O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 7: Mil e uma formas de morrer

O que faço?!

Os olhos da Violette eram firmes em mim. Por algum motivo, mostrava-se resoluta sobre me fazer ficar aqui. Porém...

Cyle e seu companheiro logo estariam de volta. Se eu não fugir rápido, não poderei mais...

Encarei Violette. Seus olhos violetas escondiam algo. Não apenas aquele brilho misterioso que fingia não produzir, como também estava tramando algo. O que ela espera que acontecerá comigo caso fique aqui? Ela quer me proteger, ou...

Não sou exceção”, ressoaram em minha mente as palavras que ela me disse, quando a indaguei se, por ser nobre, não seria ruim igual aos que ela criticava.

Ela é alguém em quem posso confiar? Por detrás daquele cabelo ruivo que parecia tão macio, daqueles olhos que pareciam gemas preciosas, o que se esconderia?

Pela primeira vez, olhei-a e não a vi. Quem estava diante mim não era ela. Era uma mera imitação, um fingimento que meus olhos se confundiam pelo que ela era, deixando-se levar pelo que aparenta ser. Ainda assim... Ainda assim... Merda...

Olhei para o Cyle e o garoto careca terminando de pegar comida. Meu tempo para decidir já havia quase se esgotado.

Minha cabeça, meu peito, até as profundezas das minhas vísceras, todo meu corpo parecia se juntar com apenas um objetivo: fugir dali. Não, mais que isso: sobreviver. A dor vivaz do meu crânio se rachando contra a parede fazia cada pelo meu se eriçar.

Dei um passo para trás. Mais Outro. Comecei a me virar. Essa era a decisão mais racional, e a mais instintiva também. Mas...

Algo me impediu de caminhar adiante. Meus olhos se fixaram na porta como objetivo, mas algo parecia tão errado, tão estranho nessa opção de sair. Não podia. Não sei explicar o porquê. Meu corpo me ordenava a fuga, a razão me fazia relativizar as intenções da Violette. Contudo...

Meus pés me levaram de volta à mesa, e sentei-me de volta à cadeira. Olhei para Violette, ela olhou para mim e sorriu. Colocou sua mão na mesa e encontrou a minha. Seus dedos tocaram as costas da minha mão com suavidade e leveza, arrepios subiram em meu braço. Seus lábios se abriram, mas hesitaram e se fecharam, sem nada dizer.

O tempo passava, meus olhos nos dela, os dela nos meus. Nada dizemos, mas tudo expressávamos: tudo que era inexpressável, tudo que não podíamos compreender. Fora da lógica, fora do entendível: seus olhos falavam, e os meus abriam as janelas da minha alma. Não havia mais tensão ou ação, nem ser ou pensar. Havia apenas o nosso olhar.

Ouvi o ranger das cadeiras ao meu lado. Cyle e o rapaz se sentaram, ambos com aquela forma elegante mas natural, tamanha destreza ao posicionarem lentamente o corpo no assento.

— Não esperava te ver matando aula aqui — disse Cyle para Violette, pegando os talheres.

Era algo que não tinha parado para pensar. Olhei para Violette. Por que estava aqui?

— Nem eu. — falou Violette com uma voz desconfortavelmente neutra, e limpou a boca com um guardanapo.

— Que coisa... — os olhos de Cyle encontraram os meus.

Aqueles olhos castanhos que me pareciam examinar como um inseto a ser pisoteado. Olhos cujo único brilho era o da violência, o da destruição, como uma cobra que espreita atenta, sorrateira, esperando o momento certo para atacar minha jugular. Não, não era uma cobra...

Ele me encarava com o peito estufado. Não era uma cobra esperando o momento oportuno. Era um leão, esperando simplesmente por um momento que não teria grandes consequências por me matar.

Suas mãos se juntaram e estalaram dedo por dedo. A cada som, era como se pensasse em uma nova forma de terminar aquilo que começou. Sua cabeça inclinava de um lado para o outro, de certo ponderando sobre o que faria.

Bastava observá-lo por um minuto para encontrar mil e uma formas de morrer: e agora estava vivendo uma delas. A cada instante do relógio e a cada ação minha eu chegava mais perto do destino final.

Precisava de uma desculpa para sair de lá, mesmo que por um momento. Olhei para o meu copo vazio e o da Violette. Peguei o meu e a perguntei se desejava que o enchesse de suco.

— Que gentileza. Seria um prazer. — Seu sorriso enquanto me dava o copo era meigo, a despeito da tensão do ambiente.

— Que isso, Violette. Não é nada. — Peguei o copo e sorri.

Cyle me encarou com olhos raivosos. Da mesma forma que ele queria controlar cada fio de seu cabelo com o gel exagerado, Cyle parecia sempre desejar ter poder sobre todo o ambiente, sendo o foco das atenções. A figura dele de peito estufado na apresentação, dizendo palavras difíceis e com uma dicção artificial de tão forçada, e agora ele com raiva apenas porque a Violette é aberta comigo; tudo fazia meu peito queimar mais e mais.

Assim que virei de costas, meu semblante se azedou. Minha respiração ofegante preparava meu corpo para confronto. Ele pode ser ridiculamente forte. Posso morrer rapidamente, mas... Mas... Mas...

Queria defender minha dignidade, impedir Cyle de agir dessa forma arrogante e violenta. Porém... mil e uma formas de morrer. Eu poderia me defender, argumentar, mas todos os cenários terminariam com meu corpo ensanguentado no chão, agonizando nos últimos segundos de existência, lutando para respirar, mas sufocado no próprio sangue. Merda.

Respirei fundo e meu corpo se estremeceu. O que poderia eu fazer?...

Enchi os copos e os levei de volta à mesa. Violette me recebeu com certa alegria, mas a morte ainda estava sentada ao meu lado, observando-me, esperando errar apenas uma vez para ver meu fim...

Coloquei o copo na frente da Violette e o outro à frente da minha cadeira. Sentei-me e o trouxe à boca, apenas para perceber uma sutil marca de batom avermelhado no vidro. Como os copos estavam vazios e eu me perdi nos pensamentos, acabei trocando sem querer...

Olhei para Violette, e ela me encarou com um sorriso brincalhão. Ela sabia. Tinha que saber. Lentamente, levou o copo à boca, o sorriso longe de desvanecer. Depois de dar o primeiro gole, ela exasperou com certa satisfação.

Eu... Meu corpo congelou. Não tinha mais coragem de olhar para o lado, meus olhos fixos apenas na Violette. Será que Cyle sabia que aquele copo era meu? Se ele fica nervoso só de eu receber um bom dia da Violette, o que ele faria se soubesse que o motivo do sorriso inocente mas pernicioso da Violette era por causa do meu copo?

— Suco de uva? Parece muito bom mesmo. — Cyle comenta enquanto leva um pedaço da coxa de frango à boca.

— Não é? Parece até que tem algo de diferente neste suco, de tão bom que está — disse VIolette e riu.

“Por que ela está fazendo isso?! Ela está se divertindo com tudo isso, né?! Vagabunda!”

Não me contive e devorei o meu suco em ansiedade. Por sorte, nada aconteceu. A conversa — ou a falta dela — seguiu desconfortavelmente monótona com pequenos comentários sobre a comida.

— Mas a refeição nem se compara com a feita pela casa do Cyle — falou o rapaz careca pela primeira vez.

Massss — o sorrisinho diabólico da Violette prenunciava suas intenções —, a melhor batata cozida que já experimentei foi a da festa da casa do Flamel.

Pelo amor de Deus, para de irritar o Cyle! Apertei as minhas coxas. Esse seria o meu fim, sem dúvidas. Se for isso, então-

— Realmente, foi a melhor batata cozida que já experimentei. O chefe de cozinha era surreal — disse o amigo do Cyle.

Tsc. Vocês não têm requinte no paladar. Aquilo estava horrível. — A veia da testa do Cyle ficou mais nítida.

Meus olhos desesperados recaíram sobre a entrada do restaurante. Quando que conseguiria sair daqui?!

Por mais meia-hora, a conversa seguiu naquele clima turbulento, com muitas palavras gentis que escondiam graves ironias. Somente então que Cyle se levantou junto do amigo, alegando que precisavam de ir treinar. O rapaz do cabelo lambuzado me deu um último olhar afiado antes de prosseguir pelos corredores.

Finalmente caí na cadeira e suspirei fundo. Deus... Que situação.

— Você foi bem — disse ela.

Abri meus olhos e a observei. Tomei um susto ao ver que seus olhos brilhavam, e pararam assim que os vi. Ela exibia um sorriso caloroso, e o pior: não parecia um sorriso cortês, mas verdadeiro. Aquele mistério me dividia entre querer solucioná-lo ou fugir dele...

— Obrigado, eu acho...

Ela se levantou e empurrou a cadeira de volta à mesa. Segurou o copo com atenção por alguns segundos, colocou-o de volta na mesa e passou do meu lado.

— Até depois, Flamel.

Seus passos a levaram para longe do refeitório.

Ah...

Observei as mesas vazias ao meu redor. Tinha tanta comida, mas nenhum estudante. Pela janela, o Sol começava a se por. Que estranho. Dormi a manhã inteira? Achei que a professora Hayek tinha me acordado assim que dormi...

Levantei-me e saí como os demais. No corredor, optei por voltar ao quarto, para evitar encontrar o Cyle depois de tudo.

Entrei no meu cômodo, fechei a porta e me joguei na cama. As memórias do refeitório passaram pela minha mente incontáveis vezes naquele quarto cada vez mais escuro, eu incapaz de acender aquela luminária do teto.

Deveria ser uma vitória sobreviver ao estar tão perto do Cyle, mas... é só isso que posso fazer? Mais nada? Ficar torcendo para que ele não me mate dessa vez? Apesar de que não sei se há riscos reais de ele me matar... Afinal, Flamel também é da nobreza. Mas algo nele me faz pensar que isso é bem plausível de acontecer...

Não há nada para se fazer, no fim... Além disso, a Violette nem sequer conversou comigo depois de tudo. Será que ela estava brincando com a minha cara durante toda a conversa? Ou realmente teve uma razão? Diria que ela só queria me ferrar mesmo, mas o olhar dela... impossível... Racionalmente, ela era perigo, mas me sentia estranhamente confortável em relação a tudo. Será que é uma conexão real, ou apenas estou tão desesperado que busco conforto nela? Não... Não é desespero. O olhar dela...

...

Minha mente continuava a processar tudo. Ter apenas a minha versão das histórias era horrível. Não há diálogo interno, nem progresso ou novas ideias sem ouvir outras perspectivas. Ainda assim, permaneci a refletir, a imaginar novas cenas, a contemplar como eu poderia ter me defendido verbalmente junto de Violette. Sim, sou fraco, mas ela estava ali comigo, e desperdicei a minha chance de mostrar para o Cyle que “tenho aliados, tome cuidado”, ou ainda que “sei morder, cai fora”. Tudo que fiz foi abaixar a cabeça.

Que vergonha...

Por isso que ela não quis nem papo depois de tudo? Mas ela parecia feliz...

Mais e mais perguntas surgiam. Somente consegui dormir horas mais tarde, quando meu cérebro se cansou de criar padrões, sucumbindo ao sono. Cada vez que fechava meus olhos, sonhava com uma maneira diferente que Cyle me mataria: sufocando-me até a morte; jogando-me de um lugar alto; socando meu rosto até quebrar todo meu crânio...  A cada morte, acordava suado e nervoso, olhando o quarto escuro, iluminado apenas pela fraca luz do poste do campus. Aquela escuridão parecia ter vida... ela me sufocava, me espreitava. Esperava pelo meu fim.

Não havia o que fazer além de me esconder debaixo das cobertas até cair no sono de novo, apenas para morrer mais uma vez...

 

 

Ah... — suspirou uma jovem de cabelos negros debruçada sobre a cama repleta de páginas escritas de ponta a ponta. Com movimentos lentos e pesados, ela se levantou e caiu na cama de bruços.

A jovem colocou a mão no bolso da calça e retirou um relógio compacto, cuja superfície metálica refletia o fraco brilho alaranjado do fogo flutuando ao teto. O relógio se abriu e relevou duas partes. Pela de baixo, três ponteiros indicavam que era 01:30; pela de cima, a foto de uma menina pequena de cabelos pretos, abraçada com seus pais, a fez sorrir calorosamente.

— Pai... Mãe... Eu consegui... — Uma lágrima veio ao seu rosto. — Estou conseguindo ter sucesso na maior academia de magia... Logo estarei de volta a vocês. Ficarão tão orgulhosos...

Fechou os olhos cansados após tantas leituras e tentou dormir, mas o corpo pedia-lhe uma ida ao banheiro. Sentou-se na cama por alguns instantes até criar coragem. Quando ia se levantar, porém, seus olhos pararam no meio da escuridão do quarto e seu corpo se congelou. Ali, no breu da noite, onde a luz do fogo não alcançava, um par de olhos vermelhos brilhavam no silêncio.

Oh? — uma voz fantasmagórica ressoou pelo recinto. — Você percebeu, é? Hahaha.

Debaixo dos olhos vermelhos, um sorriso acentuado reluziu na mesma cor.

A garota ficou paralisada por um instante. Jamais esperaria que, em seu quarto, na academia mais protegida do mundo, algo assim aconteceria. Ela deixou o relógio na cama e pulou até à mesa. Pegou seu cajado e apontou para o ser. Os olhos da garota estavam molhados e sua respiração pesada. Seus braços e pernas tremiam. Começou a preparar um feitiço às pressas.

Grande espinho de gelo. Tinha que ser esse. Era um feitiço de nível avançado. Poderia facilmente matar um de seus colegas.

Foi então que um relâmpago brilhou pela janela. A garota olhou para o chão e viu por um instante uma mulher rastejando rapidamente até ela, os membros flexionados em ângulos impossíveis. A boca da figura estava aberta, sangue escorrendo por entre os dentes afiados. A luz do relâmpago cessou abruptamente, envolvendo o quarto em uma penumbra quase total.

— Morra! — Ela executou o feitiço logo abaixo da barriga da criatura, uma área azul brilhando em uma espessura do dobro dela. Contudo, a mulher levantou-se em um impulso, pôs-se de pé e pisou no enorme gelo que se erguia, destruindo o feitiço. Seu sorriso brilhante fez-se ainda mais intenso.

O cajado caiu no chão. A cada passo lento do monstro, o coração da jovem pulsava ainda mais forte. Seu feitiço mais poderoso, do qual tanto se orgulhava, foi destruído como um brinquedo... Era impossível fazer qualquer coisa. Impossível...

Suas pernas vacilaram e caiu de joelhos. Quando a criatura se pôs face a face com a menina, a urina que segurava escorreu pela sua calça e encharcou o chão.

— O que...

Suas palavras foram cortadas ao ter os dedos da criatura apertando o pescoço, seus olhos fitando os olhos carmesins que sorriam com todo seu desespero.

...

Quando outro relâmpago surgiu, havia apenas o corpo da jovem contra a parede, com buracos escorrendo sangue onde deveriam estar seus olhos, e uma cratera no peito que revelava a parede atrás. O relógio permaneceu na cama, sujo com sangue espirrado.

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