O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 6: Uma visita inesperada

Ao abrir a porta, uma mulher alta me encarava, elegante com um termo preto que combinava com seus cabelos negros e lisos. Por detrás dos óculos redondos na ponta do nariz, seus olhos castanho-escuros me examinavam, mas...

— Então você está bem... — Ela suspirou e a expressão séria se desfez com um pequeno sorriso. Sua voz era carinhosa, mais do que julgaria pela aparência formidável.

Eh... — Cocei a cabeça, pego completamente desprevenido. Era a senhora Hayek, minha professora da matéria que apresentei sobre a runa de som.

Ela riu, a mão tampando a boca com cortesia.

— Apenas vim ver como você está. O enfermeiro me contou que lhe deu alta ontem, mas você não foi para aula de manhã... Mas está tudo bem, parece?

— Ah, sim... Estou bem...

Na minha mão que segurava a porta, um desejo de fechá-la e de me refugiar no meu próprio mundo se fez forte. Um sentimento agoniante surgia em meu peito. Queria fugir disso e me esconder, continuar com minha miséria silenciosa e solitária.

— ...Flamel. Seus olhos... — Os olhos dela fitavam os meus, com um semblante triste.

Sua mão encostou em minha bochecha com delicadeza, seu dedão acariciando logo abaixo do olho. De reflexo, segurei em sua mão, querendo expulsá-la, mas um mínimo respeito por ela me fez apenas segurar aquele pulso gentil.

— O que têm eles?

— ...Posso te dar um abraço?

Que diabos?...

— O quê?

— Posso te dar um abraço? — Ela largou minha bochecha para abrir os braços, próxima de mim.

— Um abraço? — Continuava sem entender.

Minha cabeça ficava mais e mais quente com o sangue que subia e que tornava difícil pensar. Ela estava aqui, vendo a bagunça que estava meu quarto, vendo meus olhos que deviam ser os mais desanimadores do mundo...

Cada vez mais, a opção de fechar a porta se fazia mais tentadora.

— Ok...

Assim que falei, ela me envolveu com seus braços, nossos rostos se tocando lateralmente, enquanto a sentia tão perto de mim. Ela estava quente... Forte... Eu...

Uma lágrima escorreu involuntariamente. Merda. Meus olhos ardiam, mas fiz meu melhor para não chorar mais.

Esse mundo era demais para mim. Não consigo encarar o fato de que estou preso aqui... O abraço da senhora Hayek me fez sentir como se em um lugar confortável o suficiente para que meus sentimentos se tornassem vivos, abraçados, abertos para serem expressados e receberem todo conforto. Mas... Não...

— Fiquei preocupada com o meu melhor aluno.

Suspirei com as palavras dela. Elas me encheram de um orgulho que não me pertencia, pois ela falava sobre Flamel, não sobre mim. Mesmo assim, foi tão confortável...

Ela interrompeu o abraço e acariciou meu ombro, seus olhos fixos nos meus com um calor incomparável, até se desviaram para trás de mim. Sua face ficou pálida.

— O-o que é isso?

Olhei para trás, e vi que a faca cravada na parede estava logo diante de nós.

— I-isso... — Como vou explicar isso?!

Hayek andou até a adaga, agarrou o cabo e a retirou da parede com uma força surpreendente. Em seguida, levou-a ao alto e estalou os dedos, fazendo com que uma esfera de vidro pegasse fogo controladamente no centro do teto.

Espera, aquilo sempre esteve lá?!

— Heh. — Ela sorriu e colocou a adaga na mesa. — Então você conseguiu atrair a atenção dela, hein?

— D-de quem?

— Oh. — Hayek riu. — Entendo. Ela... Interessante. Vocês parecem do tipo que se dariam bem.

— De quem você está falando?

— De ninguém. — Riu ela e andou de volta à porta, parando ao meu lado. — Flamel... Se você precisar de qualquer coisa, minha sala sempre estará aberta para você, ok?

Não, não está “ok”. Não sei onde é a sala dela... Mas, de qualquer jeito...

— Ok... Muito obrigado, senhora Hayek.

— ...Espero que tudo fique bem, Flamel. Senti falta dos seus comentários na sala hoje.

Ela deu um último sorriso, antes de se virar e caminhar pelo corredor. Após um segundo de silêncio, saí um pouco da porta para vê-la ir.

Porém, me surpreendeu encontrar também, no cruzamento entre esse e outro corredor logo adiante, Guinevere, a qual segurava um cajado robusto de madeira apoiado ao chão. Nossos olhos se conectaram, e logo ela desviou os dela. Hayek chegou até ela e as duas começaram a conversar enquanto caminhavam pelo corredor.

“...”

Fechei a porta e me aventurei brevemente pelo quarto, analisando a cama com metade do lençol para fora, a mesa repleta de frascos, a adaga agora na mesa...

Peguei a adaga e observei a lâmina preta.

Trouxe a mão ao peito e revivi aquele desconforto de quando a Hayek entrou aqui. Ela invadiu um cômodo que mostrava toda a minha angústia, todo o meu sofrimento, inclusive com uma adaga fincada na parede. Ela poderia ter se espantado de tantas formas, mas... tudo que fez foi pegar justamente a adaga e colocá-la na mesa com carinho.

Ela invadiu meu mundo, meu espaço, meu caos, mas sentia-me como se tivesse deixado um pequeno presente nele. Meus lábios sorriram, embora meu peito ainda reclamasse.

Sem o que fazer, sentei-me na cama, ainda olhando a adaga. Quem será que me deu ela? Quem era ela? Essa pessoa é quem me deixou a carta? “X” era o nome escrito.

Levantei-me e peguei a carta que deixei na mesa. Deitei com ela e a li novamente. Um trecho me chamou a atenção:

Infelizmente, o mundo é assim, cruel e egoísta, quando não sádico, machucando apenas pelo prazer de causar dor, principalmente quando se está em posição de poder e pode conjugar mais livremente seus desejos.

É realmente um trecho forte... Ela entende “mundo” como “pessoas”, certo? Então pessoas seriam cruéis e egoístas, principalmente quando estão em posição de poder?

Uma parte do meu peito queria protestar contra isso. É óbvio que há pessoas, de forma geral, boas e ruins, e normalmente todas com sua própria luz e sombra. Contudo, a imagem de Cyle me socando invadia a minha mente. Ele poderia ter me matado...

Será que ele foi punido? Aquele cara... Ele merece pagar por isso... Merda. Esse mundo é assim? Sempre vivi em um Estado democrático, em que normalmente as pessoas tinham certo decoro e aversão à violência, mas... o que me espera aqui? Não tenho nem ideia de como é a sociedade. As leis são aplicadas a todos? As pessoas costumam a ser cruéis e saírem impunes?...

Vou realmente ter que ficar aqui?...

Refugiei-me debaixo das cobertas e abracei o travesseiro. Entretanto, uma dor começou a dilacerar meu estômago. Minha boca salivava, uma fraqueza preenchia meus membros.

A vontade de mastigar algo se fez muito mais intensa do que a de pensar sobre todos os problemas desse mundo...

Queria ficar ali, no meu aconchego, mas a dor era terrível. Pus-me de pé. Saí do quarto e me coloquei a vagar pelo dormitório, em busca de algum lugar ou de alguma forma para comer. Eu precisava disso.

Meus passos vazios me levaram até o final do gigantesco dormitório, onde vi duas portas largas de vidro. As empurrei e entrei em um restaurante com dezenas de mesas vazias e fileiras repletas de bandejas que eram aquecidas por um fogo baixo, produzido por... nada, sem madeira ou fogão.

Peguei um prato do começo da fileira, quando ouvi uma voz que me era bastante familiar:

— Oi, Flamel. Boa tarde.

Virei-me para trás e vi Violette, seu cabelo partido ao meio, com ondas sedosas e vermelhas que escorriam até a cintura de ambos os lados. Seus olhos se fecharam quando sorriu, mas logo se abriam para mostrar o brilho violeta deles.

— Oi, Violette. Tudo bem? — falei, tentando ignorar a fome.

Ela andou até próximo de mim e segurou meu braço com cuidado.

— Eu que te pergunto isso. Você está bem?...

Tentei expressar como estava, mas não encontrava palavras. A verdade era que nem eu sabia... Ao mesmo tempo, me sentia envergonhado por me mostrar tão fraco assim...

— Estou... E-

— A sua cabeça já se recuperou? — interrompeu-me ela, fitando meus olhos.

— É... Sim, bem melhor.

— Que bom.

Ela me soltou e pegou seu próprio prato, ficando atrás de mim, mesmo que o corredor entre as duas fileiras de bandejas fosse largo o bastante para ela ir para frente de mim. A preocupação dela roubou minha atenção, me fazendo parar de sentir o tormento da fome momentaneamente.

Ainda assim, me sentia meio estranho conversando com ela... O vínculo dela era com Flamel, e não comigo. Agora mesmo, estou roubando uma preocupação, um afeto que era para ser dado a outra pessoa...

Quem era Flamel, afinal, para que tenha amigos desse tipo?

— F-Flamel... — sussurrou ela. Encarei seu rosto e o vi fechado e cabisbaixo.

— Desculpa por não ter impedido o Cyle...

— Está tudo bem, Violette. Eu também poderia ter reagido melhor... E não é culpa sua.

Ela sorriu meio melancólica e ajeitou a postura, a coluna se fazendo ereta. Enquanto isso, peguei uma colher de madeira e coloquei um macarrão de molho branco no meu prato.

— Obrigada. Aliás, depois de tudo, passei a chamá-lo de “Cabelinho Lambido”. O apelido pegou bem rápido na sala, e você precisa de ver como ele fica vermelho...

Pfft. — Tentei segurar a risada, mas não consegui por completo.

Então aquele garoto metido agora estava sendo chamado disso... Combinava com ele.

— Mas... — Meu tom ficou sério. — Ele recebeu alguma punição?

— ...Não. — Suspirou Violette, pegando macarrão também. — Nobres são uma escória, principalmente os perto da família real, como a casa do Cyle...

— Você também é nobre, não é? — perguntei com curiosidade e certa ironia, já que a Academia parecia reservada a esse círculo. Andei um pouco mais, avaliando as comidas em cada bandeja. Nossa, todas pareciam tão deliciosas... Uma culinária extremamente refinada.

Para a minha surpresa, porém, quando me virei para ela, dei de cara com uma face sombria. Engoli em seco.

— Todos aqui são. — Com as palavras dela, senti meu corpo congelando. Merda, a minha pergunta foi muito idiota.

Encarando-me com cuidado, os olhos de Violette então brilharam por um segundo, antes de voltarem a reluzir apenas com as cores naturais. O que diabos foi aquilo?

— Bem — continuou ela. — Como disse, todos aqui são. Não sou exceção — disse ela com tom ríspido.

Sem mais nenhuma de sua cortesia usual, ela passou à minha frente, pegou comida de algumas bandejas e se retirou a uma mesa distante.

Fiz alguma besteira?...

Continuei pegando comida, mas já não pareciam tão apetitosas, mesmo que meu estômago estivesse ansiando por qualquer coisa logo.

Enchi meu prato, peguei um copo com suco de maçã e fui até as mesas. Ela se sentou do lado oposto. Refleti se deveria me distanciar, mas estava preocupado. Passei por entre algumas mesas até chegar na dela, em que coloquei meu prato e copo.

— Desculpa se eu-

— Está bem — cortou ela minha fala. — Por favor, sente-se.  

Fiz como pedido. Sem saber o que dizer, com um silêncio que parecia sufocar qualquer palavra que sonhasse em sair da minha boca, peguei o garfo, enrolei o macarrão nele e o levei à boca.

Hm...” O macarrão se desfez na minha boca de tão macio, e o molho era de outro mundo.

Meu foco recaiu sobre a comida, até esvaziar grande parte do prato em instantes. Quando me lembrei de que estava na companhia de uma nobre, quase engasguei.

— Ops. Perdão. — Ri timidamente.

Em contrapartida, Violette educadamente pegava pequenas porções do macarrão com o garfo e as levava para a boca, sem nunca abaixar a coluna. Até a forma de mastigar era controlada e rítmica. Após engolir, ela pegou o copo, o dedo mindinho esticado para fora, e deu um pequeno gole no suco de uva.

...Eu não era diferente de um cachorro comendo perto de alguém tão refinado assim.

Novamente, os olhos dela brilharam por um instante apenas, e então ela riu.

— Não se preocupa com algo assim.

Apesar de dizer isso, ela continuou a comer de forma extremamente elegante. Tentei imitá-la, mas minha barriga roncou, o que a fez rir de novo.

— Apenas coma logo. Você ficou três dias internado.

Peguei uma grande porção de macarrão com o garfo, preparado para finalizar o prato, mas o constrangimento de tê-la me assistindo não me deixou prosseguir.

— O que foi? — eu disse, incomodado com ela me assistindo assim.

— Nada. — Ela virou o rosto e tentou esconder as bochechas levemente coradas. — É fofo... — sussurrou baixinho.

— ...Fofo?

Uma parte do meu orgulho masculino acabava de ser quebrada.

— .... — Ela voltou a comer, embora a face se contorcendo revelasse que exigia força não sorrir.

Sem saber o que fazer, peguei o garfo e levei o macarrão à minha boca, sugando os fios que ficaram para fora. A visão disso a fez rir alto.

— Violette!

— Desculpa, desculpa. — Ela limpou os lábios com um lenço.

— Aliás... — Tomei um gole do suco. — Por que seus olhos brilham de vez em quando?

O garfo dela, que estava indo até a boca, parou. Sua expressão se paralisou, antes de olhar para mim com um rosto assustado.

— Quê?

— É, às vezes seus olhos emitem uma luz mais forte?

Aquilo aconteceu novamente. Que é isso?!

— Não tenho ideia do que diz — falou ela, e continuou a comer como se nada tivesse acontecido.

Enquanto a observava daquele jeito, obviamente escondendo algo importante, não pude deixar de pensar que não sei absolutamente nada nesse mundo. Existe magia. Pessoas podem manipular, matar, roubar, encantar, fazer de tudo...

Sou apenas uma presa diante dessas pessoas, inclusive dela. Até mesmo ela pode fazer algo terrível comigo.

— O que planeja fazer? — disse Violette, terminando a refeição.

— O que eu planejo fazer?

— Sim. O Cyle quase te matou. Você planeja fazer alguma coisa a respeito?

— Vingança? — falei, meu coração acelerando.

— Pode ser também, mas digo em relação a você mesmo.

— A mim mesmo? — Sentia-me um idiota, mas não sei o que ela queria dizer.

— Sim. Considerando ainda o seu contexto familiar... Tudo deve ser bem difícil.

— Ah... — Não sabia o que dizer. Não tenho nenhuma memória ou informação sobre a vida de Flamel. Nesse ritmo, ela vai perceber que não sou desse mundo. E ela esconde alguma coisa sobre seus olhos brilharem...

Meu coração se agitava mais e mais, meu peito tremendo a cada batida.

— Espera... Não me diga que-

Violette! — chamou-a uma voz que veio de trás de mim... Uma voz que eu preferiria morrer do que escutar novamente.

Virei-me e encarei Cyle se aproximando de nós, junto de um rapaz alto de cabelo raspado e com óculos quadrados.

— Cabelinho Lambido. Como vai? — Sorriu ela acidamente.

O semblante de Cyle perdeu o brilho no mesmo instante. Ele continuava com seu cabelo lambido.

— O quê? Cabelinho lindo? Agora entendi. — Ele se aproximou de mim e apertou meu ombro, forte o bastante para estalá-lo e sentir como se fosse esmagá-lo. Era uma força absurda. Apertei a minha coxa com tudo que pude, tentando não reagir a isso.

— Cyle. — A voz de Violette se fez mais séria do que jamais vi. — Chega.

A mão do rapaz me soltou, embora nem conseguisse mexer meu ombro mais. Isso tudo com um simples aperto...

Suspirei fundo.

Tsc. — Cyle simplesmente saiu e foi pegar por comida.

Aproveitei a brecha para me levantar e sair o mais rápido possível, mas...

A mão de Violette segurou minha gola. Ela olhou no fundo dos meus olhos.

Fica aqui.

Olhei para Cyle e seu amigo colocando comida nos pratos. Logo estariam aqui. Se eu quisesse sair — e sobreviver — precisaria ir logo, mas...

O semblante da Violette era sério e determinado.

Antes que percebesse, me envolvi em uma enrascada...

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