Volume 1 – Arco 3
Capítulo 19.5: Festival Sojourner
Toc! Toc!
Batidas soaram do lado de fora do luxuoso quarto. A pequena garota de cabelos prateados arregalou os olhos e logo deu um salto da cama. Fitou a origem do som.
Toc! Toc!
Para bater na porta antes de entrar, só poderia ser ele — outra pessoa já teria arrombado a estrutura de madeira a tempos. No mínimo, entraria aos berros.
— Eu já tô indo — exclamou, ao passo que suas pequenas pernas percorriam a distância que a separava da porta.
Ao liberar a entrada, deu de cara com um belo par de olhos verde-esmeralda. O cabelo prateado liso, assim como o dela, estendia-se até a altura das orelhas, semelhante ao fluxo de uma cachoeira.
— Oh! — O garoto a pegou pela cintura e a ergueu para o alto, dando um pequeno giro no processo. — Fofa como sempre.
— Eu vou cair, Caspian, eu vou cair!
Os dois riram enquanto o rapaz a devolvia à estabilidade do piso. Como a única pessoa, naquela mansão, que a proporcionava carinho e afeto, o irmão mais velho nunca se cansava de brincar com a pequena menina.
— Perdoe esse seu irmão impulsivo, Petra. — Pôs um joelho no chão, ficando da altura da garotinha e fez carinho na cabeça dela. — É que hoje é um dia especial.
O dia do Festival Sojourner, a celebração que comemorava a fundação das quatro Academias de Batalha do continente de todas as regiões de Hervron.
Aquele evento era algo que ninguém, em toda a extensão do continente, sonharia em perder. Exceto, por uma certa mocinha que vivia presa em casa.
— Caspian, eu... — Com as mãos juntas e baixas, Petra olhava preocupada para os lados. Seria ruim se alguém escutasse eles. — Eu tô com medo.
— Tudo bem. Vai dar tudo certo — disse, ao retirar a mão da cabeça da menina. — Até a Valentina vai tá esperando a gente por lá.
Um gentil sorriso se formou nos lábios da irmãzinha. Não havia como algum pensamento negativo passar pela sua mente ao se lembrar da amiga.
O problema estava na supervisão dos guardas que vigiavam a mansão. Se qualquer um daqueles olhos captassem os movimentos dela e a dedurassem para o Naoya…
O corpo miúdo se arrepiava só de pensar.
Felizmente, naquela noite, o tirano estaria fora em uma reunião de negócios. O único obstáculo eram os seus observadores.
Pela noite, Caspian desceu da sua carruagem. Logo à frente, uma mulher de cabelos rosa, acompanhada de uma garotinha, o aguardava em frente à mansão da família Strough.
— Senhor Caspian — saudou a mulher — é sempre um grande prazer recebê-lo em nossa residência.
— Igualmente, senhora Strough. — Em resposta a um movimento de mão do rapaz, alguns funcionários trouxeram uma caixa embrulhada da carruagem. — Permita-me presenteá-la.
— Sempre tão cortês, meu jovem.
Diferente de sua mãe, a pequena Valentina não conseguia tirar os olhos da caixa que era levada para dentro da residência.
Quando os três finalmente ficaram a sós, o rapaz se pôs a desembrulhar o presente. Fazendo um leve e descarado drama.
— Eu espero que as senhoritas apreciem esse belo e fofo presentinho.
Aos poucos, a silhueta de uma garotinha se ergueu da caixa. Os seus olhos azul-celeste irradiavam uma pureza tão cativante quanto a sua personalidade.
— Petra! — Ignorando os demais, Valentina correu para abraçar sua amiga com força. — Ah, Petra!
— Va-Valentina. — A pobre garota se esforçava para ter o mínimo de ar em meio àquele abraço, que mais parecia um mata-leão de tão forte.
— Oh, minha querida — disse a senhora Strough para sua filha — não é assim que se trata um presente tão fofo.
Ao longo do tempo, Berenice Strough se mostrou ser uma das poucas pessoas em quem os irmãos Lavour poderiam confiar.
Amiga íntima da falecida mãe dos dois, Berenice os tratava como se fossem seus próprios filhos.
Sempre foi o sonho da mulher ter mais filhos, algo que se tornou impossível após as complicações da sua primeira gestação.
— Sinto muito tê-la encarregado de preparar as vestimentas, senhora Strough.
— Não precisa ser tão formal agora que estamos a sós, meu garoto — disse com um sorriso gentil. — E foi muito gratificante escolher as vestimentas para o evento.
— Já tá quase na hora da gente sair. Vamos, Petra! — A garota foi puxada pela sua amiga em direção ao quarto onde as vestimentas as aguardavam. — Eu quero ver os fogos logo!
— Ah, essa minha criança. — Berenice observou as duas correndo desesperadas pelo corredor. — Presumo que terei que ajudar essas mocinhas a se trocarem.
Assim, a mulher acompanhou o rapaz até o quarto onde as vestimentas dele estavam guardadas, então foi ao encontro das crianças ver o que sua filha estava aprontando.
Chegando no quarto, deparou-se com Valentina mexendo num estojo de maquiagem. Petra, por sua vez, havia se refugiado no outro lado da cama.
Era visível o que a menina de cabelo rosa tinha em mente.
— Acredito que ainda seja muito cedo para se maquiar, ou maquiar outra pessoa, minha criança.
— Mas mamãe...
— O-Obrigada, tia. — Petra respondeu ofegante, após tanto correr da sua amiga.
Ser chamada de tia por aquela fofura era mais do que satisfatório. Berenice quase a apertou tão forte quanto Valentina havia feito; ia acabar estourando a pequena.
Decorrido algum tempo, as duas meninas estavam prontas. As roupas que a mulher escolheu haviam ficado perfeitas.
Os vestidos branco e rosa combinavam com seus cabelos e, embora fossem bonitos, não eram extravagantes a ponto de chamar muita atenção.
Com o auxílio das máscaras que usariam quando estivessem em público, nenhum eventual conhecido de Naoya iria perceber a presença de Petra por lá.
A garota passou um tempo se observando no espelho até que Valentina pulou atrás dela e a trouxe de volta para a realidade.
— Você ficou linda, Petra.
— Uhum! Você também. — Virou-se para Berenice e reparou que a mulher ainda estava com suas roupas habituais. — Você não vem com a gente, tia?
— Eu estarei aguardando as minhas mocinhas aqui. — Deu um abraço simultâneo nas garotas, com cuidado para não amassar suas roupas. — Tomem cuidado, tudo bem?
O coração da menina batia acelerado. Suas pupilas dilatadas. Sua mente trabalhando a mil. Ela realmente estava do lado de fora curtindo aquele evento como uma criança comum. Tantas pessoas, barracas, comidas, jogos…
"Isso… é de verdade?", pensou a pequenina.
— Vamos naquela barraca de tiro, tio! — Valentina agarrou Petra e Caspian pelos braços e os puxou em direção à barraca.
— Hahaha! — Petra sorria genuinamente.
Caspian se viu admirado. Quando foi a última vez que a viu sorrindo de forma tão natural e livre de preocupações?
Nada iria atrapalhar a diversão dela naquela noite, era o que rapaz tanto pensava quanto desejava.
— Claro! Pode deixar que o irmãozão aqui vai pegar muitos prêmios pra vocês!
E o que mais lhe chamou a atenção foi um urso de pelúcia azul-ciano. Sem dúvidas, ele estava alí pra ser da sua irmãzinha.
Porém, fosse pela máscara atrapalhando sua visão, ou simplesmente pela falta de precisão, Caspian estava errando a maior parte dos disparos.
— Aah! — Os poucos tiros que acertava não eram capazes de derrubar a pelúcia na qual ele tanto mirava. "Isso só pode ser roubo."
— Tio, você é muito ruim.
— Ai... — Aquelas palavras foram um tiro em seu peito. Agora não tinha forças nem para puxar o gatilho. “Tio?” Ele nem era tão velho assim.
— Irmão, você consegue — incentivou-o, com as mãozinhas fechadas em frente ao peito. — Não desista.
A vontade de cumprir os desejos da garotinha era grande, mas o soldado já estava abatido. Caspian pegou um banquinho e a espingarda de chumbinho e passou a tarefa para a caçula.
— Se vingue pelo seu irmão.
— Uhum! — respondeu com um aceno de cabeça. — Pode deixar.
— Isso aí é injusto. — Valentina virou o rosto para o lado, fazendo biquinho. — Eu também queria atirar, tio.
Como resultado, a garota obteve a sua tão desejada espingarda de chumbinho. Lado a lado com Petra, ambas estavam preparadas para iniciar uma chacina de pelúcias.
Um, dois, três tiros errados.
— É, parece que tem alguém além de mim que é bem ruim, né? — Caspian jogou na cara da sobrinha dele. — Você consegue… talvez.
— Rumm! — Um olhar de indignação de Valentina foi tudo o que o rapaz recebeu. — Você errou mais do que eu, tio!
— Porque você atirou menos do que eu.
Enquanto os dois ficavam de birra, Petra afiava seus olhos e mordia os lábios. Segurar aquela arminha era um pouco difícil para ela, mas depois de algumas tentativas fracassadas...
Pow!
O ursinho caiu.
— É! — Os bracinhos da garota foram erguidos ao ar. — Consegui! — E se atirou nos braços do irmão, que a recebeu calorosamente, como se comemorassem a conquista de um campeonato mundial.
Vendo a bela cena, o dono da barraquinha sorriu enquanto trazia o ursinho de pelúcia para Petra.
— Suas irmãzinhas?
— Bem, essa sim. — Petra sorria, enquanto abraçava o irmão. — Já essa outra… — Como poderia definir sua relação com aquele projeto de gente?
— Ele é meu tio, moço.
"Eu nem sou seu tio de verdade."
Por alguma razão, ser chamado de "tio" tantas vezes, por aquele projetinho de gente, fazia Caspian se sentir mais idoso.
Já Petra estava feliz enquanto segurava o prêmio do seu primeiro Festival Sojourner.
Seria uma bela lembrança que jamais esqueceria, bem como a sensação de indecisão que afligiu o seu peito logo em seguida.
— Hmm… — Como explicaria a aparição daquele urso para o pessoal da mansão?
A gentil sensação de uma mão afagando seus cabelos lhe tirou do transe, fazendo-a olhar para cima, para os olhos de Caspian.
— Eu vou embrulhar e te entregar amanhã — disse seu irmão, que captou a reação dela. — Ninguém vai suspeitar, tá?
— Uhum! — Sua face voltou a brilhar no mesmo instante em que os fogos de artifício estouraram no céu.
— Já começou, tio! — Os irmãos foram puxados pelas mãos por Valentina mais uma vez. — Vamos logo, antes que acabe!
A multidão era grande e apertada, mas os três persistiram em buscar um local onde pudessem contemplar a melhor vista do espetáculo.
Logo à frente, uma escadaria de pedra se estendia até o cume da montanha. Sem pensar duas, seguiram o alto caminho.
Após algum tempo, as pernas de Petra começaram a ficar lentas a cada degrau que ela subia. Ofegante, se viu ceder ao sedentarismo involuntário.
A garota parou abraçando o urso de pelúcia, quase caindo de joelhos.
— Eu não… consigo… mais.
— Bem, acho que daqui a vista já é maravilhosa. — O irmão a pegou nos braços, para que ela ficasse mais alta.
— Hã? — A garotinha nem teve tempo de pensar muito sobre as palavras do rapaz.
Seus olhos foram cativados pelo brilho dos fogos que iluminaram a escuridão do vasto céu. As explosões eram de tantas cores, tamanhos e formatos. Era como ver as estrelas de perto.
"Que lindo." Um grande clarão carmesim se seguiu, iluminando seus olhos, os quais já brilhavam de empolgação.
O mesmo clarão também iluminou os olhos escarlates de um rapaz que observava o evento ao longe, deitado sozinho no telhado de uma casa alta.
— É, nada mau.
De volta para casa, Petra dormia em sua cama, exausta pela longa noite. Ao seu lado, Caspian a observava sentado numa cadeira, segurando um livro de historinha.
Por sorte, tudo correu conforme o planejado e os dois conseguiram retornar para a mansão, usando o truque da caixa de presentes falsa.
Para o jovem, foi mais do que agradável ver sua irmãzinha sorrindo e se divertindo, livre, como qualquer outra criança, como deveria ter sido desde sempre.
Era difícil saber o que a garota sonhava naquele instante, mas Caspian sonhava com o dia em que ela poderia sair de casa e andar nas ruas sem a preocupação de ser pega e punida, quando levassem ela de volta para aquela prisão de luxo.
Por enquanto, tudo o que Caspian podia fazer era cobri-la com o cobertor e se retirar. Assim estava para fazer quando...
— Mamãe… — A criança sussurrou, fazendo o irmão congelar em meio ao seu movimento.
O peito de Caspian apertou. Lembrar dos seus pais já era doloroso demais para ele, quanto mais para aquela pequenina.
— Um dia você vai voar livre pelos céus — disse do fundo da sua alma, enquanto fechava os olhos e se virava para sair do quarto. — Eu sei que vai, Petra.