O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 18: O Primordial e a Chave

Obscurecidos pelas densas nuvens cinzas, pequenos pontos luminosos brilhavam fracamente em meio ao vasto e escuro véu da noite.

Um homem, na janela de um luxuoso escritório, segurava o copo de uma bebida escarlate. Seus cabelos negros como carvão e suas feições fechadas transmitiam a selvageria de uma fera.

Foi quando o ambiente repentinamente mudou, tornando-se um vale repleto por névoa e espadas, as quais flutuavam e cobriam o céu do lugar.

Uma variedade de armas manchadas de sangue dominava o chão, atribuindo um certo tom de horror ao ambiente.

— Mas o que houve aqui? — indagou, olhando para todos os lados. — Quem invocou esse Espaço Dimensional?

Logo à sua frente, a névoa começou a baixar aos poucos, revelando um rapaz caminhando em sua direção.

— Naoya Lavour, correto?

— Quem você pensa que…? — Observou-o com um pouco mais de atenção. Quase engasgou ao reconhecer seu algoz. — Raizel... Stiger?

— Pro chão! — Seu tom era seco e firme, sem o menor indício de cortesia, algo com o qual o líder da casa dos Lavour's não estava habituado.

Imediatamente, Naoya caiu de joelhos, e algumas espadas perfuraram, até o talo, suas mãos contra o chão.

Argh! — A dor o recebeu de braços largos. Mas aquilo ainda era apenas o prato de entrada.

Mais espadas cravaram em suas panturrilhas, três para cada uma delas. Fosse carne, pele ou ossos, nada foi poupado.

Argh!!! Seu maldito, filho da puta!

— Informações — disse, abaixando-se para encará-lo nos olhos. — Eu quero informações.

— Co-Como assim?

Ao que parecia alguém queria jogar da forma mais difícil e dolorosa possível. Todavia, o nefilim estava com pouco tempo para gastar ali. Ainda teria que fazer uma visitinha a uma boa quantidade de pessoas naquela noite.

— Quem lhe ajudou na morte de Elizabeth Lavour?

— Eu não faço ideia do que está falando.

— Não seja ingênuo. — Com tom de deboche, aproximou-se mais do rosto do indivíduo. — Acha que nasci ontem?

Naoya engoliu em seco. Aquele indivíduo carregava uma sede de sangue capaz de tornar o ar difícil de se respirar.

A situação não podia estar pior. Qualquer movimento hostil, e ele poderia morrer a qualquer momento.

— Se eu te contar, você vai me poupar? — Se ao menos ficasse vivo até sair dali, poderia se vingar depois. Era o que pensava mas...

— Você vai morrer logo após. — Sem pedir permissão, o rapaz tirou o pingente do sol que estava em seu pescoço. Ótimo, agora seria assaltado também?

O acessório era dourado e fino, porém resistente. A sua companheira ficaria feliz por ter o presente da mãe de volta em suas mãos.

— Estúpido! — Ainda que não estivesse em posição de se achar superior, jamais concordaria com tamanha barbaridade. — Por que contaria se vou morrer depois?!

Nesse momento, sentiu uma dor aguda e repentina em seu peito. Uma costela se quebrou e perfurou um de seus pulmões, fazendo-o se contorcer e vomitar sangue.

Por dentro do seu corpo, uma fina camada de energia vermelha percorria cada um de seus ossos, esperando apenas pelas ordens de Raizel para quebrá-los um a um.

— Eu estou te dando o direito de escolher o quanto vai sofrer antes de morrer.

— Vai pro… inferno! — disse com feição de dor, enquanto suas costelas apertavam seus pulmões. Logo a mesma dor surgiu em seus dentes.

— Quando quiser morrer, é só falar.

Foi quando o ser desprezível diante de si, falou algo que mudaria o rumo de todo o planejamento que Raizel tinha para a sua parceira.

— Você quer tanto assim uma Chave de Goétia?!

— "Goétia"? — Ele só poderia ter ouvido errado. Não, tinha que ter ouvido errado.

Encontrar uma Chave de Goétia era algo inimaginavelmente raro e… perigoso.

Contudo, se fosse verdade, isso explicaria o fato de Petra ser capaz de fazer o Pacto de Ressonância com alguém que possuía um grau de divindade tão elevado quanto ele.

O buraco era muito mais fundo do que havia imaginado. Merda! Era para tudo isso se encerrar naquela noite.

Ha Ha! Haha! Você nem sabia disso, pirralho? E eu pensando que esse tinha sido o motivo pelo qual você iludiu aquela garota ingênua.

— Filho da puta... — Ultimamente as pessoas o estavam tirando do sério, muito mais do que o habitual. — Você ia usar ela pra…

O que veio a partir daí foi apenas gritos de dor, ao passo que a tortura avançava e piorava cada vez mais. Membros e ossos foram quebrados e curados repetidas vezes.

Quando voltou para casa, já era de madrugada. Naoya foi mais resistente do que o esperado. Mas, no fim, o nefilim conseguiu as informações que queria.

Nenhum dos cúmplices do famigerado padrasto veria o raiar do sol pela manhã. A morte de tanta gente ocasionaria uma grande movimentação entre as famílias nobres e — muito provavelmente — a Academia seria convocada para investigar o ocorrido.

Mesmo que tenha sido cauteloso nos assassinatos, ainda era cedo demais para relaxar e baixar a guarda.

Mas o que mais o preocupava era a Chave de Goétia. Se esse poder caísse em mãos erradas, se saísse do controle, talvez a Espada do Fim dos Tempos tivesse que ser necessária outra vez.

"Não tenho tempo para respirar, heim?"

Seus pensamentos foram interrompidos quando, ao fundo, pôde ouvir um belo som advindo da sua galeria de música.

Não era o timbre do piano, que habitualmente preenchia o local. Era o som suave das cordas de um violino.

"Ela tá tocando a essa hora?"

Ao chegar na galeria, pôde observar Petra pelas costas. Ela não estava mais usando um pijama composto por calça e camisa de manga longa — como o pijama de dálmata que usou no primeiro dia em que passou ali.

Usava algo mais casual e de tecido leve: um conjunto composto por um short azul e uma blusa branca de manga curta.

A combinação perfeita para a sua pele clara e cabelos prateados. Se tivesse as orelhas pontudas, seria facilmente confundida com uma elfa.

— Até que o pijama do dálmata era legal — disse, aproximando-se devagar da garota — mas devo confessar que esse combinou mais com você, senhorita.

O som do instrumento logo parou de ressoar. Virando-se para o seu parceiro, não esboçou uma reação de vergonha com o elogio, o que faria habitualmente.

— Esse era o Lago dos Cisnes de Tchaikovsky, correto?

— Eu não sei. — Com o semblante baixo, encartou a partitura. — Eu não conheço nenhuma dessas composições que você toca.

Em silêncio, Raizel se sentou no banco do piano e, com um aceno de mão, convidou a moça para o seu lado.

O banco era um pouco pequeno, mas ainda cabia duas pessoas, caso se apertassem um pouquinho.

— Obrigada. — Colocando o violino em cima do piano, sentou-se ao lado do rapaz.

Ombros colados. Dava para sentir a pele fria dela. Suave e delicada, mas gélida e solitária. Se estava acordada até aquele horário, já era possível para imaginar como sua mente se encontrava 

— A Sophie veio aqui?

— Ela disse que você ia demorar um pouco. — A amiga dele passou um bom tempo ali enquanto seu parceiro não chegava. — Depois eu vim tocar, por causa da falta de sono.

— Entendo.

Isso era algo que ele também costumava fazer quando não conseguia fechar os olhos em paz, quando imagens desagradáveis lhe vinham à mente.

— Foi tudo culpa minha, não foi? — Petra perguntou inusitadamente com a voz fraca.

Huh?

— A Valentina e o Andrew quase morreram porque eu fui descuidada — disse com o rosto baixo, enquanto descarregava no short do pijama toda a frustração que sentia, em forma de um aperto.

Mordendo os lábios trêmulos, as lágrimas clamavam para escorrerem dos seus olhos azuis-celeste, como a chuva que manchava a beleza de um dia ensolarado.

Raizel puxou um casaco do seu anel de ressonância e jogou-o sobre ela, protegendo-a do frio iminente.

— Vai pegar um resfriado nesse ritmo.

— Me responda! Apenas… — Reparando que havia levantado demais o tom de voz, completou com a voz mais fraca: — Apenas diga que a culpa foi minha.

— De certa forma, foi culpa sua, sim. — Ela nunca conseguiria sobreviver e superar os desafios futuros se recebesse apenas carinho e proteção. — Aquilo só aconteceu, porque eles estavam pertos de você.

Petra mordeu os lábios trêmulos. Queria falar, mas a voz se recusava a sair. A culpa apertava seu peito, e a fraqueza atormentava sua mente.

— Então, senhorita, tudo o que pretende fazer é se lamentar e ficar de cabeça baixa?

— Mas eu… — Era difícil olhar para ele no momento. — Eu sou fraca.

— Nesse caso, até que fique forte, eu lutarei por você, e serei a sua força. — Então completou em sua mente: "E não deixarei que você morra, senhorita".

Petra sorriu ao ouvir aquilo. Ficou surpresa por conseguir fazer aquilo naquele momento. Raizel era diferente de tudo o que ela estava habituada a lidar.

Seu parceiro transmitia uma confiança que ela jamais sonhara em obter. Ainda assim, se havia uma forma de ficar forte, ela o faria. Não aceitaria ficar apenas no papel de donzela indefesa.

— Às vezes parece que você é perfeito, sabe?

— Longe disso. — Com as mãos juntas, Raizel observava o vazio. Isso lhe trazia algumas memórias chatas de se lembrar. — Os nefilins da Terra não são mais do que frutos de um erro. Seres sem significado, vazios em si mesmos.

— "Nefilins da Terra"?

Logo a visão que teve enquanto estava inconsciente, por causa do Pacto de Ressonância, lhe veio à mente.

Então aquilo se tratava de outro planeta, não de um Calisto primitivo, como seria sensato pensar.

— A Terra, o meu planeta de origem. — Com um movimento de dedo, apontou para a partitura que a moça havia tocado quando ele chegou. — Essas músicas que você não conhece também são de lá.

Agora algumas peças começavam a fazer mais sentido. Ainda assim, havia uma pergunta que insistia em se manifestar:

— Por que você vive aqui?

— Eu sou uma singularidade para aquele planeta. — Estendeu sua mão direita para a frente. — Talvez seja melhor mostrar.

Uma tela de energia retangular apareceu na frente dos dois. Nela surgiram algumas projeções.

Pessoas com vestes feitas de pele de animal em meio a campos verdes trabalhavam colhendo; outras, em meio a grandes florestas, caçavam.

De repente, seres alados desceram do céu, brilhavam mais do que o sol, até que tomaram forma humana.

— A Terra foi criada para ser um planeta com pouca interferência divina. — Raizel começou a explicar enquanto as imagens avançavam. — Essa é a sua Lei de Mundo.

As Leis de Mundo, pergaminhos intangíveis que registravam todas as características de um mundo, seu funcionamento, presente e passado.

— Mas e esses anjos?

— No início da criação, os anjos foram enviados para auxiliar a humanidade a se estabelecer no planeta.

Contudo, as sentinelas possuíam limites que não poderiam ultrapassar, limites que trouxeram a sua ruína.

Para se materializarem num planeta que não estava projetado para receber poder divino, esses anjos usaram avatares feitos de carne.

Assim, eles podiam sentir as emoções humanas. E nisso, duzentas sentinelas decidiram ir contra a ordem divina e se casaram com algumas humanas.

— A união entre humanos e anjos... nefilins?

— A essência da alma dos anjos passou para os seus filhos e isso gerou os humanos angelicais. Contudo...

Ao que Raizel iria continuar, a projeção mostrou vários gigantes alados devorando pessoas e animais sem o menor indício de piedade.

A moça arregalou os olhos e levou as mãos em direção à boca diante de tal cena. Os filhos dos anjos não foram perfeitos como os seus pais.

Algumas dessas criaturas se tornaram gigantes carnívoros que, mais pra frente, foram transportados para Calisto — um planeta que criado com um nível considerável de interferência divina.

No entanto, alguns dos filhos dos anjos sofreram uma ínfima interferência da alma dos seus pais, o que fez com tivessem apenas uma força levemente acima da média.

Esses foram os eliouds, os quais permaneceram na Terra e ficaram conhecidos como Heróis de Época.

Na projeção da tela de energia, humanos erguiam rochas, troncos de árvores e enfrentavam animais selvagens no mano a mano.

Antes que pudesse mostrar as imagens de si próprio, Raizel decidiu encerrar aquela projeção por ali mesmo.

— Espera! Gigantes? Eliouds?

— Nefilim é o termo geral que engloba três classes: gigantes, eliouds e nefelins.

Os nefelins, foram as crianças que receberam o maior grau de divindade sem enlouquecer ou ter deformações físicas, diferente dos gigantes.

O problema foi que, pela grande quantidade de poder divino em corpos humanos, todos os nefelins morreram, exceto um.

— Aquele que, na época, ficou conhecido como Raizel, o Híbrido Perfeito.

Ele não era um anjo, então não podia ficar no Reino Divino; tinha traços angelicais, não era bem-vindo no Reino Demoníaco; possuía poderes que iam contra a Lei de Mundo, foi exilado.

Ao menos, em outro planeta ele poderia ser aceito, ou era o que esperava. Apenas uma esperança tola para uma criança tola.

Os gigantes começaram a causar muitos problemas, o que trouxe uma má fama para os nefilins.

— Muitos… quase todos, pensavam que eu era um gigante disfarçado ou que eu perderia o controle e me transformaria em um monstro a qualquer momento.

Embora esse ponto de vista não fizesse tanto sentido para ele, as pessoas enxergavam o mundo através das lentes do seu próprio egoísmo. Se fazia sentido era apenas um detalhe.

Falar disso só trazia memórias ruins. Mas ela teria que saber ao menos o básico do seu passado em algum momento.

— No fim, eu matei todos os gigantes e, com a morte dos eliouds na Terra, eu me tornei o único nefilim vivo.

— Mas ainda tem mais dois. Você mesmo me…

Ah, esses dois. — Foi com o surgimento deles que Raizel viria a ser conhecido como o Nefilim Primordial. — Se eles nunca desfrutaram do afeto de uma família, a culpa minha. Na verdade, nunca tiveram pai ou mãe.

Huh?! — Sem pai ou mãe? A garota engoliu em seco antes de perguntar: — E como eles… nasceram?

— Simples, nunca nasceram.

Raizel pôde perceber o transtorno na face da sua companheira. Talvez já tenha falado demais sobre isso. De qualquer forma, se quisesse saber mais sobre Klaus e Trevor, o melhor seria perguntar a eles mesmos.

— Mas e você? — Ela estava receosa em falar sobre isso, mas, no fim, queria saber. — A sua família, o que…?

 — Eu não quero falar sobre aqueles dois. — Foi enfático em sua resposta, o que deixou a moça um pouco desapontada.

Ao perceber aquela reação, Raizel colocou uma mão gentilmente na cabeça dela para quebrar o clima ruim.

— Ao menos, não por agora, ok?

Uhum!

O rapaz se levantou e tirou o pingente do sol do bolso do sobretudo e entregou para a sua parceira.

— Isso é algo importante pra você, não é?

— Sim, obrigada. — Agora, tinha os dois pingentes em sua posse. A criação da sua mãe estava finalmente livre das mãos hediondas de Naoya. — Como conseguiu ele de volta?

— Bem… já tá tarde e o seu treinamento começa pela manhã, então é melhor a gente ir dormir.

Raizel estendeu uma mão para Petra, para ajudá-la a se levantar. Depois poderia comentar sobre a chacina daquela noite. Sua parceira já tinha passado por muita coisa.

— Senhorita, eu acredito que você tem muito a evoluir e poderá proteger os seus amigos algum dia.

Uhum! — disse, sentindo-se um pouco melhor.

Após isso, acompanhou-a até a porta do seu quarto que, por sinal, ficava quase de frente ao dele.

O percurso foi lento e silencioso. Lado a lado, deram um pouco de espaço para que o outro digerisse tudo o que aconteceu até então.

— Obrigada pela conversa de hoje — disse a moça após alcançar o seu quarto. — E… bom trabalho. A Sophie disse que você se esforçou bastante dentro do portal.

— Bem, esse é o meu trabalho.

— Ainda assim… — Pegou gentilmente uma mão de Raizel com as suas duas. — Ela também disse que machucou bastante a mão direita. Tá tudo bem?

— Ela só carbonizou.

A preocupação daqueles olhos gentis era genuinamente verdadeira. Então um olhar desses também poderia ser direcionado para alguém como ele.

— Eu estou bem, senhorita. — Com o rosto levemente inclinado, a consolou um sorriso. — De verdade.

— Certo, então bom trabalho — disse com brilho nos olhos enquanto soltava a mão dele e se dirigia para o quarto. — E por ter nos protegido também.

A porta fechou lentamente enquanto a face da sua companheira sumia junto.

Raizel passou um tempinho parado. Aquelas eram palavras que ele não estava habituado a ouvir.

Normalmente, as pessoas nem olhavam para ele direito após concluir um portal, tão pouco lhe diziam um "bom trabalho".

Um riso quase inaudível saiu da sua boca.

"Que sensação estranha, mas… agradável."

Pôs-se a caminhar em direção à sala de treinamento.

Em seu quarto, Petra segurava o pingente do sol em sua mão enquanto estava deitada na cama com o outro — o da lua — para o lado de fora do pijama.

"Hoje ele me contou um pouco mais sobre si mesmo." Os acessórios, em proximidade um do outro, reluziam sutilmente, como se desejassem ficar cada vez mais perto. "Será que a gente se tornou um pouco mais próximos?"

Com um sorriso bobo, virou-se para o lado e apertou gentilmente o pingente com as duas mãos. Talvez estivesse na hora de receber um novo dono.


Quer ouvir a música que a Petra tocou neste capítulo? Acesse O Lago dos Cisnes.

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