O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 4: Pacto de Ressonância

Os finos cabelos prateados recaíam sobre seus olhos verdes e sobre o tecido da cama a qual estava deitada. Fossem os lençóis ou os travesseiros, tudo era macio e delicado, agradável ao toque e da mais alta qualidade.

Contudo, a aparência pálida e o corpo desnutrido tornavam difícil para qualquer um tecer elogios acerca da sua aparência. Ainda assim, a mulher forçou um pequeno sorriso para uma garotinha que estava ajoelhada no pé da cama.

A pequena era como uma miniatura de sua mãe, só que mais fofinha e com olhos azul-celeste.

— Vai ficar tudo bem, Petra. — Sua voz soava baixa e fraca, mas fez um pouco de esforço para levar a mão até a cabeça da menina.

Tão nova, mas já havia passado por tanta coisa.

— Mas… mamãe…

— Eu posso confiar algo a você, pequenina? — Lentamente, levou as mãos em direção ao pescoço e retirou o pingente prateado de lua crescente. — É algo precioso para a mamãe, então eu espero que seja pra você também.

A pequena estendeu as mãos para aquele acessório, como se segurasse o objeto mais delicado do mundo.

O último presente de sua mãe.

— Mãe! — Petra acordou ofegante e com um braço erguido para o nada. Logo acima, um teto preto era clareado por algumas luminárias.

A garota logo levou uma mão trêmula ao peito, onde, por baixo da blusa, estava o pingente que recebera.

Após um pouco de tempo, conseguiu se acalmar e percebeu que estava deitada no sofá de uma sala desconhecida, sozinha.

Sem saber onde estava, e notando que os seus machucados haviam sumido, decidiu explorar o ambiente.

— Mas que tipo de lugar é esse? — perguntava-se ao passo que deslizava os dedos por uma das paredes. — Por que tem tanto tom de preto por aqui?

O local era amplo. As paredes eram feitas de basalto, assim como o piso escuro. Seria tudo silencioso, se não fosse pelo som de um piano que ressoava pelos corredores.

A harmonia carregava um certo tom de tensão e frenesi. Era xecutada com ímpeto, mas, em alguns momentos, ficava mais suave. Seria algo perfeito para tocar de fundo no clímax de uma peça.

Petra seguiu o timbre, como se hipnotizada pelo som, até chegar ao alto de uma galeria onde, mais abaixo, Raizel estava distraído tocando um piano roxo.

Diferente do habitual, e para a sua surpresa, o nefilim trajava um refinado traje composto por terno e gravata, dando-lhe uma aparência bem mais elegante e sofisticada do que a ríspida e egocêntrica demonstrada anteriormente.

A garota se aproximou por trás enquanto a harmonia ressoava até que o piano simplesmente parou.

— Ora, vejo que despertou antes do esperado. — Virou-se para trás antes que ela pudesse falar algo.

— Que música é essa? — disse com um certo brilho no olhar. —  Eu nunca ouvi antes 

— A 5º Sinfonia de Beethoven.

— "Beethoven"?

Essa podia ser uma composição muito conhecida na Terra, mas naquele planeta o nome desse compositor e as suas fabulosas músicas eram totalmente desconhecidas.

O rapaz apenas olhou para ela com uma feição de “é claro que não conhece”.

— De qualquer forma, onde nós estamos? — indagou, saindo do transe da música e voltando à realidade.

— Este é o meu humilde quarto. — Fez um movimento de apresentação com os braços  — Tecnicamente, ainda estamos na Academia.

— Nem de longe isso é um quarto — disse, ao passo que olhava os arredores.

Aquela galeria estava repleta de instrumentos musicais dos mais diversos tipos: violinos, clarinetes, saxofones, flautas, violões e alguns um tanto quanto exóticos.

Até que era bem organizada, diferente das outras que viu pelo caminho.

— Bem, eu tenho  um assunto a tratar com você, garotinha. — Com um toque gentil, despediu-se do piano. — Mas antes pode tomar um banho e trocar de roupa.

Percebendo que se encontrava com as roupas e os cabelos sujos de poeira, além de alguns rasgos nas mangas da blusa e região da barriga, Petra retrucou:

— De quem será que é a culpa?

Hahaha! Pra alguém que foi atingida pelo Prelúdio, você até que tá bem. — O garoto se pôs a sair primeiro, sem a menor intenção de pedir desculpas. — Eu estarei te esperando na sala.

É, ela sabia que aquilo não era um quarto.

“Ele podia, ao menos, ter me dito onde ficava o banheiro.” Só agora ela tinha notado o quão desleixado aquele cara poderia ser. "Quase que eu nem acho".

Após finalizar o banho e trocar a roupa suja por uma nova, que tirou do pingente de lua crescente, saiu ao encontro do anfitrião.

Depois de algum tempo, ela finalmente retornou até a sala onde o rapaz estava sentado em uma pequena poltrona com as pernas cruzadas e segurando uma taça de vinho.

No centro, havia uma mesa com alguns pães, biscoitos, frutas e chá. Além de outra poltrona logo à frente.

— Sente-se — convidou o rapaz.

Sentando-se com uma postura ereta e com as mãos em frente ao corpo, aceitou o convite. Bem mais comportada que o indivíduo à sua frente.

— Os meus amigos devem estar preocupados comigo, eu não posso demorar muito aqui.

Ótimo. — Ele nunca teve a intenção de enrolar mesmo, então estendeu uma mão para a visitante. — Garotinha, forme um duo comigo.

Heim?

Aquele pedido inusitado quase a fez derramar a xícara de chá que estava em suas mãos. Que proposta mais sem pé e nem cabeça. Eles acabaram de se conhecer. Além do mais, esse cara ainda era meio suspeito.

— Você sabe o que é preciso para realizar um Pacto de Ressonância?

“Vai devagar aí, eu... eu nem respondi nada ainda." Já que estava lá, não custava conversar um pouquinho. — Os pactuantes devem ter alguma afinidade ou o pacto falha.

— Esse é só o básico do básico.

Indo um pouco mais a fundo, o Pacto de Ressonância fazia com que as almas dos pactuantes ressoassem entre si, gerando um link que permitia aos dois sentirem se o outro estava em perigo, bem como a sua localização.

— Então... tem algo a ver com os anéis?

O rapaz fez um momento de silêncio para tomar um gole do vinho, então a respondeu:

— É, tem isso também. — Apesar de importantes, eles serviam apenas para intensificar os efeitos do pacto. — Mas o que mais importa é o compartilhamento de habilidades, garotinha.

Huh?

Dado a reação da moça, encarou-a de forma suspeita. Como alguém poderia participar das Batalhas de Admissão sem saber do mais importante?

Observando a reação de Raizel, Petra engoliu em seco. Para aliviar aquele clima era necessário falar sobre assuntos pessoais para um estranho.

— Eu... vivi reclusa por um tempo, sabe?

Durante os anos que ficou trancafiada na mansão da sua família, uma das poucas pessoas com quem a pequena teve contato foi a sua amiga de infância, Valentina.

Contudo, graças à ajuda do seu irmão mais velho, juntamente com sua amiga, ela conseguiu escapar das garras maléficas do seu padrasto.

Inicialmente, aquele homem era bem gentil e educado, alguém em quem a sua mãe poderia confiar após a morte do seu esposo, isso até o dia em que ela também veio a falecer.

A partir dali, aquele homem se tornou uma pessoa completamente diferente.

— Mas por que ele te queria confinada, afinal?

Eh... — As palavras pararam em sua boca. Fala mais do que isso era meio…

— Que seja.

Eles poderiam deixar isso de lado por enquanto. O próprio Raizel era péssimo quando se tratava de assuntos familiares.

Já para Petra, era reconfortante saber que ele respeitaria sua privacidade, mas, nesse momento, esse cara já deveria saber que firmar um Pacto de Ressonância com ela acabaria atraindo problemas.

— O pacto nos permite compartilhar algumas habilidades das nossas raças.

No entanto, isso não envolvia a Habilidade Inata com a qual o indivíduo nascia, uma vez que só era possível portar uma única.

— Mas a gente é da mesma raça, né?

— Você viveu dentro de uma cavern...? — Quase isso. — Bem, eu sou um nefilim.

E, como tal, não tinha nada a ganhar com essa parte do pacto, uma vez que já era meio-humano. Mas ela poderia ganhar muito com as habilidades da raça que disputava com os demônios o título de a mais poderosa da criação, os anjos.

Contudo, independente da forma que o olhasse, Raizel parecia bem humano aos seus olhos. Ela imaginava os nefilins como criaturas divinas portadoras de asas ou algo do tipo.

— Por sinal, os três membros do topo dessa Academia são os únicos nefilins existentes.

Huh? Só três? — Inclinou-se um pouco para frente, fitando Raizel.

— É complicado para humanos ou bestas assimilarem o poder divino, e os demônios são incompatíveis por motivos óbvios. — Colocando a taça sobre a mesa, proferiu: — Contudo, o que eu posso fazer é te dar asas, se você será capaz de voar é outra história.

Essa era uma oferta tentadora. Esse garoto poderia ser o príncipe encantado pronto para a salvar em seu cavalo branco.

Ou, quem sabe, o mago sombrio que lhe oferecia a maçã envenenada.

— Nós temos mesmo alguma afinidade pro pacto?

— Você admira esse poder que eu possuo, não é? Afinal é algo que você precisa. Nós podemos fazer tudo o que quisermos desde que tenhamos poder para tal. E você também tem algo que eu admiro.

— Eu tenho?

Humph! — disse, encarando-a com um sorrisinho debochado. — Mas eu não posso garantir o sucesso do pacto. Afinal, se fosse tão simples, eu não estaria sem duo até agora.

Parando para pensar um pouco, era bem estranho o membro mais forte da Academia estar até hoje sem um duo.

— Primeiro, existe o que nós podemos chamar de Predisposição Natural. Então, mesmo que cumpramos o requisito básico, ainda existe uma chance do ritual falhar.

O seu alto grau de divindade, que chegava a superar até mesmo o dos outros nefilins, já tornava as chances de sucesso baixas. Além disso, ainda havia um risco que seria exclusivo da garota.

— Segundo, a diferença esmagadora de energia que há entre as nossas almas pode te trazer alguns efeitos colaterais. É difícil saber quais, talvez a morte ou sequelas permanentes.

Um mago sombrio não ofereceria uma maçã envenenada dessa forma.

Uhum! — respondeu sem perder tempo. — Desde o momento em que fugi, eu já estava decidida a arriscar a minha vida por isso.

Essa determinação era algo cativante. Em posse do poder necessário para alcançar os seus objetivos, que tipo de coisas ela poderia lhe mostrar?

— É, eu gostei de você.

Inesperadamente, a garota juntou as mãos e virou o rosto para o lado, meio sem jeito. Esse cara tinha que aprender a ser um pouco de delicado.

— Vamos preparar o pacto em um local mais adequado.

Após usarem um Círculo de Transporte, os dois foram parar no alto de uma colina em meio a um céu estrelado. Enquanto a moça ficou mais no canto, Raizel preparava os círculos e os ideogramas para o ritual.

— Já tá tão tarde.

As batalhas foram realizadas durante a tarde, mas o céu já estava tão escuro. Por quanto tempo será que ela dormiu após receber aquele golpe?

— Aqui sempre proporciona uma bela vista à noite.

— Verdade. — Contemplando a majestade dos astros celestes, a moça se deu conta de algo. — Você disse que participou do evento porque tinha uma dívida a pagar, não foi?

— Eu perdi pro Trevor no cara ou coroa. Foi isso o que ele pediu como recompensa.

Os olhos da garota quase saltaram para fora das órbitas. Eles causaram aquela confusão toda por causa de um cara ou coroa?

— Era a melhor forma de me vencer, embora o Trevor e a Sophie possuam Habilidades Inatas que podem ser problemáticas até pra mim.

— Então num dois contra um, você… perderia?

Humph! Não viaja.

Mesmo que ocupassem a segunda posição no Rank S, e o Trevor fosse um nefilim, havia uma barreira entre o Top 1 e o Top 2 que não podia ser ultrapassada.

Por alguma razão, durante o restante dos preparativos, a garota ficou em absoluto silêncio. Considerando o quanto estava falando antes, aquilo era estranho.

— Agora é só dar andamento ao ritual. Você já pode vir para o centro do círcu... — Voltou-se para trás e viu a garota envergonhada enquanto segurava um papel. — O que houve?

Aquele era o material com o procedimento para o ritual do Pacto de Ressonância que ela recebeu quando fez sua inscrição, mas, dado a toda a correria, mal teve tempo para ler direito.

— Be-Beijo?!

— Sim, um beijo com os lábios cortados e com os ideogramas grafados nesse círculo estimulam as almas dos pactuantes a ressoar. — Aquele ritual tomava o casamento como base, afinal. — É apenas isso o que te preocupa?

— Eu... Eu... — disse, ao passo que desviava o olhar, vermelha que nem um pimentão — nunca beijei ninguém.

De fato foi criada em um cativeiro de luxo. Mas, se continuasse tão nervosa, eles não conseguiriam prosseguir com o ritual.

— Venha aqui, senhorita — disse, com um tom de voz mais gentil e lhe estendendo a mão como um cavalheiro.

— "Senhorita"? — Essa palavra soava estranho vindo de alguém que até então só lhe chamava de "garotinha". Ainda assim, foi em sua direção e segurou a mão dele.

— Eu entendo o seu ponto. — Soltou a mão da garota e fez um pequeno corte em seu lábio inferior. — Mas mantenha o seu objetivo em mente, ok?

“Ele está certo. A-Apenas foque no objetivo à sua frente.” Cortou o lábio inferior do seu futuro parceiro e fechou os olhos. “T-Tá tudo bem, vai ser algo be-bem rápi...”

Os pensamentos de Petra foram interrompidos quando os lábios de Raizel encostaram-se com os seus.

Ainda era possível sentir um pouco do gosto do vinho que ele romara, mas o que mais se destacava era o sabor amargo do sangue, o qual começou a espalhar-se pelo seu paladar.

Por instinto, ou talvez pela sensação do momento, a garota envolveu o pescoço de Raizel em seus braços. Em resposta, ele a abraçou pela cintura.

O momento não durou mais do que alguns segundos, mas era como se o tempo havia parado.

Nesse período, o nefilim viu a breve imagem de uma pequena garota de cabelos prateados aos prantos, no canto escuro de um quarto luxuoso. Na sua frente havia um violino e um arco quebrados.

Petra, por outro lado, viu um pequeno garoto ensanguentado, pelas costas. Os seus cabelos eram roxo-escuros e ele estava ao lado de uma espada cravada no chão.

Era uma arma verdadeiramente bela. O seu guarda-mão se assemelhava às asas de um querubim: duas asas para a frente e duas para trás.

Era difícil acreditar que fora feita por mãos humanas. Mas o que mais se destacava eram os vários cadáveres de gigantes alados no chão

Quando abriu os olhos, viu-se encarando os olhos escarlates do garoto. Os seus rostos ainda estavam bem próximos. O coração dela disparou de repente, como se já não estivesse batendo forte o bastante.

Afastou-se dele, meio que no impulso. Então se deu conta de que os traços e os ideogramas do círculo emanavam um forte brilho roxo misturado com prata.

Duas esferas de luz surgiram entre os dois. Raizel segurou a que estava diante de Petra e se abaixou, apoiando um joelho no chão, diante da garota.

Tomou a mão direita dela para colocar o anel em seu dedo anelar.

“Isso estava no procedimento?”

— Com isso, ainda que o inferno congele e o céu venha a baixo, eu a protegerei, minha preciosa duo — proferiu, com um leve e gentil sorriso no rosto.

Essa foi a primeira vez que o viu esboçar algo além de uma expressão séria ou fria.

“Então ele é capaz de fazer uma expressão assim?, pensou enquanto sua visão escurecia e seu corpo enfraquecida. Contudo, Raizel se levantou rápido e a tomou em seus braços antes que caísse.

— Eu estarei torcendo — mais uma vez — pelo seu despertar, senhorita.


Quer ouvir a música que Raizel tocou neste capítulo? Acesse 5° Sinfonia de Beethoven.

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