Volume 1 – Arco 2
Capítulo 7: Cercados
Klaus estava em meio a um jardim cheio de árvores frutíferas e flores das mais diversas cores. Era difícil de acreditar que algo tão belo existisse em um lugar hostil quanto um portal irregular.
O rapaz vestia um novo conjunto de roupas. As que estavam jogadas já não passavam de meros trapos — sujas e rasgadas, mal serviam para limpar o chão.
Já o seu cabelo, antes tão bem cuidado, estava todo bagunçado e ressecado por causa da água salgada do oceano, que cercava a gigantesca torre, onde ele e Eirin estavam, com o belo jardim no topo.
Os dois dias que Klaus passou junto a Eirin dentro daquele portal foram bem desafiadores. Se não fosse pela torre que existia em meio às águas, eles nem teriam onde descansar.
O vasto oceano, cujas águas pareciam sem fim, poderia ser uma vista cativante — algo que Trevor adoraria pintar.
O único problema eram os diversos tipos de monstros que rondavam o ambiente — ferozes e famintos.
— Qual é o significado disso? — O garoto se aproximou de um monólito azul-marinho, no centro do jardim, que possuía alguns inscritos.
— Você tá querendo expiar, né? — comentou Eirin, em tom de sarcasmo; ela estava trocando de roupa atrás do tal monólito.
— Eu só tava... — Parou para pensar um pouco, então se lembrou de um velho ditado: Quem não arrisca, não petisca. Falou em um tom tão sarcástico quanto ousado: — Bem, e se eu quisesse?
— Nem pensar. — Algumas marcas vermelhas de assadura adornavam a pele da garota. Deixar que ele a visse naquele estado estava fora de cogitação, total.
— Mas a gente até já...
— Ne-Nem pensar! — De forma repentina, Eirin colocou o rosto pelo lado do monólito. Algumas das marcas vermelhas em sua pele de avelã acabaram por ser expostas.
A moça apontou um dedo para o parceiro, revelando um pouco do seu sutiã rosa. Contudo, o que mais chamou a atenção de Klaus foi a pequena estaca de gelo que surgiu na ponta do dedo dela. — Fica aí.
“Algum dia, tenho certeza que essas brincadeiras vão acabar custando o meu pescoço.” Aceitando o resultado, o nefilim fez uma pequena reverência, digna de um cavalheiro, para a sua companheira. — Perdoe o meu atrevimento, mademoiselle.
— Hehe! — Sorriu triunfante em sua vitória.
Quando terminou de se trocar, Eirin pôde perceber o motivo da aproximação repentina de Klaus. Na superfície do monólito estavam escritas, com uma espécie de letra rústica, as seguintes palavras:
Aquele que habita nas profundezas,
O Poderoso dos Mares, o Soberano,
Quem pode se opor ao seu domínio?
Quem pode ir contra a sua vontade?
Quem ousaria perturbar o seu descanso?
O Imperador dos Mares, o abissal e colossal...
— Hmmm! — Eirin levou a ponta de um dos dedos aos lábios e observou aquelas palavras com mais atenção. — Tá bem conservado pra ter palavras faltando.
— Não é apenas isso — comentou Klaus, aproximando-se. — É até comum encontrar escrituras dentro de um portal, mas na nossa língua?
A garota teve que fechar os olhos e franzir a testa para forçar sua mente a se lembrar de alguma coisa. — Hmmm! — Nada lhe vinha à mente. Ela nunca foi do tipo que prestava muita atenção naquele tipo de coisa, diferente de Sophie. — Bem, agora que você falou…
A conversa do duo foi interrompida por um conjunto desafinado de grunhidos roucos e perturbadores. O som vinha da direção das bordas do jardim. Klaus e Eirin logo entenderam a mensagem: o descanso havia acabado.
O lanceiro estendeu o braço para o lado. Houve uma explosão de chamas na palma da sua mão, e o fogo se condensou tomando a forma da sua arma.
Sua parceira fez o mesmo. Um vapor gélido, de temperaturas negativas, apareceu para ela e se condensou na sua espada.
O grupo de criaturas, que estava acabando de escalar as paredes azul-marinho da torre, era composto basicamente por dois tipos de seres humanoides: meio-peixes, tritões, e meio-caranguejos.
Os olhos de peixe dos tritões, junto à sua cabeça achatada e à postura curvada formavam um composto pior do que ácido para os olhos.
— Isso já tá ficando cansativo. — Sendo o primeiro a atacar, Klaus avançou para cima do grupo de tritões. — Coisas feias.
A pele esverdeada das criaturas eram revestidas por algumas escamas, e estavam a ponto de serem perfuradas e queimadas pela lança do nefilim.
O primeiro monstro que o rapaz atacou, jogou o corpo para o lado, evitando a investida fatal. A velocidade de reação dos tritões era ainda maior do que a sua feiura, no entanto…
O lanceiro abriu a mão, e a sua arma deslizou para a frente. Quando estava para sair do seu alcance, Klaus a pegou pela ponta da haste. A lança aqueceu e começou a soltar fumaça.
Com um movimento forçado para o lado, o nefilim cortou o ar e o peito do inimigo no processo. O monstro soltou um grito chiado e pulou imediatamente para trás.
— Nada mal. — Klaus já havia enfrentado vários adversários durante a sua vida. Aquele bicho iria precisar se esforçar mais para desviar dos seus ataques. — O próximo hit vai ser na cabeça.
O monstro estava atônito, o seu ferimento já deveria estar se curando, mas o vapor que subia da sua ferida era contra isso.
Depois de enfrentar as aberrações daquele lugar durante dois dias, o nefilim sabia que simples ferimentos como perder um braço ou perna era brincadeira para os tritões. Era preciso fazer grandes queimaduras para retardar a sua regeneração.
Para a sorte do tritão, os seus companheiros se esgueiraram pelas costas do rapaz enquanto ele estava distraído com a luta.
O garoto girou o seu corpo, rápido, para se defender dos ataques sorrateiros; um soco atingiu a sua barriga. Logo em seguida, mais um no rosto. Outro no rosto.
Uma forte sensação de ardência tomou conta dos locais feridos. Sem pensar duas vezes, Klaus deu um salto para trás. A mucosa ácida dos punhos dos tritões estava derretendo a pele da sua barriga e do seu rosto.
O lanceiro passou a mão sobre o ferimento na face, e uma aura amarela tomou conta do ferimento para o curar. Os monstros, por sua vez, cercaram-no em um círculo, para evitar que ele tivesse um lugar para onde pudesse correr.
— Quer saber… — Encarou os seus algozes bem no fundo dos olhos. — Acho que tô meio puto.
Um pouco distante de Klaus, Eirin lidava com o grupo de caranguejos humanoides. A carapaça dos seus inimigos era bem dura e irritante. Algo forte o suficiente para conseguir segurar boa parte do dano da sua espada.
Além disso, os monstros possuíam poderosas pinças, que rivalizavam com armas de alto nível em termos de resistência e corte. O seu impacto contra a espada da garota fazia vibrar um som metálico, como se fossem feitas de aço.
Quando um monstro estava para abocanhá-la, Eirin fincou sua espada na boca da criatura. Essa investida foi algo péssimo para o monstro, o seu corpo começou a congelar por dentro até que se tornasse uma estátua de gelo puro.
A moça chutou o monstro congelado contra os outros, atingindo até mesmo parte dos tritões que estavam atacando o parceiro dela.
Alguns dos atingidos pela estátua de gelo foram empurrados para fora do jardim, em direção ao abismo da torre, caindo rumo ao mar e às bocas das aberrações que lá havia.
As criaturas colossais que habitavam o oceano devoravam os monstros derrotados, sem expressar o mínimo de compaixão pelos seus companheiros.
Essa era a verdadeira natureza daquele lugar, algo disfarçado pelo belo jardim: era devorar ou ser devorado.
Em cima da torre, Eirin e Klaus foram jogados para longe pelos golpes dos seus oponentes. Os dois colidiram repentinamente contra as costas um do outro, mas conseguiram ficar em pé.
A garota estava com um pouco de sangue escorrendo do rosto por causa de um soco que levou daquelas pinças afiadas. Klaus, por sua vez, estava terminando de curar a queimadura na sua barriga e uma nova que acabou de obter no peito; um buraco se destacava na camisa dele.
— Eu realmente, realmente detesto esses bichos! — reclamou Eirin enquanto limpava o sangue da sua boca. — Os mais fracos sempre adoram uma vantagem numérica.
— Então que tal a gente acabar com essa vantagem? — Klaus estava mais sério do que o habitual.
Embora fosse do tipo que transmitia uma aura mais amigável e descontraída em meio a um ambiente social, no campo de batalha o nefilim era diferente; sem espaço para brincadeiras e piadinhas.
— Venham, meus cavaleiros!
O nefilim estendeu uma mão para a frente com a palma aberta e virada para cima. Ao fechar da palma, algumas dezenas de fantoches de fogo montados em cavalos do mesmo elemento, segurando lanças de chamas, surgiram ao seu redor.
Eirin, em resposta ao companheiro, replicou o movimento e também criou algumas dezenas de fantoches de gelo, os quais portavam espadas gélidas e afiadas.
Assim, o campo de batalha se constituiu pelo exército dos fantoches de fogo e gelo, com Klaus e Eirin, que ficaram no centro do jardim e pelo exército de monstros que ficou ao redor, tomando conta completamente do ambiente.
Também havia as criaturas que ainda estavam escalando as paredes e ansiavam por se juntar à festa. Estas eram semelhantes a crocodilos, tartarugas, polvos e enguias.
— O que estão esperando? — Klaus observou aqueles que os rodeavam. — Venham.
Nas partes mais profundas do oceano, onde a luz mal alcançava, um monstro semelhante a um crocodilo gigante de pele avermelhada nadava tranquilamente.
As suas costas eram adornadas com espinhos pontudos e poderosos. Algo que só não era mais aterrador do que suas presas sanguinárias.
Todavia, um tentáculo grotesco e pegajoso agarrou seu corpo, sem lhe dar oportunidade para que ele reagisse.
O monstro esperneou tanto quanto pôde, mas seu destino já estava selado. A pobre criatura foi lançada em meio a várias fileiras de dentes grandes e afiados.
O Kraken fez o seu lanchinho.