Volume 1 – Arco 5

Capítulo 42: O Refúgio Esquecido

Em uma era marcada pela matança desenfreada — onde até laços de sangue se desfaziam em nome da ganância —, um punhado de almas sãs decidiu se unir em uma peregrinação desesperada, em busca de um lugar onde pudessem, enfim, viver em paz. 

Por incontáveis dias e noites, enfrentaram os horrores da natureza... e, sobretudo, os horrores dos próprios homens. Até que, guiados talvez pelo destino, encontraram um lugar que parecia ser a promessa de um recomeço. 

Diante deles, estendia-se um vasto lago de águas doces e cristalinas, capaz de oferecer todo o sustento de que necessitavam. E assim decidiram fincar raízes às suas margens. 

Com o passar do tempo, descobriram algo curioso. Do outro lado do lago, parcialmente escondida sob a sombra imponente das montanhas, havia uma estreita faixa de terra. 

Movidos pelo desejo de se isolar por completo do restante da humanidade, improvisaram uma ponte rústica que os levou até aquele pedaço de mundo ignorado. 

A terra, à primeira vista, era hostil — estéril, sem florestas, sem cavernas, sem abrigos. Mas, ironicamente, era exatamente o que procuravam. Ali, livres de tudo e de todos, ergueram com as próprias mãos uma cidade provisória, feita unicamente da madeira que conseguiram extrair dos arredores do lago. 

Chamaram-na de Shenxi. 

***

Aninhada entre as montanhas, Shenxi ergueu-se sobre um pedaço de terra isolado, quase completamente cercado por um vasto lago de águas doces e cristalinas. Embora não fosse, de fato, uma ilha, a cidade encontrava-se protegida de três lados por encostas íngremes e rochosas, que se erguiam como muralhas naturais. Pela frente, o lago abraçava Shenxi, formando uma barreira tão bela quanto imponente — um obstáculo que, há séculos, afastou viajantes indesejados e protegeu seus habitantes do mundo lá fora. 

A única entrada e saída da cidade era uma antiga ponte de pedra, arqueando-se sobre o lago como um arco solitário que conecta Shenxi ao restante do continente. Construída séculos atrás pelos próprios fundadores, essa ponte permaneceu até hoje como a única obra de grande porte em uma cidade onde quase tudo fora erguido com madeira extraída das florestas vizinhas. Para muitos, ela representava tanto a salvação quanto a maior fraqueza de Shenxi — o frágil elo que os unia ao mundo que escolheram deixar para trás. 

Os milênios de isolamento poderiam ter levado qualquer sociedade à loucura. Mas os habitantes de Shenxi carregavam, geração após geração, as memórias e os traumas de seus antepassados — sobreviventes de uma era de sangue e violência. Essa herança moldou não apenas seus costumes, mas também sua maneira de governar. 

Ali, os Governadores não eram escolhidos por linhagens ou imposições, mas por um processo simples: qualquer cidadão que se julgasse digno podia se candidatar. O novo líder era eleito através dos votos da própria população. 

O atual Governador era um homem chamado Zudao. Respeitado, considerado um dos melhores administradores que Shenxi já tivera. Zudao, no entanto, enfrentava tempos difíceis. 

Um jovem — ambicioso, carismático, de sorriso fácil e olhar encantador — começava a balançar as estruturas da cidade. Ao contrário dos demais, ele não via valor no isolamento. Acreditava que Shenxi poderia prosperar se abrisse suas portas para o mundo. Seu otimismo cativava, sua fé nas pessoas parecia inabalável. E, pouco a pouco, começou a reunir seguidores. 

Esses seguidores o acompanharam para além dos limites da cidade, onde, com esforço e determinação, ergueram uma torre. Uma construção que contrastava violentamente com Shenxi: sólida, feita inteiramente de pedra — quase impenetrável. Uma fortaleza. 

Zudao não queria resolver a situação com violência. Preferia a diplomacia, o diálogo. Mas as opções estavam se esgotando. A cada dia, mais cidadãos abandonavam a cidade, seduzidos pelos ideais de liberdade daquele homem e pela estranha seita que nascera ao redor dele. 

Até que, certa noite, alguém bateu à sua porta.

Quando Zudao abriu, encontrou Yong, um velho conhecido das ruas de Shenxi. Ele fora, em outros tempos, apenas mais um jovem desajustado da cidade... mas agora, trazia consigo uma presença desconcertante. Empunhava um cajado estranho, feito de raízes entrelaçadas, encimado por uma pedra opaca, uma joia, que parecia pulsar com uma luz interna. 

Zudao! — chamou Yong, entrando nos aposentos sem sequer esperar permissão. Sua voz carregava uma confiança quase desafiadora. — Venho trazer a solução para os seus problemas. 

O Governador, surpreso, estranhou não ter sido avisado pelos guardas. Mas, diante da tensão que assolava a cidade, escolheu ignorar o detalhe.

O que você propõe? — perguntou, deixando escapar no tom a falta de malícia de quem, claramente, já flertava com o desespero. 

Yong sorriu, cruzando os braços enquanto se apoiava no cajado. 

Feng... — começou, referindo-se ao líder da seita — deseja uma audiência com o grande monge Budai. Assim, ele e todos os seus seguidores poderão obter sua bênção e, com isso, partir de Shenxi sob proteção. 

Zudao empalideceu. Um calafrio subiu-lhe pela espinha. 

Não... não pode ser! — balbuciou, levando a mão ao peito, como se quisesse segurar o próprio coração. — Se essa notícia se espalhar... muitos outros desejarão acompanhá-los! — Seus olhos, aflitos, buscaram os de Yong. — O que você quer em troca? 

O Governador, sem perceber, ajoelhou-se. Seus ombros curvaram-se, como quem se humilha diante de algo inevitável — ou de alguém mais forte. Yong observava aquela cena com um prazer difícil de disfarçar, embora tentasse esconder atrás de um sorriso contido. 

Shenxi — respondeu, simples, direto. — Quero a cidade. Quero ser o próximo Governador. 

O corpo de Zudao tremeu. Seu rosto, tomado pelo pavor, parecia envelhecer diante daquela proposta. Como poderia entregar sua cidade, seu povo, nas mãos daquele homem? Yong nunca fora um líder, nunca soubera administrar sequer a própria vida. E, ainda assim... o que seria pior? Entregar Shenxi ou vê-la esvaziar-se, sumir, ser esquecida? 

Foi nesse dilema que Zudao cometeu seu maior erro. 

Em silêncio, pegou sua caneta oficial, com mãos trêmulas, oficializou a transferência do cargo. A partir daquele momento, Yong se tornava, formalmente, o novo Governador de Shenxi. Em troca, prometia que a seita e seus seguidores jamais voltariam a ser um problema. 

A reunião foi feita na surdina. Nenhuma testemunha. Nenhum papel além daquele contrato. Ninguém soube do acordo. 

Mas mesmo que soubessem... ninguém, absolutamente ninguém, poderia prever as consequências que esse ato desencadearia. 

***

Feng mal podia acreditar. Budai, o Iluminado, havia realmente aceitado se encontrar com ele. Aquilo parecia um sinal divino. Tinha plena convicção de que, com a ajuda do lendário monge, ele e seus seguidores finalmente poderiam partir em segurança para outra cidade... e, assim, recomeçar uma nova vida. 

Diante do espelho, inquieto, Feng revirava as gavetas, tentava escolher uma roupa adequada, mas nada parecia certo. Seu olhar corria entre túnicas, faixas e chapéus, indeciso, ansioso, sufocado pelas próprias expectativas. 

Nosso grande salvador não consegue encontrar seu chapéu favorito? — provocou uma voz feminina, carregada de sarcasmo e familiaridade. 

Ele suspirou, passando a mão pelos cabelos. 

Não me chame assim, Lian. Você sabe que foi só... uma metáfora — respondeu, envergonhado, desviando o olhar. 

Seus seguidores não parecem ter entendido dessa forma, "filho dos deuses"... — rebateu, arqueando uma sobrancelha. 

Lian aproximou-se sem cerimônia, como fazia desde a infância. Seu ventre, já levemente arredondado, deixava evidente que carregava a criança deles — fruto de um amor que crescera ao longo dos anos. 

Feng a envolveu nos braços. Seus rostos se tocaram, e por alguns segundos, o mundo parecia se reduzir apenas à respiração de ambos, ao calor daquele breve beijo, ao conforto de estarem juntos. 

Você não precisa ir. Pode ficar e descansar — murmurou Feng, a acariciando no rosto. 

Mas Lian apenas sorriu, aquele sorriso que ele conhecia bem — de quem jamais cederia. 

Você sabe que eu não perderia esse encontro por nada. Não adianta insistir. 

Eram opostos perfeitos. Feng, gentil, compassivo, eternamente inclinado a ver o melhor nas pessoas, quase incapaz de acreditar na existência do mal verdadeiro. Lian, por outro lado, era fogo. Uma mulher de espírito indomável, que nunca se deixou enganar pela ilusão de que todas as pessoas nasciam boas. 

A porta rangeu, e um dos seguidores enfiou a cabeça, apressado, quase constrangido. 

Senhor... já está na hora — anunciou. 

Antes que Feng se movesse, Lian abriu uma das gavetas, pegou um pequeno cachecol de linho azul e, com gestos suaves, amarrou-o no pescoço dele. 

Vá sem chapéu hoje — disse, ajeitando-lhe a gola. — Mostre seu rosto ao Herói. 

E assim, de mãos dadas, partiram. 

(...) 

Feng, Lian e os onze seguidores mais próximos deixaram a proteção da torre. Caminhavam com passos firmes, embora carregassem nos olhos uma ansiedade que nem tentavam esconder. 

O local combinado parecia deserto. Nenhuma sombra, nenhum sinal. Talvez tivessem chegado cedo demais. 

Onde está Yong? — perguntou Lian, cruzando os braços, olhando ao redor com desconfiança. 

Ele... disse que iria na frente, para garantir que era seguro — respondeu Feng, forçando um sorriso que não convencia nem a si mesmo. — Deve ter se distanciado um pouco, logo estará aqui. 

O farfalhar das folhas quebrou breve o silêncio. Algo — ou alguém — se aproximava. Por um breve instante, os corações se acalmaram, esperando ver Yong surgir... até que a figura finalmente emergiu das folhagens. 

O alívio deu lugar ao pavor. 

Governador Zudao?! — exclamou um dos seguidores, quase sem voz. 

O que está fazendo aqui?! — questionou Lian, levando a mão ao ventre, num reflexo protetor. 

Zudao caminhava com passos lentos, firmes, batendo no chão o cabo de um novo cajado, feito de raízes entrelaçadas junto de uma joia luminosa. 

Ora, ora... — respondeu, com um sorriso que mais parecia um corte no rosto. — Não achavam que eu perderia um encontro tão... importante, não é? 

Bateu o cajado contra o chão uma, duas vezes, como quem espanta um inseto. Na terceira... 

CRAAACK! 

O som foi seco, horrível, como madeira partindo — ou ossos se rompendo. 

Raízes emergiram do solo. Grossas, velozes, afiadas nas pontas como lanças vivas. Elas atravessaram os corpos dos onze seguidores, empalando-os como se fossem feitos de papel. Sangue jorrou em espirais, tingindo a vegetação, enquanto gritos rasgavam o ar — e logo eram silenciados. 

Lian tentou correr. Instintivamente, protegeu o ventre. Mas uma raiz atravessou-lhe o abdômen. Seus olhos arregalaram-se em choque e dor, antes que o corpo se entregasse, despencando no chão, sem vida. 

NÃO!!! — o grito de Feng foi mais um lamento primal do que uma palavra.  

Caiu de joelhos, os braços tremendo, a boca aberta num urro que parecia não ter fim. Sua alma se rasgava, consumida por um tipo de dor que só os deuses poderiam compreender. 

Zudao se aproximou, lentamente, batendo o cajado mais uma vez no solo, como quem saboreia cada segundo daquela cena grotesca. Sua voz, agora mais grave, distorcida, soava estranhamente... familiar. 

E agora, Feng... acredita no que eu te disse? — perguntou, inclinando a cabeça, como se ensinasse algo a uma criança. — Não existe bondade no mundo. Só... maldade. 

Feng ergueu o olhar, com lágrimas e sangue se misturando no rosto. Nunca tinham conversado antes. Não eram palavras de Zudao que ele ouvia... aquela voz, aquela presença... 

Você... é... você... — balbuciou, aterrorizado. 

VRRRAAASH! 

Uma raiz estourou do chão, atravessando-lhe o peito com força brutal.

Feng arquejou, os olhos perdendo a luz enquanto o corpo tremia, e, por fim, tombou sobre a terra encharcada de sangue. 

Nem a morte de Feng, ou o massacre de seus seguidores, fora suficiente para apagar a chama que haviam acendido. 

A seita não fora extinta. Pelo contrário. Zudao a incorporou ao próprio governo. Suas doutrinas passaram a ser obrigatórias. Nenhum cidadão podia mais viver sem seguir os rituais e as práticas que antes eram vistas como heresia. 

A torre, antes símbolo de resistência e esperança, fora ocupada por Zudao e seus homens. Seus antigos donos foram obrigados a retornar a Shenxi, não mais como livres, mas como súditos. 

E, desde então, nenhum outro cidadão sequer ousou cogitar deixar a cidade. 

***

Erina ainda sonhava.

No palco silencioso da mente, revivia os ecos de uma vida que parecia pertencer a outra existência: um chalé simples, o brilho sereno de um grande lago, o calor do amor e da segurança. 

Por alguns breves instantes, tudo era paz. 

Mas, como sempre, as sombras vinham. Elas se infiltravam sorrateiras, tingindo seus sonhos de negro. E, quando chegavam, não traziam nada além de morte, gritos e sofrimento. 

Dormir... era o único momento em que Erina estava verdadeiramente desprotegida. Sem armadura, sem vigília, sem controle. Ali, estava vulnerável até para seus próprios fantasmas. 

Uma mão pousou firme sobre sua boca. Seus olhos se arregalaram, o corpo despertou num sobressalto. O instinto gritou perigo. 

Shhh... — sussurrou uma voz baixa, familiar, rente ao seu ouvido. 

Por um instante, o pânico ameaçou se instaurar. Mas ao reconhecer aquele cheiro, aquele toque, aquele tom, seu corpo relaxou. Kenshiro. Seu marido. 

Ele a conhecia bem o suficiente para saber como acordá-la sem gerar alarde. E ela, por sua vez, entendeu imediatamente do que se tratava. 

Assim que percebeu que Erina não reagiria de forma brusca, Kenshiro retirou lentamente a mão. 

Seus olhos percorreram o acampamento. As sombras da noite dançavam junto à fraca luz da fogueira prestes a apagar. Kaji e Sebastian também estavam acordados, imóveis como predadores em espreita. O restante do grupo seguia entregue ao sono, completamente alheio ao que estava prestes a acontecer. 

As palavras, ali, eram perigosas. Tudo seria dito em Signês, a linguagem silenciosa de gestos. Kaji, como sempre, projetava mentalmente as conversas na mente do casal, pronto para incluir Sebastian numa tradução, caso necessário. 

Vamos mesmo fazer isso? — perguntou Sebastian, seus olhos rubros brilhando no escuro, fixos no alvo. 

Todos olhavam na mesma direção. 

Xin. 

Ela dormia profundamente, encolhida sobre si mesma, parecendo uma pequena boneca frágil sob as cobertas. 

Por mais que tivesse se mostrado útil — leal —, nunca deixara de ser uma escrava. E, como tal, ainda carregava o peso da dúvida.

Precisavam de certezas. E fariam o que fosse necessário para tê-las. 

Ainda usando Signês, Erina respondeu, os olhos firmes, sem vacilar: — Sim. Pode começar. 

Sebastian avançou. Seus dedos se alongaram, as unhas transformando-se em garras negras e reluzentes. Com um movimento preciso, fez um pequeno corte no pescoço de Xin — tão fino quanto um fio de cabelo, tão leve que sequer romperia mais do que a pele. 

No mesmo instante, a mão de Erina tocou o ombro da jovem, emitindo um suave brilho dourado. Sua magia curativa envolveu o ferimento, anestesiando a área, cicatrizando o tecido ao mesmo tempo em que o sangue escorria numa gota solitária. Tudo foi feito com tal maestria que Xin sequer se moveu. 

Ela continuava dormindo. 

Inocente, traidora, ou cúmplice? Logo, saberiam. 

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