Volume 1
Capítulo 8: Até quando irá fugir?
Quando os primeiros raios de Sol entraram pela janela, uma vibração tomou conta da minha cama, sacudindo meu corpo.
— O que é isso?!
Levantei-me depressa, e a vibração cessou. O que diabos foi...
“Runa de alarme concluída”, entrou na minha mente a informação.
Olhei para a cama e vi uma névoa azulada no entorno dela. Será que foi magia?... Flamel já havia posto uma runa de alarme na cama antes? Que estranho. Mas, de qualquer forma...
Meus olhos se direcionaram à porta. Agora era hora de ir para aula. Mesmo que com o uniforme amarrotado, ainda a minha sobrevivência dependeria disso. Contudo...
Ir à aula? Eh...
Minha visão percorreu cada canto daquele quarto sombrio e solitário. Eu estava aqui sozinho. Ninguém poderia reclamar comigo sobre nada. Além disso, não consigo usar magia: nunca consegui nem acender a luminária do meu quarto. Tentar derrotar alguém como o Cyle seria uma perda de tempo...
Meu corpo estava cansado. Tudo era demais para mim. Com um aperto no peito, deitei-me na cama e fechei os olhos. Uma vontade de chorar ameaçou minha face. Mas... O que fazer? Nada poderia me ajudar aqui...
Que se dane a aula...
Antes que eu percebesse, minha consciência já havia adormecido.
— Michael... — sussurrou uma voz fantasmagórica atrás de mim. Meu pescoço se arrepiou.
Meus dedos congelaram, parando de digitar. Que voz foi essa?...
À minha frente estava um monitor exibindo um texto que redigia para minha faculdade. Meus olhos se fixaram nele... Não quero virar para trás. Nem desviar o meu olhar, pois poderia me arrepender do que veria.
— Acorde, Michael...
Essa voz... ela me é tão familiar, mas tão esquisita... Ela era... É do Lucas. Meu Deus.
— Eu acordei, irmão! — gritei, ainda sem coragem de olhá-lo. — Eu acordei! Saí daquele estado depressivo e apático. Aqui, estou escrevendo o texto de psicologia. Estou trabalhando. Estou crescendo na vida! Cumprirei nossas promessas, eu-
— Michael. Você e eu sabemos muito bem que esse não é o seu caminho.
— Eu sei que deveria ser Medicina... Eu sei! Não tive nota no vestibular porque não estudei direito, me perdoa... Mas estou gostando de psicologia! Esse é o caminho que escolhi, e que vou ter sucesso nele. Vou te mostrar que-
— Michael. — A voz de Lucas ressoou com seriedade. — Não estou falando de Medicina. Você sabe muito bem disso. Não fuja do seu destino.
— Mas destino somos nós que escolhemos! — disse enquanto me virava para trás, apenas para ver Lucas com o corpo distorcido e ensanguentado, com diversos ossos quebrados e expostos. Vê-lo assim, igual no dia em que morreu nos meus braços por minha culpa, era o pior dos meus pesadelos.
— Não fazer nada também é uma escolha, irmão. O tempo está passando. Oportunidades vão se perdendo, problemas vão se acumulando. Olhe para o monitor novamente.
Olhar para o monitor novamente? Engoli e seco e o fiz, porém, em vez do monitor, havia papéis, penas com tinta preta na ponta e um gigantesco livro recheado de desenhos estranhos de... fórmulas mágicas. Meu coração pulou uma batida.
— Cadê... Cadê meu computador? Espera...
Olhei ao redor, mas não estava mais em casa: aquelas paredes escuras e imponentes me cercavam, cuja única marca minha era um buraco feito com a adaga. Era meu apartamento na escola de magia, iluminado apenas pela luz do poste do lado de fora...
— Mas Lucas!... — Virei-me para trás, mas a escuridão reinava onde ele estava. Não o via mais.
— Esse é o seu destino, Michael. Vá. Continue escrevendo seu artigo. Não de Medicina ou de Psicologia, mas de Magia. Ele lhe aguarda.
Na mesa, havia um papel escrito pela metade. Era sobre as runas de som. Meus olhos se encheram de lágrimas. Queria fugir dali. Esse não era o meu lugar...
— Não quero! — protestei e joguei a pena para longe. — Que se foda esse mundo! Que tudo pegue fogo! Tudo é tão difícil... Não consigo! Esse mundo é muito maior do que eu jamais poderia imaginar...
— Michael. — A simples voz resoluta dele foi capaz de restringir a minha. Meus olhos fixaram-se nele com intensidade. — Por mais quanto tempo você esconderá a sua face da dor?
— O-o quê?!
— Não sou eu, Michael. É a sua própria consciência. Veja. Olhe-se no fundo dos seus olhos. O que vê?
Na mesa, surgiu um espelho alto que refletia o rosto de um jovem muitíssimo parecido a mim na Terra, porém com cabelo amarrotado, olhos inchados, uma bochecha meio roxa, pele pálida, lábios trêmulos. Fraco. Esse era o meu eu atual...
— Cada dia você tem muitas escolhas. E o seu coração anseia pela luta. Mas o que faz? Tem escolhido o nada, e da culpa vive fugido. Mesmo depois de tomar uma surra, por que não se olhou no espelho do seu banheiro para ver se seu rosto estava recuperado? Por que foge de si?
— Isso...
Não queria aceitar isso. Não queria. Quero apenas fugir, não tenho forças para lutar. Mas... a verdade é que eu não queria nada disso. Quero sobreviver e lutar. Entretanto, que forças há para lutar? Apenas serei esmagado...
— Por mais quanto tempo permanecerá com medo, Michael? Por quanto tempo esconderá seu rosto, inclusive de si próprio? Por mais quanto tempo deixará que tudo pegue fogo?
— E o que você quer que eu faça?! É impossível eu vencer o Cyle. Você já viu os monstros que residem nesse mundo? Esse não é o meu lugar! — gritei com todas as minhas forças, suor contaminando meu corpo enquanto meus olhos lutam contra o impossível para não chorar.
— Não há um lugar nosso predefinido. Nós construímos o nosso próprio mundo onde a vida nos jogar. Porém, você diz que o Cyle é muito mais forte do que você. O que fez a respeito? Diz que não consegue usar magia, mas alguma vez já tentou? Tudo que faz é dormir debaixo da coberta. A vida lhe clama a agir.
— Eu...
— Você nunca tentou nada. Apenas mente para si mesmo e cria desculpas para fugir das próprias responsabilidades. Anda, pega o livro e estuda. Tente. Você não sabe nada sobre seu potencial.
— M-mas, mesmo se meu potencial fosse ridiculamente alto, ainda todos aqui treinaram desde a infância! Cheguei agora a este mundo. O que posso fazer?!
— Michael, mesmo se o Cyle ou algo for uma barreira insuperável, ainda há infinitos outros caminhos. Você não precisa de escolher o caminho de conflito direto contra ninguém.
— Não?
— Não. Se você tiver força, poderá encontrar novos aliados. A professora Hayek é uma opção. Ela é capaz de te defender do Cyle. Além disso, fugir da escola e se aventurar pelo mundo é sempre uma possibilidade. Mas, para qualquer uma dessas opções, é necessário que você saia desse casulo que criou e tome riscos.
— Eu... Eu... — Vergonha me consumia. Queria me esconder, fugir, ou até cessar com minha vida. Minhas escolhas me levaram a isso, e tudo que queria fazer é fugir do mundo e da minha consciência. Continuo esperando por dias melhores, fugindo, mesmo sabendo que sou eu quem deve fazer algo. É só que... — Eu quero voltar para casa...
— Não te julgo. E nem deveria você se julgar. Mas ficar parado só piorará tudo. O que mais importa é sobreviver. E você sabe disso. Tenta culpar a todos, mas, no fim, mata aula e chora sozinho. Diz que tudo é muito difícil, mas, quando recebe uma adaga, a enfia na parede, ao invés de treinar com ela ou mantê-la consigo para se proteger.
— Espera... Espera... Como você sabe disso tudo? E... usar a faca para me proteger?...
— Sim. Você está tão centrado no seu sofrimento e angústia que nem pensa como usar melhor o ambiente ao seu redor. Inúmeras oportunidades já passaram por você, Michael, e muitas você ignorou.
— M-muitas oportunidades? — Lágrimas começavam a escorrer. No fundo, sabia disso tudo. Sabia que só tenho feito merda, mas... ainda assim...
— Sim. Por exemplo, a Hayek tinha lhe dito que precisava recadastrar a sua mana ou algo do tipo. Por que não a procurou? Seria uma chance de reforçar seus laços.
— Eu... não quero ser um fardo às pessoas... E nem me relacionar com ninguém por interesse.
— Não há problema em se aproximar de alguém por necessidade. Basta que crie uma conexão que seja de acordo com seus princípios.
— Ainda assim...
— Certo. Se não a Hayek, e a Guinevere? Ela parece até conectada à Hayek. Ou ainda o Dolgan? Os dois parecem querer seu bem. Não seria um fardo ajudar alguém que gostam.
— Gostam é do Flamel, e não de mim, Lucas... Nenhuma amizade foi construída por mim nessa vida.
— Tem certeza que toda a simpatia que recebeu é por causa do Flamel?
— E como não seria? Eles têm memórias e amizades juntos.
— Se você tivesse um amigo que se mostrasse cansado, fatigado e reclamando de tudo, ficaria conversando com ele por muito tempo no mesmo dia?
— Depende. Acho que não, mas se ele não estiver bem, tentaria ajudá-lo.
— E se o seu amigo se mostrasse anormalmente simpático e acolhedor?
— ...
— Percebe que faz diferença? Uma amizade não te garante ser respeitado ou amado. Você ainda tem que conquistar isso dia após dia, se não as pessoas se distanciam. E todos parecem ter gostado de conversar com você, não?
— ...Não tenho como ter certeza.
— Você se culpa muito, mas não projete isso nos outros. Você pode se sentir horrível consigo mesmo, e ainda assim pode ser uma boa pessoa.
— ...
— Enfim, também há outras oportunidades que você perdeu também. Poderia ter conversado mais com o enfermeiro, procurado a biblioteca, ou até inventado que está com problemas de memória desde o acidente. Os caminhos são infinitos, basta procurá-los.
— C-como você sabe disso tudo?... — Olhei para Lucas, embora tudo que visse fossem trevas. Sua voz nem sequer mais parecia com a dele; cada vez mais, tornava-se apenas algo fantasmagórico, distante, impessoal.
— Porque eu sou você, Michael. Fruto da sua mente. Todas essas respostas já foram pensadas no inconsciente. Se você se esforçasse apenas um pouco, veria que ao menos algumas soluções viriam; e mais outras, quando a oportunidade chegasse.
— Isso é ridículo! Como é que pode a minha mente saber tanto sem eu ter conhecimento?!
— Nunca ouviu que a mente revisa o conhecimento e cria novas conexões durante o sono, mesmo que a nossa memória continue a mesma? E sobre como ideias aparentemente “surgem” na nossa cabeça? Veja: nada simplesmente surge. Tudo provém de algum lugar.
— Calma aí... Essa questão de inconsciente... Quando ouvi minha própria voz na enfermaria, era apenas o meu inconsciente?
— Não sei sobre o que está falando. Contudo, o foco agora é outro. Você precisa reagir e sobreviver. Pegue a pena e continue a estudar.
— Mas eu joguei ela... fora... — Quando meus olhos param sobre a mesa, lá estava a pena, como se nunca a tivesse arremessado para longe... Não é possível fugir dela. Não posso lutar contra esse destino. Estou preso... Peguei a pena e olhei o livro que a voz pedia que eu escrevesse sobre, mas...
— Você falou tanto sobre diversas oportunidades que tenho. Uma delas é que há outros livros para ler nesse quarto. Por que eu estudaria runa de som? Deve haver algo mais interessante...
Mesmo não vendo a figura, ainda sabia que ela sorriu. Um sorriso diabólico e curvo, de quem quer que estivesse conversando comigo.
— É isso, Michael. Aceite seu destino, mas construa sua própria vontade sobre ele. Você deve se preparar para sobreviver, mas escolherá como. Agora... Você deve voltar. Alguém te espera.
— Alguém me espera?...
— Sim. Cresça, Michael. Mas não apenas cresça indefinidamente: cresça na direção que seu coração lhe guiar. Sobreviva. Cresça.
— Mas...
Assim que a voz cessou, a escuridão que me cercava foi se desfazendo, até eu conseguir enxergar meu quarto normalmente. O Sol brilhava muito mais do que imaginava.
Com surpresa, me vi sentado na cadeira, ao invés de deitado na cama. Havia uma pena manchada em tinta preta na minha mão, e um livro fechado com capa de couro com o título em letras douradas de: “Manual de Feitiços Iniciantes, volume 1”. O espelho havia desaparecido.
Estou ficando muito, doido, né?...
Limpei uma lágrima que escorreu da minha bochecha. Meu coração ainda permanecia acelerado após todo o pesadelo. No entanto...
Todas as ideias permaneciam comigo, inclusive das oportunidades que perdia a todo instante.
“Se você se esforçasse apenas um pouco, veria que ao menos algumas soluções viriam”, as palavras ecoavam na minha mente.
No fim, então é tudo culpa minha mesmo? Eu poderia ter evitado todas essas catástrofes, mas, por ter me fechado em mim mesmo, perdi muitas oportunidades? Porém... é justificável eu ter focado na minha dor... É compreensível... É muita coisa para eu ter que lidar com...
Enquanto continuava a refletir sobre o quanto deveria aceitar aquilo que ouvi, alguém bateu na minha porta. Foi apenas um toque sutil, mas perceptível. Não teria percebido se estivesse muito concentrado em mim mesmo...
Levantei-me e fui até à porta. Abri-a, mas não havia ninguém. Olhei pelo corredor, mas ele estava vazio. Que estranho.
Aquela voz tinha dito que alguém esperava por mim, não?...