Volume 1 – Arco 4

Capítulo 35: Oferta de Sangue

Para capturar o Governador, Kenshiro, Xin e Sebastian foram selecionados. Os primeiros a partir, tinham a missão mais importante. 

Ainda que Lois não tivesse o apoio de seu povo, existia uma forma de tornar seu golpo ainda "democrático": bastava eliminar toda a população. Pobres, nobres — todos. Restando apenas ela e Gurok, juntos somariam 100% dos votos. Afinal, os cargos no governo impediam qualquer participação ativa, o que tornaria os dois os únicos cidadãos com direito de decisão. 

O trio se posicionava diante da prefeitura. Um dos primeiro prédios a serem construídos na cidade. Sua aparência indistinta só não confundia por sua altura e espaço amplo dos demais edifícios. 

Xin, inquieta, perguntou o motivo de Lois ter revalado o plano alternativo sangrendo para Kenshiro, mas não para Erina.

— Erina pode ser... altruísta demais — respondeu Kenshiro. — Mas Lois a subestima. Ela sabe ser racional quando precisa. 

Xin insistiu, perguntando o motivo para o espadachim não ter revelado tal informação a sua mulher. 

— Porque não achei necessário. Se o pior acontecer, ela entenderá. 

Sebastian, curioso: — Como pode ter tanta certeza? 

— Porque, se todos aqui morrerem, Lois e Gurok se juntarão a nós. Não terão mais nada para mantê-los presos aqui.

Xin demonstrar dúvidas quanto as razões da dupla ter sido aceita tão facilmente no grupo.

— E você acha que foi difícil para algum de vocês? Entrar é fácil. Permanecer... é o teste real — respondeu Kenshiro.

Sebastian entendeu o recado. Sabia demais para ser deixado vivo, caso fosse expulso. 

Xin, por sua vez, sentiu algo estranho. Não era oficialmente parte do grupo. Sabia que ficaria de fora assim que chegassem em Shenxi. Mas agora... queria provar algo. Queria ser útil. Digna de confiança. 

De um prédio vizinho, observavam o interior da prefeitura por uma das janelas. De onde estavam dava para passar por ela, o problema era acerta o momento oportuno, quando nenhum dos guardas os vissem entrando.

Xin, ainda pensativa, voltou ao tema, perguntando se Kenshiro achava certo eliminar uma cidade inteira. 

Ele suspirou, sem vontade de responder. 

— Claro que não — disse Sebastian. — Algumas coisas nunca deixam de ser erradas. 

— Eles escolheram a miséria, geração após geração — retrucou Kenshiro. — Alguém precisa pôr fim nisso. 

— E quem decide que fim é esse? Você? Lois? Por que uma geração precisa morrer pelo erros das anteriores?

— O passado não importa. Só o agora. É um erro usar o ontem para justificar a inércia de hoje. 

— Ainda assim, continua errado — insistiu Sebastian. — Errado é errado. 

— Na morte não há dor.

— E também não há alegria, esperança ou amor — rebateu Sebastian. — Do contrário, eu saberia.

Kenshiro o olhou. Pôde sentir dor na voz de seu confidente. 

— Você acredita em vida após a morte? 

— Acredito — disse Sebastian, sombrio. — Mas não tenho direito a uma. 

— Como assim? 

— Humanos monopolizaram o conceito de "vida". Ignoraram muitas raças, diminuindo-as para "anomalias". Mas nisso, estavam certos: mortos-vivos não têm alma. Essa é minha única existência. Não terei outra chance. É por isso que matar me repulsa. 

Kenshiro se lembrou dos corpos na caverna. Mutilados, mas mortos rapidamente. Sebastian sabia matar, mas não matava levianamente. Suas palavras agora pesavam. 

— Sebastian, eu... 

— Achei uma brecha — cortou ele. — No meu sinal, vamos. 

Xin perguntou como se esconderiam ao entrar. 

— Improvisaremos. 

Esperaram. Então: — Agora! 

Xin saltou primeiro, chicoteando a janela e abrindo passagem. Os três entraram, e ela a fechou com rapidez. O saguão era aberto, sem pontos cegos. Guardas se aproximavam. 

Mas os invasores desapareceram. 

Os capacetes dos guardas eram altos e limitavam a visão. Acima deles, ninguém imaginaria procurar. Sebastian, com sua força e equilíbrio, carregava Xin e Kenshiro pelo teto. 

Aliviada, Xin ironizou a ocasião comparando com os contos vampíricos. 

— Nem mesmo eu sei até onde meus poderes vão. 

Kenshiro retomou o foco: — Precisamos encontrar o Governador. Não podemos seguir pelo teto. 

Seguiram. Sebastian à frente, invisível na escuridão. Kenshiro e Xin nas sombras. O espadachim notava as habilidade de sua companheira — ela era mais furtiva do que ele esperava. Só a detectara na floresta porque Zudao estivera ao seu lado. 

Entre salas e corredores, mapeavam a estrutura.

Encontraram a sala do Governador, protegida por quatro guardas: dois em frente à porta, dois patrulhando o corredor. 

Kenshiro elaborou um plano rápido. Não precisavam poupá-los. 

 (...)

O guarda Jones odiava o turno da noite. Sempre a mesma ronda. Apenas seu colega Marco aliviava o tédio, jogando pedra-papel-tesoura sempre que se cruzavam. 

Enquanto pensava em sua próxima jogada, notou algo errado. Marco havia desaparecido. 

— Marco? — chamou, em vão. 

Alertou os demais. 

— Vou soar o alarme! — disse um. 

— Se for alarme falso, Lucan nos executa! — respondeu o outro. — Vá conferir! 

Jones e outro foram investigar. Sem lanternas — o Governador achava desnecessário. Confiava nas janelas e claraboias. 

No fim do corredor, Marco estava desmaiado, ferido. Antes que pudessem reagir, o guarda do alarme caiu. No lugar dele, uma figura pálida e sombria com olhos rubros e presas afiadas. 

Antes do grito, Kenshiro e Xin os derrubaram. Um golpe no pescoço. Um chicote sufocando. 

— Precisava se exibir? — resmungou Kenshiro. 

— Queria ver a reação deles — disse Sebastian, sorrindo. — Parece que os boatos sobre vampiros funcionam. 

Xin comentou, pela maneira como os dois reagiaram, que funcionavam bem demais.

— Vamos terminar isso — disse Kenshiro, sério, tomando a dianteira. 

Podia-se dizer que a sala do Governador era luxuosa. 

Apesar do tamanho modesto, estava entulhada de quadros e pinturas a tal ponto que as paredes sumiam de vista. Um tapete roxo, espesso e irritante aos olhos, cobria o chão inteiro. No teto, um lustre pendia como uma armadilha mal disfarçada — decorativo e inútil, suas cristas não perfurariam sequer o mais fino dos tecidos. 

A oposição de todo o luxo estava sentado em sua cadeira. 

O Governador Quasimir era a antítese do ambiente. Um homem corcunda, de estatura tão baixa que se confundia com um anão, deformado por um enorme caroço que se estendia da testa até a base do nariz. Seu rosto era assimétrico, quase partido em dois, lembrando a face de um peixe afogado em sofrimento. 

— Devo dizer que estão atrasados — disse com voz rouca e grudenta. — Pensava vê-los dez minutos antes. 

— Então sabe o motivo de estarmos aqui — respondeu Kenshiro, já com uma espada em mãos. 

Ah, sim. A revolução, não é? Parece que Lois finalmente encontrou pessoas fortes o suficiente para ajudá-la. Mas digam-me: ela contou o que pretende fazer depois que assumir o meu cargo? 

— Pouco me importa — respondeu Kenshiro. — Só quero sair desta cidade com alguns recursos. 

Ora, e por que não disse antes? — Quasimir sorriu com desdém. — A Votare foi cancelada. Consideremos isso... uma negociação. 

Sem hesitar, pegou uma folha de papel e uma caneta de aparência distinta. 

— Só isso? — estranhou Sebastian. 

— Eu sou o Governador. O que escrevo vira lei em Altunet. — Ele estendeu a caneta. — E não se preocupem, ela é especial. Só o governador pode usá-la. Vão em frente, testem. 

Kenshiro a tomou com cautela, pronto para reagir se fosse uma armadilha. Fez um risco na palma da mão, depois na mesa, por fim no papel. A tinta não saia, não importava a superficie. Sebastian repetiu os testes, ainda cético. Xin não tocou. Conhecia aquela caneta; Zudao possuía uma igual em seus aposentos. 

Não era um blefe. Quasimir preparava um documento oficial. 

— Kenshiro — disse Sebastian, desconfiado —, não podemos confiar nele. Pense no que ele fez com esta cidade. Pense no que Lois nos contou. 

— Claro, confie naquela que deseja meu cargo — zombou Quasimir. — Imagino que ela me pintou como o próprio demônio. 

Xin argumentou com firmeza, mesmo que Lois exagerasse, Quasimir ainda era o responsável direto por décadas de miséria e repressão. 

— O que exatamente você nos propõe? — perguntou Kenshiro, ignorando os alertas. 

— Simples: isenção de taxas e impostos. Sairão como entraram. Receberão uma pequena fortuna por não me capturarem, além dos recursos que escolherem. 

Era uma proposta tentadora. 

— Sabe que Lucan morrerá, com ou sem nossa ajuda — disse Sebastian, procurando perceber algum comportamento estranho.

— Lucan não me importa — disse Quasimir. — Sempre terei um Juiz forte para fazer o que mando. 

Xin franziu o cenho. 

— E como pode ter tanta certeza? — perguntou Sebastian. 

— Vejam os quadros atrás de mim. 

Não eram meras pinturas: eram retratos de governadores e seus juízes. Alguns rostos se repetiam. Outros estavam queimados, apagados. 

— Antes de Lucan, seu pai era meu Juiz. Um homem que acreditava na “Lei da Natureza”: O forte tem o direito de fazer o que quiser com o fraco; e o fraco tem o direito de se rebelar, se conseguir. 

— E você acredita nisso? — questionou Sebastian. 

— Claro. Eu sempre quis o poder. E quando percebi que ninguém reagia, entendi que não eram pessoas, eram recursos. Objetos. Se ao primeiro decreto cruel eles não fizeram nada , então me deram o direito de usá-los. 

— Quantas vidas você matou?! 

— Uma. Aqui mesmo. Uma mulher rastejou até a porta e implorou. As outras se mataram ao não reagir. 

Xin notou um retrato escuro, fora de ordem. Questionou o motivo. 

— Infelizmente, o pai de Lucan decidiu dar mais atenção ao filho do que a si mesmo. Isso criou uma oportunidade para um dos trabalhadores se rebelar contra ele, exigindo um duelo pelo poder, tal qual a Lei da Natureza permite.  

Quando ele assumiu, fui colado na cadeia onde eu passaria o restante dos meus dias. Mas em pouco tempo, Lucan apareceu e me libertou. Ele vingou o pai, e eu voltei a ser o Governador e ele meu novo Juiz. Com toda a sua beleza, ele enganou toda a população fazendo-os acreditar que eram sortudos em tê-lo como seu Juiz; um anjo entre os homens. 

Kenshiro estava atônito. Não sabia o que pensar. Um povo que aceita isso... mereceria ser salvo? 

— O tal homem era o pai de Lois. E ela seguirá o mesmo caminho: nobreza, sonho... queda.

Quasimir observava o comportamento do trio. Estava quase os convencendo.

— Tenho uma última coisa a oferecer... Lucan, o descendente de Arcanus. 

O choque foi imediato. 

— Mentira — rosnou Kenshiro. 

— Acha mesmo que, depois de contar tudo isso, eu inventaria algo tão grave? Não o terão em seu grupo, claro. Mas poderão convocá-lo sempre que desejarem. Se aceitarem partir agora. 

Quasimir estendeu a mão. A proposta fora feita. 

Kenshiro hesitou. Aquilo não era decisão que lhe cabia. Erina deveria decidir, mas estava ausente. Restou a ele pesar o bem do grupo. 

BOOOOM... RMMMMBLLL... Explosões sacudiram a prefeitura.

A revolução havia começado. 

— Rápido, meu jovem! Pense no bem do seu grupo! 

“No bem do meu grupo...” 

 Xin e Sebastian estavam atônitos. Confiariam em qualquer decisão de seu Vice-Líder. 

Mas havia algo que desequilibrava a balança. Alguém. 

Shiiing! Kenshiro sacou a segunda espada.  

Xin pegou o chicote. Sebastian mostrou suas garras. 

— Foi uma proposta boa — disse Kenshiro —, mas esqueceu que, se a revolução for bem-sucedida, sairemos daqui com tudo... Quanto a Lucan... minha esposa nunca o aceitaria. 

— É uma pena... 

Um cofre oculto na parede se abriu, revelando uma vastidão de ouro, pedras e riquezas sem fim. Era maior do que o prédio, um abismo dourado. 

Quasimir acariciou o anel prateado. Uma armadura começou a se formar em torno de seu corpo. Kenshiro atacou, mas a lâmina ricocheteou no metal. 

Quasimir, agora completamente protegido, avançou com velocidade inumana e jogou o grupo para dentro do cofre. 

O impacto foi brutal. O chão coberto de moedas e pedras era tão duro quanto concreto. 

Sebastian, atordoado, tocou o peito e arregalou os olhos. 

— Ele me feriu... a armadura dele... é feita de prata! 

Seus pulmões tremiam. O hematoma crescia com rapidez. 

Trancados com ele no cofre, sabiam que a luta poderia resultar em suas mortes.

— Sua avareza só não é maior que seu orgulho... — murmurou Quasimir, trancando o cofre com ele dentro. — Então deixe que eu elimine seus pecados. 

 

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