O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 19: Runas

Seus cabelos negros se misturavam à escuridão da noite, enquanto os olhos de ametista reluziam um lilás tenaz, algo que cativaria o coração de qualquer homem.

A garota sentada na sacada da luxuosa mansão observava o gracioso jardim iluminado por lamparinas, as quais, de tão singelas, assemelhavam-se a vagalumes.

— Ah! Nada melhor do que um bom vinho. — Admirava o conteúdo vermelho em sua taça. Cada gole aquecia a alma.

— O que você vê de tão bom nessa coisa? — Sentado no parapeito da sacada, Raizel encontrava-se encostado em um pilar e, embora reclamasse, também segurava uma taça em sua mão. — O tanino desse troço resseca a língua.

— Humph! — Expressou a garota, jogando o rosto para o lado e fazendo beicinho. — Não gosta? Não beba.

— Como o seu Neblim, seria desrespeitoso deixá-la comemorando sozinha.

— Tô vendo o respeito que você me dá. — Completou com ar de superioridade, como uma rainha que ordena ao seu servo: — Se é assim, sente-se junto a mim.

— Oh! — O rapaz se levantou e fez uma singela reverência, digna de um cavalheiro. — Como desejar, senhorita Necron.

Ora, não é que funcionou mesmo? Talvez ela até tentasse mais vezes. Embora soubesse que seria mais fácil chover diamantes do que aquele Neblim acatar as suas ordens.

— Bem, eu já disse que pode me chamar apenas de Karen, meu leal súdito.

— "Súdito"? — Era perceptível o sorriso de deboche se formando na cara dele.

Karen fez biquinho, fingindo não ter visto aquilo, enquanto Raizel se sentava na cadeira à sua frente.

Aquele foi um dia duro, o dia em que os dois conseguiram a sua primeira vitória na Seleção Real da nova Rainha de Arcádia.

A garota queria comemorar o evento, mas a única pessoa presente naquela grandiosa mansão era o seu representante antipático. Ela merecia uma companhia melhor, ao menos alguém que soubesse apreciar um bom vinho.

— Sabe, a sua luta de hoje fez parecer que nós éramos os malvados.

— Era necessário pra aquela gente parar de encher o saco. — Raizel colocou sua taça na mesa e encarou a moça. — Ser o representante da candidata com menor prestígio não é pra qualquer um.

— Eu sei muito bem disso! — disse, quase batendo as mãos na mesa. — Mas não foi pra isso que eu te invoquei.

— E pra que foi então?

Em sua própria concepção, ele estava ali apenas para matar cada um dos seus adversários e vencer aquela competição em nome da sua mestra, Karen Necron.

— Mas precisava ser tão cruel? — Vacilando em segurar sua bebida, a moça mordeu os lábios trêmulos. Poderia muito bem ter sido ela a morrer naquele dia. — Eram os momentos finais da Elise e do Neblim dela.

— Se fosse você a morrer hoje, alguém derramaria alguma lágrima?

— Bem, por mim, ao menos uma.

— Que sorte a sua. — Secou a taça com um único gole. Apesar do paladar ressecado, manteve a expressão firme e deixou o recipiente de lado.

— Como você consegue viver assim? — Karen lançou um olhar de compaixão para o indivíduo à sua frente. Ainda que fosse irritante, era uma das poucas pessoas que estavam ajudando ela. — Eu ao menos tenho algo pelo que estou disposta a arriscar a minha, já você, meu Neblim…

Pela manhã, Raizel já estava esperando Petra na sala de treinamento. O seu cabelo estava mais bagunçado que o habitual, como se tivesse dormido nada a noite inteira. Todavia, parecia fisicamente bem, sem o menor indício de fadiga ou sono.

A moça, por outro lado, fazia alguns alongamentos para se livrar do cansaço. Dormiu muito pouco desde a conversa na noite anterior; quando foi para o quarto já estava bem tarde.

Além de que ela mal pôde tomar café. Acordou já na hora do treinamento. Só teve tempo de trocar de roupa e improvisar um rabo de cavalo no cabelo.

“Quem diria que ela mudaria tanto por causa de um penteado?” De fato, a garota, que estava no início dos seus dezoito anos, transmitia uma aura mais madura com o cabelo reunido atrás, preso por um elástico e com algumas mechas que caíam sobre suas orelhas.

Os fios soltos pelas laterais até davam um certo charme a ela, o que fez seu parceiro observá-la por um pouco mais de tempo.

— Pode vir, senhorita — chamou-a para o centro de um tatame. — Fique em posição de lótus.

Logo a garota se sentou com as pernas cruzadas e com a sola dos pés voltadas para cima. Raizel se abaixou e encostou a mão direita nas costas dela.

— Meditação? — indagou a moça.

De certa forma, meio que seria, mas o verdadeiro objetivo estava muito além do apenas relaxar e purificar a mente.

— Vai ser preciso bastante concentração para ativar as runas pela primeira vez.

O rapaz começou a transferir a própria energia dele para a garota; era como o fluxo denso e voraz de um rio capaz de tragar tudo o que ousasse desbravar as suas temíveis águas insondáveis.

Contudo, diferente de quando os dois fizeram o Pacto de Ressonância, a energia espiritual de Raizel estava bem mais agradável, como o ar frio que se desfrutava de um rio à noite.

As runas da moça deveriam possuir o mesmo padrão que as dele, uma vez que seriam derivadas do Raizel, mas as marcas assumiriam a cor da aura da própria Petra.

De pouco em pouco, a garota começou a ficar ofegante. O seu corpo estava aquecendo; gotas de suor começaram a descer da sua testa até o pescoço.

— Tudo bem, você já se habituou o suficiente com a minha energia.

— O-Ok! — disse, ainda ofegante. — Quão poderosas… são essas runas, mesmo?

— O bastante para salvar a sua vida.

As runas tinham como finalidade aprimorar as capacidades físicas do usuário: as marcas dos braços aumentavam a força; as das pernas, a velocidade; as do peito, a resistência; e as do rosto, a percepção dos cinco sentidos.

— Mas existem outras formas de aprimorar atributos, né? — Naquele ponto, já era possível perceber um pouco de fumaça saindo dos seus braços e pescoço.

— É. Pode-se dizer que sim. — Raizel soltou um pequeno riso. O segredo estava no conjunto. — Menina esperta.

Quando todas as quatro runas estavam ativadas ao mesmo tempo, o usuário entrava em um estado de imunidade à dor.

Todavia, a dor tinha a sua serventia: indicar que o corpo estava sendo machucado, o perigo. Então as runas não desativavam o sentido do tato. Ainda seria possível saber quando um osso estivesse fraturado e precisando de tratamento.

Além disso, a capacidade de cura do indivíduo era aumentada a ponto de regenerar órgãos e membros sem a ajuda de equipamentos especiais, em instantes.

— Sério?! — Por um momento, a jovem fez um movimento brusco e logo foi punida pela dor nos locais dos quais saía fumaça. — Ai!

— Bem, como é a sua primeira vez utilizando as runas, a dor é bem comum nos locais onde elas aparecem.

— Hã? — E ele só deixou para contar aquilo naquele momento? Com isso a garota se deu conta que ele não falou quase nada sobre o procedimento.

— Vai ser quase como se estivessem sendo grafadas na sua pele, fazendo queimar.

— Uhum! — concordou, enquanto tentava manter o fluxo da sua respiração.

"Oh! Sem hesitação, heim?"

A dor para se tornar forte era pouca se comparada à de ser fraca. Aquilo era algo que a parceira dele conhecia muito bem.

A sensação de fraqueza ultrapassava as barreiras físicas e a assombrava no pior lugar possível: na sua mente.

Duas runas prateadas começaram a surgir pelo rosto e braços de Petra, como se fossem tatuagens tribais acompanhadas de uma pequena quantidade de fumaça.

"Que quente!" A pertou as mãos e pressionou os lábios para segurar um grito.

"Oh! Que impressionante." Até mesmo a Eirin e a Sophie só ativaram uma por vez.

Todavia, tão rápido quanto as runas apareceram elas também sumiram.  Os dois repetiram o processo por algumas horas afinco.

Ao longo do dia, a dor das runas já estava  começando a diminuir, ou talvez a garota só tivesse se habituando, mas ainda incomodava.

Chegava a ser contraditório o fato de que para mantê-las ativadas era necessário bastante concentração, mas a dor da ativação já era um meio de distração.

Era quase meio-dia quando os dois decidiram encerrar o processo. O tempo passou voando como uma bala.

Raizel se levantou para tirar duas garrafas com água gelada do seu anel de ressonância. Nada melhor que uma água geladinha, principalmente para a garota, que já estava quase desidratada.

O rapaz jogou uma das garrafas para Petra; no entanto, antes que chegasse nas mãos dela, a garota já era capaz de sentir a frieza do recipiente. Além de que, os seus reflexos foram executados com uma precisão maior que a habitual.

A garrafa estourou.

— Brrr! — A garota teve o seu rosto e busto molhados pela água gelada ao segurar a garrafa com força demais. — Que frio!

Petra experimentou, pela primeira vez, o que era ter sua percepção e força aumentadas de forma repentina.

— Hahaha! — Raizel ria sem a menor intenção de disfarce. Tirou mais uma garrafa do seu anel de ressonância e se preparou para jogar para a garota outra vez. — Segundo round.

Dessa vez, ela conseguiu pegar a garrafa sem problemas, mas o medo de se molhar de novo ainda estava lá. Além de que era perceptível que a segunda garrafinha era ainda mais gelada do que a primeira. A água estava quase trincando.

"E se eu não tivesse pegado direito?" — Que sádico da parte do seu parceiro. "Como será que ele se sente ao ativar todas as runas de uma vez só?"

— Nós vamos fazer uma pequena pausa — expôs o rapaz. — Aproveite para se secar e comer alguma coisa.

— Eu vou preparar algo pra gente. — Depois de mais um gole, a garota se levantou. — Já tem um tempo desde que eu tive a oportunidade de cozinhar.

— Nesse caso eu posso te ajudar, ao menos um pouco.

"Huh?" A surpresa era justificável, uma vez que foram poucas as vezes que Raizel foi visto tentando cozinhar algo.

Normalmente, ele só comprava comida em alguma loja e nunca preparava nenhum prato muito elaborado.

— Tudo bem? — questionou a garota, que parecia aérea.

— Ah! Sim, sim. — Petra voltou à realidade. — Você tem preferência por alguma coisa?

— O que você preparar estará bom, senhorita. — Ele podia não demonstrar muito, mas estava ansioso para ver o que a sua parceira iria preparar. — Confio nisso.

No fim, Petra optou por um cozido de carne. Enquanto a garota cuidava do processo de cozinhar, Raizel cortou a carne e entregou a ela em tempo recorde.

Em seguida, começou a descascar e cortar os legumes com tanta maestria que mais parecia que estava duelando com os ingredientes, ou melhor, subjugando eles.

— Você é muito bom com uma faca.

— Se tratando de cortes, nunca deixo a desejar.

A garota deu continuidade cozinhando e temperando a carne para não atrasar a comida, e passado algum tempo, o cozido de carne estava finalmente pronto, e os dois começaram a comer na bancada da cozinha sentados um de frente para o outro.

— Huh? — Expressou o rapaz, logo após a primeira garfada. Era possível discernir bem o gosto dos ingredientes, e a carne se desmanchava na boca.

Uma sensação calorosa invadiu seu paladar. Desfrutar de um momento como aquele— algo tão simples e divertido com outra pessoa....

Eu ao menos tenho algo pelo que estou disposta a arriscar a minha, já você, meu Neblim…

"Humph!" pensou o nefilim, enquanto tirava o garfo da boca. "Imagino como você reagiria se me visse hoje, senhorita Karen".

— Raizel? — A garota diante dele parecia confusa pelo silêncio do seu duo. — A comida não… ficou boa?

— Haha! Por outro lado. — Fez questão de apontar o garfo para ela. — Você possui mãos divinas, senhorita.

Suas bochechas coraram levemente, ao passo que seu olhar baixou e um sorriso se formou em sua face. Ele havia gostado, ele realmente havia gostado.

— Me surpreende uma nobre cozinhar tão bem.

— Bom, é que era isso ou eu passava fome. — A expressão da garota pareceu distante por um momento. — Os funcionários sempre me ignoravam; alguns por medo do senhor Naoya, outros por maldade. Ao menos, eu tinha o meu irmão.

O silêncio emanou de Raizel mais uma vez. Ser odiado por todo lugar que passasse era algo que ele conhecia bem.

Pelo menos, possuía um poder avassalador que impedia que os outros fizessem o que quisessem com ele, já ela… nem isso.

— Amanhã nós vamos à sala do diretor Nosferatu. — Acrescentou o assunto quase que do nada. — Parece que ele quer bater um papo comigo.

— Eu também vou? — Se o assunto era só com Raizel…

— Claro que você vai. — O restante da fala, ele tinha orgulho de proferir: — Você… é a minha duo.


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