssimo lugar pra usar as suas habilidades de fogo — disse Valentina enquanto observava o seu parceiro. — Agradeça por ter a mim como seu duo.
— Eu não tenho como rebater esse argumento. — Andrew apenas concordou enquanto continuava olhando para frente e afastava alguns galhos que estavam no caminho.
— Você nem esboça resistência. Que chato. — A garota se abaixou com pressa para escapar de um galho que Andrew saltou e vinha em direção ao seu rosto. — Ei! Cuidado aí.
— Foi mal. Eu pensei que não ia acertar, já que você é baixinha.
— Ei!
Quando os dois chegaram ao ponto de encontro dos monstros, ocultaram-se ao longe entre as árvores.
Sentado em uma espécie de trono, improvisado com a madeira das árvores, estava um grande gorila de pelos cinza.
Os outros animais se aproximavam com cuidado enquanto reverenciavam o gorila e depositavam os alimentos aos seus pés.
O boss apenas observava os outros com hostilidade enquanto fungava de raiva.
Quando um macaco menor, que carregava algumas poucas frutas, se aproximou do gorila, o boss se levantou irritado do seu trono e pegou o macaco pela cabeça com a mão.
Raios surgiram do seu braço e eletrocutaram o pobre animal, então o maior esmagou a cabeça do macaco e jogou o seu corpo na direção dos outros monstros.
O gorila ficou sobre duas patas, começou a rugir contra os demais e a bater no seu peitoral com as suas mãos eletrificadas e manchadas pelo sangue do macaco morto.
— Um rei tirano — observou Andrew. — Rank S Classe Destruição.
Esse era o calibre do boss de um portal irregular de Rank A.
— A gente consegue matar esse bicho?
Os dois passaram um tempo calados para decidir o que fazer.
Considerando que as outras criaturas aparentavam nutrir desprezo pelo líder, talvez elas não interferissem, a menos que os dois os atacassem diretamente.
No fim ambos acabaram concordando em enfrentar o boss sozinhos e finalizar a dungeon o quanto antes.
Eles sabiam que o mais sábio era esperar, mas a sensação de continuar dependendo dos outros para resolver os seus problemas era angustiante.
Nisso, os dois decidiram atacar o monstro por trás enquanto ele estava distraído para cortar a sua cabeça.
Andrew e Valentina acoplaram suas Gemas Espectrais nas armas para aprimorar suas capacidades.
Eles iriam com tudo naquilo que poderia ser a sua única chance.
Quando o monstro se levantou para matar um javali que trouxe pouca comida, Andrew avançou por trás dele, enfiando a sua lança em chamas nas costas da criatura que gritou de dor.
Logo o gorila se virou e arrancou a lança de Andrew das suas costas pronto para pegar a cabeça do rapaz, mas Valentina surgiu de cima, mais uma vez nas costas do monstro, pronta para cortar sua cabeça.
— Morra!
Contudo, o ataque da garota não conseguiu cortar o pescoço do monstro, ele era muito mais resistente que o esperado.
Nisso o monstro deu um soco na garota, jogando-a para longe no meio das outras criaturas.
— Valentina! — Andrew gritou enquanto se desviava do gorila e buscava uma oportunidade de ajudá-la.
O rapaz observou a garota ainda se levantando, sentindo a dor do golpe do boss. Mas os seus problemas estavam só começando.
Em meio aos outros monstros, as criaturas a atacaram por causa do seu instinto.
Andrew sabia que precisava se apressar. Uma vez que o plano falhou, eles tinham que fugir e se esconder.
O rapaz avançou pelo lado do boss, em direção a Valentina, mas o gorila o pegou pelo pé e apertou com tanta força que o quebrou.
Mesmo distante, Valentina ouviu o som dos ossos sendo estraçalhados. Ao olhar para o seu parceiro, viu que o monstro estava batendo o corpo dele contra o chão, de um lado para o outro.
Ela cortou as criaturas mais fracas tão rápido quanto pôde e lançou alguns ataques de vento contra o gorila, mas eles foram ineficazes em passar pela pele resistente.
Aquele monstro estava além das suas estimativas. Um Boss de Rank S Classe Destruição era um obstáculo tão grande assim para um duo de Rank A?
Quando o gorila soltou Andrew, o rapaz estava sangrando por todo o corpo e inconsciente no chão.
O monstro eletrificou o pé para pisar na cabeça do rapaz e ir atrás da garota logo em seguida.
Valentina ficou apavorada ao ver a cena. Ela não conseguiria chegar a tempo, e mesmo se chegasse, o que poderia fazer?
"Alguém, algo, por favor!", suplicou a garota no fundo da mente, a sua garganta estava bloqueada pelo desespero. — And…
O som ensurdecedor de trovões reverberou todo o local, e uma tempestade de raios vermelhos caiu sobre as criaturas, matando parte delas instantaneamente.
Mais acima, uma garota de cabelos castanhos e ondulados portava uma bela armadura com detalhes vermelhos. Na sua mão estava um enorme machado de cabo longo, quase tão grande quanto ela.
A garota lançou um raio carmesim contra o monstro que não teve escolha a não ser desviar do ataque.
— Já tem um tempo desde a nossa aula — disse Samantha, descendo e se colocando entre Valentina e o gorila.
— Samantha? — disse a garota com surpresa e preocupação em sua voz. — O Andrew… ele…
— Tá tudo bem. — Uma voz masculina soou atrás dela. — Ele tá aqui.
Enzo chegou, entregando Andrew inconsciente para Valentina enquanto iniciava o processo de cura. Demonstrava grande preocupação pelo estado do garoto que estava todo arrebentado.
— A gente cuida da situação a partir daqui. — Samantha começou a caminhar a passos firmes em direção ao boss, enquanto seu machado soltava faíscas carmesins. — Você também pode usar poderes elétricos, não é?
— Você vai precisar de ajuda? — perguntou Enzo.
— Nem um pouco. — Samantha respondeu sem hesitação e partiu rapidamente para cima do monstro.
O grande gorila não ficaria parado, ele era o rei daquela floresta, quem ousasse desafiá-lo deveria morrer.
Tão rápido quanto a própria Samantha, a criatura avançou em raios.
Quando o monstro desferiu um potente soco elétrico contra a garota, ela o defendeu usando a lâmina do machado.
A arma logo travou entre os dedos da criatura, perfurando-os, fazendo o punho do animal sangrar.
— Isso é só o começo. — A garota aumentou a potência da eletricidade no machado e cortou toda a parte exterior do braço do gorila, até a altura do ombro.
O monstro rapidamente se afastou gritando de dor, mas a garota continuou a avançar e a impôr pressão.
Em um momento de sorte, o boss conseguiu segurar o cabo do macho, mas a garota o girou e enfiou a ponta do cabo no olho direito do monstro.
No entanto, antes que ela pudesse retirar a arma do olho do monstro, ele a segurou pela cintura com o braço que estava bom e o restante do braço cortado.
— Argh! — Samantha grunhiu pela pressão imposta. Mesmo com sua armadura, não foi possível conter todo o dano causado.
O seu machado rapidamente emitiu uma grande quantidade de raios.
Em instantes, a arma girou sozinha no ar, cortando por completo os dois braços do gorila.
Sem dar chance de reação, Samantha pegou o machado de volta e cortou a cabeça do animal, fazendo o sangue respingar contra sua armadura e seu rosto.
— Até que deu pra se divertir um pouquinho — disse a garota, enquanto retirava um lenço do seu anel de ressonância para limpar o seu rosto.
Um portal se abriu no céu para eles saírem da dungeon e um núcleo marrom se materializou do corpo do boss.
— Vocês conseguem voar, não é? — Enzo perguntou para Valentina e Andrew, que acabara de recobrar a consciência.
— Acho que sim. — Andrew estava bem melhor, embora não fosse bem o que se podia chamar de "bom".
Para o rapaz já estar em condições de ficar em pé após quase ser feito em pedaços, a cura de Enzo era verdadeiramente digna de um Top Rank.
— Onde vocês estavam com a cabeça?! — Samantha esbravejou, enquanto se aproximava.
— Nós sentimos muito — disse Valentina de cabeça baixa.
Samantha se aproximou de Valentina e colocou a sua mão direita sobre o ombro da garota.
— Ela só está preocupada com vocês — disse Enzo. — Não precisam se preocupar.
— Preocupada? Eu? — Parou e olhou para o lado. — Eu só… Eu só fiz o meu trabalho.
Enzo deu uma pequena risada, uma que Samantha não pudesse ouvir. Quem a visse tão imponente não imaginaria que ela possuía um lado fofo.
— A gente ainda tem muitos portais pra fechar, de qualquer forma.
— "Muitos portais"? — indagou Andrew, que se apoiava em Valentina.
— Já tem um bom tempo que vocês estão aqui dentro, então é natural que não saibam. — Enzo completou em tom reflexivo: — Lá fora, tá um verdadeiro caos de tantos portais vermelhos que apareceram.
Quando Andrew e Valentina chegaram em casa, nenhum dos dois estava se sentindo bem para comentar algo sobre o ocorrido.
Valentina foi direto para o banheiro com um semblante baixo e ainda em silêncio.
Andrew caiu sobre o sofá. O corpo ainda doía um pouco, mas a consciência doía mais.
— Quase morto e dependendo da ajuda dos outros de novo. — Os olhos do rapaz contemplaram o vazio do teto enquanto aquela sensação amarga de déjà-vu afligia seu peito. "Eu sinto muito, Valentina".