Volume 1 – Arco 1
Capítulo 5: Círculos de Amizade
Perdida no desconhecido, Petra observava um cenário incomum ao seus olhos. Várias pessoas estavam reunidas no que parecia ser uma espécie de acampamento antigo.
Dado o tipo de vestimenta, predominantemente feita de pele de animal, e as cabanas que tinham uma aparência arcaica, era fácil observar que faziam parte de um povo de outro tempo.
O fato curioso era que nenhuma daquelas pessoas transmitia o menor indício de poder espiritual. Se não fosse pelo ambiente, que apresentava pequenos traços daquela energia, todo o local seria como uma fantasia.
Foi então que algo chamou a atenção da garota: considerando o quão antiga aquela gente parecia, era estranho eles possuírem instrumentos metálicos tão bem forjados.
Um portal branco surgiu no céu, emanando um brilho tão intenso que poderia se sobrepor ao do próprio Sol. Alguns homens que estavam ao lado de mulheres grávidas foram sugados para o portal, do nada.
Um grande tumulto foi gerado no meio da tribo. Algumas pessoas, no desespero, correm na direção de Petra, como se ela nem estivesse ali. A espectadora tentou desviar, mas as pessoas simplesmente passaram através dela.
— Hã?
Já tá mais do que na hora de você voltar, sabe? Logo atrás da jovem de cabelo prateado, uma voz semelhante a de Raizel lhe chamou, porém mais infantil.
Quando Petra se virou, viu a figura de um pequeno garoto envolto por uma densa névoa roxa, tão profunda quanto a cor dos seus cabelos.
Você não vai querer contemplar o que vem a seguir, alertou o garoto. Vai por mim, é melhor abrir logo os seus olhos.
— Mas… o que foi tudo isso? — Encarou o menino nos olhos, ou teria feito isso, se ela conseguisse ver através da névoa.
O pequeno ergueu seu rosto ao céu e respondeu enquanto os dois começavam a desaparecer: — A queda das Sentinelas pecadoras.
Ao abrir os olhos, Petra sentiu sua visão turva e um formigamento percorrer todo o seu corpo. Com um pouco de esforço, ela levou um braço em direção ao rosto e soltou um pequeno suspiro.
Logo observou o teto. Era diferente do que viu quando acordou da outra vez, mas aquele tom de preto era inconfundível.
— Ela acordou? — Aquela era uma voz masculina familiar, mas estava longe de ser a do seu recém-parceiro de duo.
—Céus! Até que enfim! — Essa outra voz era...
“Valentina?” Petra logo tentou se levantar para ver a amiga, mas o cansaço do seu corpo a puxou de volta para baixo, como se tivessem vários pesos conectados a ela.
— Não se esforce — disse a moça de cabelo rosa. — Você ainda tá bem mal.
Aquele tom de voz expressava preocupação, mas também um pouco de alívio. Valentina deve ter se preocupado muito após ver sua preciosa amiga ser levada por um desconhecido.
— O que... — Petra sentiu dificuldades para falar; sua voz parecia sonolenta e soava como se estivesse doente. — O que vocês fazem no quarto do Rai... do Raizel?
Por um instante, Valentina congelou pensando que Petra ia falar um apelido. Os dois poderiam ter ficado tão próximos naquele curto período de tempo? Sua amiga e… aquele maníaco sequestrador?
Sem chance.
— Ele deixou a gente aqui pra cuidar de você e saiu com o Trevor.
— Hã? — As palavras de Valentina não faziam o menor sentido. Seria capaz de Raizel desconfiar até da própria sombra, mesmo assim permitiu estranhos ali?
— É melhor você explicar do começo — comentou Andrew, que estava sentado em uma cadeira mais ao canto.
Ver aquelas pessoas reunidas no quarto do nefilim passava uma sensação estranha. A presença dos seus amigos dava um ar mais vivo para aquele ambiente mórbido, principalmente a personalidade da Valentina.
— Aham! — A de cabelo rosa limpou a garganta para contar tudo o que aconteceu após as Batalhas de Admissão.
Primeiro, ela e Andrew foram até os presidentes da seção, Trevor e Sophie, para reclamar do desaparecimento da amiga. Era inaceitável que deixassem Raizel levá-la daquela forma, sem mais nem menos.
Valentina ameaçou colocar a boca no trombone, caso algo não fosse feito o quanto antes. Por sorte, os dois eram bem mais sociáveis do que aquele cara. Era até difícil acreditar que eram amigos.
— Ah! Aquele troglodita!
A jovem de cabelos rosa-claro tinha dificuldades em esconder o descontentamento em relação ao nefilim. O que, convenhamos, até que era compreensível.
Todavia, após Petra ver aquele sorriso, quando os dois terminaram o Pacto de Ressonância, ela se perguntava se Raizel era uma pessoa tão ruim quanto falavam.
Independente da forma com que olhasse, as expressões dele não pareciam carregar nenhuma falsidade, por outro lado, nunca viu algo tão sincero em toda a sua vida.
— Ele pode ser uma boa pessoa — sussurrou a moça. — Eu acho.
— Quê?! Co-Como é?! Pera, você… — Valentina deu alguns passos para trás, temendo pelo pior. — Você tem algum tipo de fetiche por sequestrador?
Petra ficou sem reação e, antes que conseguisse formular algum raciocínio para desfazer o mal-entendido, a outra se jogou aos pés da cama e segurou suas mãos.
— E daí que ele é alto, bonito e forte?!
— Valentina. — Logo atrás, Andrew, o seu regulador, entrou em ação. — Ela acabou de acordar.
Vendo que estava errada, a pobre garota se viu obrigada a se calar frente àquela possibilidade terrível. Com uma carinha de cachorro que caiu da mudança, ficou cabisbaixa.
Uma sensação quentinha acariciou aqueles macios cabelos rosa, fazendo a moça levantar os olhos. Petra colocou uma mão sobre a cabeça dela para confortá-la um pouco. Agora sim Valentina parecia um pet.
— Pra onde o Raizel foi?
Após deixá-la sob os cuidados de Andrew e Valentina, o nefilim se retirou com os seus amigos. Ao que parecia, ele tinha alguns assuntos para resolver, embora transmitisse um certo descontentamento ao ter que sair do lado da sua recém-adquirida duo.
Porém, haviam certas coisas que ele mesmo estava impossibilitado de fazer, como curar os danos que Petra recebeu em sua alma após realizar o Ritual de Ressonância.
A única opção era esperar que ela se curasse sozinha ao longo do tempo. Até lá, teria que lidar com a dor e o formigamento em seu frágil corpo debilitado.
Naquele momento, Petra percebeu que ela estava usando um pijama branco com marcas de dálmata. — Quando foi que eu troquei de roupa?
— Euzinha que fiz isso — disse Valentina com um brilho estelar nos olhos. — Você ficou tão fofinha.
— Hehe! — Tinha que ser coisa daquela garota.
— Mas, e aí, como que foi? — Por mais que estivesse descontente com a situação, Valentina tinha problemas para conter a curiosidade. — O seu beijo com ele… como foi?
Desviando o rosto para o lado, Petra corou. Foi só parte de um procedimento e que nunca mais iria se repetir de novo, mas ela mentiria se negasse que gostou.
Sentado em frente a Trevor e Sophie, com uma mesa circular entre eles, Raizel degustava um velho e bom vinho, enquanto os seus amigos seguravam xícaras de café.
A residência do duo Top 2 Rank S, em comparação ao que Raizel chamava de quarto, era algo — digamos — bem mais… natural.
O local era bem iluminado e organizado. Além de estar decorado com algumas obras de arte de pintores da Terra: A Noite Estrelada de Vincent Van Gogh, A Última Ceia e a notável Monalisa de Leonardo da Vinci, e A Criação de Adão de Fresco de Michelangelo.
Em cima de outra mesa, mais ao canto, estava um jogo de xadrez e alguns esboços de desenhos feitos à mão.
Alguns foram criados com traços realistas, enquanto outros possuíam estética de mangá. Mas a maior parte ainda estava em processo de conclusão.
— Ah! O vinho de Oprantis é tão bom quanto me lembro. — Raizel girava a taça com o líquido vermelho entre os dedos.
— Você gosta mesmo de vinho — pontuou Sophie. “É por causa da menina daquela época, né?” O restante era difícil de pontuar.
Diferente dos demais, Trevor estava em silêncio, pensativo e focado no verdadeiro assunto que o amigo foi tratar com eles.
— A Petra realmente vale esse trabalho todo? — ressaltou, calmo e sereno. — Você pode arrumar uma confusão das boas. Está ciente disso.
O duo oferecia certa resistência ao que Raizel tinha em mente. Era inegável o quanto estavam preocupados com a situação, ainda mais com o que o companheiro deles pretendia fazer.
Por outro lado, o rapaz em questão se encontrava firme em sua decisão. Demorou muito tempo para encontrar um duo compatível. Jamais abriria mão dela.
Quanto mais se demora para obter algo, mais esse algo aumenta em valor. Era dessa forma que Raizel entendia as coisas. Se alguém viesse para tomar o que era seu…
— Eu preciso confirmar o que a Petra me falou e sondar o cenário geral. — Com uma mão no queixo, observou seu reflexo no vinho. — O padrasto dela deve entrar em ação em breve, e não serei eu a estar esperando de braços cruzados.
Os outros dois se olharam por um momento. Já conheciam bem o seu amigo e, considerando a determinação dele, aquilo só teria um fim.
— Ah! Faça como quiser — responderam em uníssono. — A gente te ajuda.
Primeira fase concluída com sucesso. Agora só faltava confirmar uma coisa:
— Deixando de encenação, vocês dois já sabiam da existência da Petra, certo?
Todos fizeram um minuto de silêncio. De fato, aquela sequência de eventos, que se seguiu desde uma aposta tola até encontrar um duo compatível em uma batalha aleatória, foi muito bem encaixada para ser fruto do acaso.
E quem cuidou de colocá-lo no lugar certo e na hora certa foi justamente aquele a quebrar o silêncio inquietante — Trevor.
— São Gabriel Arcanjo.
— O Mensageiro...? — Refletiu o nefilim, esboçando um pouco de surpresa pela primeira vez. — O que ele queria?
— Ele entrou em contato comigo pra passar as informações sobre a vinda daquela garota. — Trevor deu uma breve olhada na sua parceira. — Com exceção da Sophie, ninguém mais sabe sobre isso.
A influência de anjos e demônios, naquele mundo, era algo relativamente comum. Contudo a interferência de um Arcanjo era tão rara que poderia ser considerada um milagre.
Nas poucas vezes em que esses seres surgiam no Plano Físico, eles sempre usavam algum avatar para suprimir o seu imenso poder e evitar danos à realidade.
— As coisas começam a fazer mais sentido. — Embora ele mesmo estivesse longe de ser próximo do Gabriel, para receber um favor dele. — Ainda assim, seria mais fácil me contatar diretamente pra eu mesmo ir buscar a Petra.
— Hm! Hm! — Sophie balançou a cabeça para os lados, em negativo. — Se fosse comigo, eu acharia bem estranho ter um cara desconhecido aparecendo do nada no meu quarto e querendo me levar embora.
"Ainda assim, por que essa garota despertaria a atenção de um Arcanjo?" Raizel levou a taça aos lábios e divagou com os olhos fechados. "Tem algo de muito… muito estranho nisso".
De repente, a porta da sala na qual os três estavam se abriu, e duas pessoas entraram como se já estivessem habituados ao local.
Um rapaz loiro e uma garota de cabelo rosa curto. Dado os anéis de ressonância em seus dedos, eram um duo.
Ambos possuíam uma aparência suave e delicada. Muitos nem mesmo pensariam duas vezes antes de convidá-los para estampar a capa de uma revista; na verdade, já tentaram. Um privilégio para os que conseguiram.
Após os recém-chegados verem o Nefilim Primordial, já foram direto ao que queriam.
— Aí está você! — disse o loiro de olho azul, tomando a iniciativa e apontando com um dedo. — Causando confusão de novo.
— Tsc! — Raizel virou o rosto para o lado.
— É só a gente ir cuidar da organização de outra Seção de Batalha, e você já sai sequestrando alguém?! — continuou o rapaz. — E na frente de todo mundo ainda.
— "Sequestro" você diz? — Raizel cortejou o vinho outra vez. — De onde tirou essa fantasia agora?
— Tem um monte de gente falando disso.
— Ah! — Para Raizel a opinião de alguém era tão importante quanto a pessoa fosse próxima a ele. Se não as conhecia, suas opiniões possuíam valor nulo; fossem positivas ou negativas. — Que trágico, né?
— Deixe de espalhar boatos por aí, Klaus. — Advertiu a garota ao lado do loiro. — E foi exagero da sua parte pegar pesado com uma iniciante, Raizel. Às vezes a sua falta de bom senso me surpreende, sabia?
A moça se dirigiu para as costas de Sophie e encarou o criminoso por cima do sofá. Mas tudo o que ela conseguiu foi um olhar sem emoção, assim como o seu parceiro.
Aqueles dois continuavam pra frente como sempre. Realmente foram feitos um para o outro, em todos os sentidos.
— Hum! Vejamos. — Direcionando a taça para a amiga de cabelo curto, o infeliz debochou: — Será que eu deveria fazer um pedido de desculpas público?
— Hahaha! Você não abaixa a bola nem por uma brincadeirinha mesmo — gargalhou Klaus. — Esquece, Eirin. Provocar o Mestre Louco é perda de tempo.
— Poxa! — A contragosto, a menina cruzou os braços, emburrada, e preferiu apreciar uma parede a ter que olhar para Raizel. — Por que você tinha que ser tão sem graça? Poço sem fundo de chatice.
No fim, Eirin se lembrou do sequestro e teve que perguntar sobre o ocorrido, para a raiz do problema, ainda que sem olhar diretamente para ele.
— Ela está se recuperando dos efeitos colaterais do Pacto de Ressonância.
— Pacto?
— Ressonância?!
Incrédulos, Klaus e Eirin se encararam diversas vezes. Uma parceira? E, ainda por cima, a garota que ele supostamente "sequestrou" no dia anterior.
Mas, se a moça estava se recuperando, e o dito cujo do Raizel estava ali, então quem estava cuidando dela?
— Ah, céus! — Com uma mão no rosto, Eirin suspirou e expressou sua indignação: — Eu só estava brincando, mas realmente te falta bom senso, né?
— Dois amigos dela estão lá. — Finalizou a taça de vinho e colocou-a sobre a mesma. — Que tipo de pessoa você pensa que eu sou, afinal?
— Espera aí. — Klaus parou pra pensar um pouco. Aquilo era informação demais para processar em um dia só. — Você deixou dois estranhos no seu quarto?
Por sinal, já estava mais do que na hora de ir ver o estado da Petra. Por mais que escondesse, Raizel estava apressado por causa daquilo, e as razões para estar longe dela já haviam acabado.
— Eu agradeço por prepararem o que pedi a vocês — disse para Trevor e Sophie, enquanto fazia menção de se retirar. — Irei retribuir um dia.
A conversa parecia ter acabado por ali, ao menos a parte mais quente dela; mas a última fala do Mestre Louco despertou a curiosidade de Klaus.
— O que ele quis dizer com “prepararem o que pedi”?
Trevor e Sophie explicaram, de forma simples, o pedido do seu companheiro e o que ele queria que os dois fizessem no período em que ele estaria cuidando da recuperação da sua parceira de duo.
Quanto mais os dois esclareciam o plano do nefilim, mais os outros dois ficavam inquietos. Uma ideia daquelas só poderia ter saído da cabeça de um louco mesmo.
— Ele uma vez na vida já ouviu falar na palavra “moderação”? — Todavia o real motivo da visita de Klaus e Eirin era outro. Então que colocassem as cartas na mesa logo de uma vez. — Ele que se vire. Vocês querem jogar baralho?
Todos levantaram a mão em sinal de aprovação. Jogar era uma forma bem comum que aquele círculo de amigos tinha de socializar. Naquela noite, a residência escolhida foi a dos Top 2 Rank S.
— É uma pena que o Mestre Louco abandonou a noite do baralho — comentou Klaus.
— Já eu acho é bom. — Eirin pegou as duas caixas que trouxe no anel de ressonância e começou a embaralhar as cartas. — Assim, eu posso vencer hoje.
Toda vez que estava para vencer, aquele infeliz dava um jeito de ganhar. Ela tinha certeza absoluta de que ele trapaceava de alguma forma, e sempre com ela.
— De qualquer jeito — elevando seu tom de voz, Eirin proclamou: — hoje eu serei a rainha do baralho!
Para a decepção da moça, naquela noite, ela perdeu mais do que ganhou.
Um jovem irritado e bem vestido pisava na cabeça de um dos seus funcionários, aparentemente um mordomo da casa.
— Como assim ela fugiu, seu animal?!
Os dois estavam em uma sala bem mobiliada. Tudo ali era requintado e da mais alta qualidade. Porém, se o ambiente era belo, as expressões do jovem eram horrendas.
— Vocês tinham uma obrigação, só uma!
— Nós… sentimos muito — suplicava o mordomo, ao passo que sua cara era esmagada contra o piso e o manchava de vermelho. — O irmão dela já foi punido.
O irmão dela que se fodesse. Tudo o que importava era a garota, apenas ela, nada mais. De qualquer forma, se a Petra foi para a Academia de Batalha, era apenas questão de tempo até encontrá-la.
— Lixos incompetentes! — Deu um chute em cheio no peito do mordomo, o que estalou algumas costelas. — Tragam de volta a minha noiva ou morram.