Volume 1 – Arco 1
Capítulo 4: Pacto de Ressonância
Finos cabelos prateados caíram sobre seus olhos verdes e sobre o tecido da cama a qual ela estava deitada.
Fossem os lençois ou os travesseiros, tudo era macio e delicado, agradável ao toque e da mais alta qualidade.
A aparência pálida e o corpo desnutrido, no entanto, tornavam difícil para qualquer um tecer elogios acerca da sua aparência.
A bela mulher, Elizabeth Lavour, forçou um pequeno sorriso para uma garotinha que estava ajoelhada no pé da cama.
A pequena era como uma miniatura de sua mãe, só que mais fofinha e com olhos azul-celeste, assim como os do pai.
— Vai ficar tudo bem, Petra. — Sua voz soava baixa e fraca, mas fez um pouco de esforço para levar a mão até a cabeça da menina. “Tão nova, mas já passou por tanta coisa”.
— Mas… mamãe…
— Eu posso confiar algo a você, pequenina? — Lentamente, Elizabeth levou as mãos em direção ao pescoço e retirou o pingente prateado de lua crescente que ela usava. — É algo precioso para a mamãe, e eu espero que seja pra você também.
A pequena estendeu as mãos para aquele acessório, como se segurasse o objeto mais delicado do mundo.
O último presente da sua mãe.
— Mamãe! — Petra acordou ofegante e com um braço erguido para o nada. Logo acima, um teto preto era clareado por algumas luminárias.
A garota logo levou uma mão trêmula ao peito, onde, por baixo da blusa, estava o pingente que recebeu naquele dia.
Após um pouco de tempo, ela conseguiu se acalmar e percebeu que estava deitada no sofá de uma sala desconhecida.
Sem saber onde estava direito, e notando que os seus machucados haviam sumido, decidiu explorar o lugar.
— Mas que tipo de casa é essa? — perguntava-se ao passo que deslizava os dedos por uma das paredes. — Por que tem tanto tom de preto por aqui?
O local era amplo. As paredes eram feitas de basalto, assim como o piso escuro. Seria tudo silencioso, se não fosse pelo som harmonioso de um piano que ressoava pelos corredores.
A harmonia carregava um certo tom de tensão e frenesi. Era executada com ímpeto, mas, em alguns momentos, ficava mais suave. Seria algo perfeito para tocar de fundo no clímax de uma peça.
Petra seguiu o timbre, como se estivesse hipnotizada pelo som, até chegar ao alto de uma galeria, onde, mais abaixo, Raizel estava distraído tocando um piano roxo.
Diferente do habitual, e para a surpresa da moça, o nefilim trajava um refinado terno e gravata, dando-lhe uma aparência bem mais elegante e sofisticada do que a ríspida e egocêntrica de antes.
A garota se aproximou por trás enquanto a harmonia ressoava até que o piano simplesmente cessou sua voz.
— Vejo que despertou antes do esperado. — Raizel se virou para trás antes que a visitante pudesse falar algo.
— Que música é essa? — disse com um certo brilho no olhar. — Eu nunca ouvi antes. — E de música clássica, ela entendia bem.
— A 5º Sinfonia de Beethoven.
— "Beethoven"?
Essa podia ser uma composição muito conhecida na Terra, mas, naquele planeta, o nome daquele compositor e as suas fabulosas obras musicais eram totalmente desconhecidas.
O rapaz apenas olhou para a moça com uma feição de “é claro que não conhece”.
— Eh, bem… Onde é que nós estamos? — indagou Petra, saindo do transe da música e voltando para a realidade.
— Este é o meu humilde quarto. — Fez um movimento de apresentação com os braços. — Tecnicamente, ainda estamos na Academia.
— “Um quarto”? — A garota sondou os arredores com a sua visão; nem de longe aquilo seria apenas um “quarto”, muito menos um “humilde quarto”.
Só aquela galeria estava repleta de instrumentos musicais dos mais diversos tipos: violinos, clarinetes, saxofones, flautas, violões e alguns um tanto quanto exóticos.
— Eu tenho uma proposta pra te fazer, por isso te trouxe até aqui. — Com um dedilhar gentil, o nefilim se despediu do piano. — Mas, antes, pode tomar um banho e se trocar.
Percebendo que se encontrava com as roupas e os cabelos sujos de poeira, além de alguns rasgos nas mangas da blusa, região da barriga e, principalmente, nas coxas pálidas, Petra corou um pouco.
— Hahaha! Pra alguém que foi atingida pelo Prelúdio, você até que tá bem. — O garoto se pôs a sair primeiro, sem a menor intenção de pedir desculpas. — Eu estarei te esperando na sala.
“Sala”? Ela sabia que aquilo não era um “quarto”.
— Por que esqueci de perguntar onde ficava o banheiro? E ele nem contou. — Só então Petra tinha notado que aquele nefilim poderia ser bem desleixado. — Quase que eu nem acho.
Após finalizar o banho e trocar a roupa suja por uma nova, que ela tirou do pingente de lua crescente, a moça saiu ao encontro do anfitrião, com o cabelo ainda um tanto úmido, porém cheiroso.
Depois de algum tempo, ela finalmente retornou até a sala onde o rapaz estava sentado em uma pequena poltrona com as pernas cruzadas e segurando uma taça de vinho.
No centro, havia uma mesa com alguns pães, biscoitos, frutas e chá. Além de outra poltrona logo à frente.
— Sente-se — convidou o rapaz.
Sentando-se com uma postura ereta e com as mãos em frente ao corpo, Petra se juntou ao anfitrião. Bem mais comportada que o indivíduo à sua frente.
— Bem… Sem querer parecer rude — falou, de forma pausada. — Eu tenho uns amigos que devem estar preocupados comigo, então… você pode ser direto?
— Entendo. — Ele nunca teve a intenção de enrolar, de qualquer forma, então estendeu uma mão para a visitante. — Eu gostaria que você se tornasse a minha parceira de duo.
— Hã? — Aquele pedido inusitado quase a fez derramar a xícara de chá que estava em suas mãos. — Eu entendi bem?
Que proposta mais sem pé e nem cabeça. Eles acabaram de se conhecer. Além do mais, aquele cara ainda era meio suspeito.
— Você sabe o que é preciso para realizar um Pacto de Ressonância?
“Vai devagar, eu... eu nem respondi nada ainda." Já que estava lá, não custava conversar um pouquinho. — Os pactuantes devem ter alguma afinidade, certo?
— Esse é só o básico do básico.
Indo um pouco mais a fundo, o Pacto de Ressonância fazia com que as almas dos pactuantes ressoassem entre si, gerando um elo que permitia aos dois sentirem se o outro estava em perigo, bem como a sua localização atual e o percurso até lá.
— Então... tem algo a ver com os aneis?
O rapaz fez um momento de silêncio para tomar um gole do vinho, então a respondeu:
— É, tem isso também. — Apesar de importantes, os aneis serviam apenas para intensificar os efeitos do pacto. — Mas o que mais importa é o compartilhamento de habilidades de raças.
— Ah… sim.
Dado a reação da moça, Raizel a encarou de forma suspeita. Como alguém poderia participar das Batalhas de Admissão sem saber das partes mais importantes?
Observando a reação de Raizel, Petra engoliu em seco. Para aliviar aquele clima era necessário falar sobre assuntos bem pessoais para um estranho.
— Eu... vivi reclusa por um tempo, sabe? — explicou um pouco mais.
Durante os anos em que ela ficou trancada na mansão da sua família, uma das poucas pessoas com quem a pequena teve contato foi a sua amiga Valentina.
Contudo, graças à ajuda do seu irmão mais velho, juntamente com sua amiga, ela conseguiu escapar das garras maléficas do seu padrasto.
Inicialmente, aquele homem era bem gentil e educado, alguém em quem a mãe dela poderia confiar após a morte do seu esposo, isso até o dia em que ela também veio a falecer.
A partir dali, aquele homem se tornou uma pessoa completamente diferente.
— Entendi o básico. — O nefilim deixou a taça de vinho de lado. — Mas por que ele te queria confinada, afinal?
— Eh... — As palavras pararam em sua boca. Fala mais do que isso era meio…
— Que seja.
Eles poderiam deixar aquilo de lado por enquanto. O próprio Raizel era péssimo quando se tratava de assuntos familiares.
Já para Petra, era reconfortante saber que ele respeitaria sua privacidade, mas, naquele momento, Raizel já deveria saber que firmar um Pacto de Ressonância com ela acabaria atraindo problemas.
— O pacto nos permite compartilhar algumas habilidades das nossas raças, como eu falei. — No entanto, isso não envolvia a Habilidade Inata com a qual o indivíduo nascia, uma vez que era possível portar apenas uma. —
— Mas você é um nefilim, né? — Ele já tinha as características da raça humana. — Você não ganha nada comigo.
Mas ela poderia ganhar muito com as habilidades da raça que disputava com os demônios o título de a mais poderosa da criação, os anjos.
Contudo, independente da forma que o olhasse, Raizel parecia bem humano aos olhos de qualquer um. Petra imaginava os nefilins como criaturas divinas portadoras de asas ou algo do tipo.
— Por sinal, os três membros do topo dessa Academia são os únicos nefilins existentes.
— Huh? — Inclinou-se um pouco para frente, fitando Raizel. — Só três?
— É complicado para humanos ou bestas assimilarem o poder divino, e os demônios são incompatíveis por motivos óbvios. — Tomando a taça de vinho de volta, o rapaz proferiu: — Mas entenda que tudo o que eu posso fazer é te dar asas, se você será capaz de voar é outra história.
Era uma oferta tentadora. Aquele rapaz poderia ser o príncipe encantado pronto para a salvar em seu cavalo branco. Ou, quem sabe, o mago sombrio que oferecia a maçã envenenada.
— Nós temos mesmo alguma afinidade pro pacto? — refletiu a moça. — Digo… a gente nem se conhece direito.
— Você admira o poder que eu possuo, não é? — O que muitos temiam ou odiavam. — Afinal é algo que você precisa.
— Mas você gosta de algo em mim? — Na arena, ele a encarava como um inseto. — Eu poderia… saber o que é?
— Talvez você seja uma garota tola. — Petra arregalou os olhos. De que modo aquilo poderia ser algo admirável. — Pra mim isso vale muito, se é o que você está pensando.
Um tanto sem jeito, por ser lida como um livro, a garota desviou o rosto para alguns dos biscoitos que estavam sobre a mesa.
— Mas eu não posso garantir o sucesso do pacto. — Evitando deixar a moça desconfortável, Raizel prosseguiu com o assunto. — Se fosse tão simples, eu não estaria sem duo até agora.
Parando para pensar um pouco, era bem estranho o membro mais forte da Academia estar até então sem um duo.
— Primeiro, existe o que nós podemos chamar de Predisposição Natural — explicou. — Então, mesmo com o requisito básico, ainda existe a chance do ritual falhar.
O seu alto grau de divindade, que chegava a superar até mesmo o dos outros nefilins, já tornava as chances de sucesso bem baixas. Além disso, ainda havia um risco que seria exclusivo da garota.
— Segundo, a diferença esmagadora de energia que há entre as nossas almas pode te trazer alguns efeitos colaterais. — Petra ouviu com atenção, principalmente aquela parte. — É difícil saber o que, talvez a morte ou sequelas permanentes.
Um mago sombrio não ofereceria uma maçã envenenada daquela forma, disso Petra tinha certeza, mesmo que Raizel estivesse longe de ser um príncipe.
— Uhum! — A garota respondeu, sem perder tempo. — Desde o momento em que fugi, eu já estava decidida a arriscar a minha vida por isso.
Aquela determinação era algo cativante. Em posse do poder necessário para alcançar os seus objetivos, que tipo de coisas aquela garota poderia mostrar?
“É mesmo uma garota tola.”
Após usarem um círculo de transporte, os dois foram parar no alto de uma colina em meio a um céu estrelado. Enquanto a moça ficou mais ao canto, Raizel preparava os círculos e os ideogramas para o Ritual de Ressonância.
— Já tá tão tarde. — Petra apreciava a bela das estrelas brilhantes.
As Batalhas de Admissão foram realizadas durante a tarde, mas o céu já estava tão escuro. Por quanto tempo será que ela dormiu após receber aquele golpe?
— Aqui sempre proporciona uma bela vista à noite. — Era o que dizia, embora estivesse mais focado em desenhar o círculo.
— Uhum! — Contemplando a majestade dos astros celestes, a moça se deu conta de algo. — Você disse que participou do evento porque tinha uma dívida a pagar, não foi?
— Eu perdi pro Trevor no cara ou coroa. — O nefilim sorriu de canto de boca. — Foi isso o que ele pediu como recompensa. — Só então Raizel se deu conta do porquê.
Os olhos da garota quase saltaram para fora das órbitas. Raizel e Trevor causaram aquela confusão toda por causa de um simples cara ou coroa?
— Era a melhor forma de me vencer, embora o Trevor e a Sophie possuam Habilidades Inatas que podem ser problemáticas até pra mim.
— Então, no dois contra um… você perde?
— Haha! Não viaja.
Mesmo que ocupassem a segunda posição no Rank S, e o Trevor fosse um nefilim, havia uma barreira entre o Top 1 e o Top 2 que não podia ser ultrapassada.
Por alguma razão, durante o restante dos preparativos, a garota ficou em absoluto silêncio. Considerando o quanto estava falando antes, aquilo era estranho.
— Agora é só dar andamento ao ritual. Você já pode vir para o centro do círcu... — Raizel se voltou para trás e viu Petra envergonhada enquanto segurava um papel. — Algum problema?
Aquele era o material com as informações sobre o procedimento para o Ritual de Ressonância que ela recebeu quando fez sua inscrição, mas, dado a toda a correria, mal teve tempo para ler direito.
— Be-Beijo?!
— Sim, um beijo com os lábios cortados e com os ideogramas grafados nesse círculo estimulam as almas dos pactuantes a ressoar. — Aquele ritual tomava o casamento como base, no fim das contas. — É apenas isso o que te preocupa?
— Mas eu ... — disse, ao passo que desviava o olhar, vermelha que nem um pimentão — nunca nem beijei ninguém.
De fato, foi criada em um cativeiro de luxo. Mas, se continuasse tão nervosa, eles não conseguiriam prosseguir com o ritual.
— Poderia vir até mim, senhorita? — chamou-a Raizel, com um tom de voz mais suave enquanto oferecia uma mão para ela.
— "Senhorita"? — Essa palavra soava estranha vinda de Raizel. Ainda assim, ela foi em sua direção e segurou a mão dele.
— Eu entendo o seu ponto. — Soltou a mão da garota e fez um pequeno corte no lábio inferior dela. — Mas mantenha o seu objetivo em mente, ok?
“Ele está certo. A-Apenas foque no objetivo à sua frente.” Cortou o lábio inferior do seu futuro parceiro e fechou os olhos. “T-Tá tudo bem, vai ser algo be-bem rápi...”
Os pensamentos de Petra foram interrompidos quando os lábios de Raizel encontraram os seus.
Ainda era possível sentir um pouco do gosto do vinho que ele tomara, mas o que mais se destacava era o sabor amargo do sangue, o qual começou a espalhar-se pelo seu paladar.
Por instinto, ou talvez pela sensação do momento, a garota envolveu o pescoço de Raizel em seus braços. Em resposta, ele a abraçou pela cintura.
O momento não durou mais do que alguns poucos segundos, era só um procedimento, afinal; mas o tempo poderia ter feito o favor de passar mais devagar.
Naquele curto intervalo, o nefilim viu a breve imagem de uma pequena garota de cabelos prateados aos prantos, no canto escuro de um quarto luxuoso. Na frente dela, um violino e um arco, quebrados.
Petra, por outro lado, viu um pequeno garoto ensanguentado, pelas costas dele. Os cabelos eram roxo-escuros e ele estava ao lado de uma espada cravada no chão.
Era uma arma verdadeiramente bela. O seu guarda-mão se assemelhava às asas de um querubim: duas asas apontadas para a frente e duas para trás.
Era difícil acreditar que fora feita por mãos humanas. Mas o que mais se destacava eram os vários cadáveres de gigantes alados no chão.
Quando Petra abriu os olhos, viu-se encarando as íris escarlates do nefilim. Os seus rostos ainda estavam bem próximos. O coração dela disparou de repente, como se já não estivesse batendo forte o bastante.
Afastou-se dele, meio que no impulso. Então se deu conta de que os traços e os ideogramas do círculo emanavam um forte brilho roxo misturado com prata.
Duas esferas de luz surgiram entre os dois. Raizel segurou a que estava diante de Petra e se abaixou, apoiando um joelho no chão, diante da garota.
Tomou a mão direita da companheira para colocar o anel, que saiu da esfera de luz, no dedo anelar dela.
“Isso estava no procedimento?”
— Com isso, ainda que o inferno congele e o céu venha a baixo, eu a protegerei, minha preciosa duo — decretou o nefilim, com um leve e gentil sorriso no rosto.
Essa foi a primeira vez que Petra o viu esboçar algo além de uma expressão séria ou fria, distante ou vazia.
“Ele é capaz de sorrir assim”, pensou enquanto sua visão escurecia e seu corpo ficava fraco. Vendo que a garota iria cair, Raizel se levantou rápido e a tomou em seus braços antes que ela alcançasse o chão.
— Eu estarei torcendo — mais uma vez — pelo seu despertar, senhorita.
Quer ouvir a música que Raizel tocou neste capítulo? Acesse 5° Sinfonia de Beethoven.