Volume 1
Capítulo 31: Feitiçaria de Ar II
No momento em que acordei, o mundo ao redor me envolveu num afago carinhoso. A luz boa e estável das tochas, o som caloroso do fogo relaxando minha mente...
Espreguicei os braços rígidos, o corpo ainda pesado após o esforço anterior, e me levantei. Não havia mais ninguém lá. Finalmente estava só. Só com meus pensamentos...
Aos poucos, inundavam-me memórias dos dias anteriores. O doce perfume de Aithne se perpetuava em minha mente e no sorriso que se abria nos lábios e relaxava minha face.
Ela era como uma nobre dama da França do século XVII que, apesar do linguajar rude, exala pelo ambiente uma fragrância suave e inebriante, do tipo que se quer sentir mais e mais. Mas nenhum perfume seria capaz de seduzir a mente de um homem a ponto de não notar as francesas ruas repletas de lodo após um dia chuvoso, o cheiro de esterco e mijo se espreitando por todas as redondezas próximas.
Dessa forma me senti quando as refrescantes lembranças dela foram substituídas por um aperto sufocante no peito. Perseguia-me o olhar ensanguentado do garoto, os perigos do outro lado da caverna...
Sentindo-me como um alpinista que, ao alto de uma montanha, olha para a imensidão abaixo e sente a súbita tentação de largar a corda e se deixar cair, a curiosidade mórbida se apossou de mim e me levou de volta àqueles corredores sombrios.
Abri a porta do quarto e me esgueirei pela caverna, passo por passo nas pontas dos pés, com um caminhar mais silencioso que a respiração, que era difícil manter suave com o coração cavalgando no peito.
Adiante, diferente do corredor fracamente iluminado por tochas de outrora, havia apenas escuridão, maciça e impenetrável. Com os olhos estreitos fixados naquilo que não podiam ver, os ouvidos atentos a qualquer mísero som que poderia surgir, envolvia-me numa expectativa pelo pior que só entenderia quem viu um vulto correr diante de si, ou que ouviu uma voz familiar em uma casa vazia.
Cada instante se passava, e nada ocorria na escuridão. Normalmente jamais exploraria algo tão perigoso, mas um sonho infantil, otimista demais, me clamava a reencontrar o garoto e arranjar um jeito de salvá-lo. Não poderia deixá-lo ser torturado...
Embriaguei-me de coragem, suficiente para ignorar como o corpo tremia, e caminhei adiante, adentrando nas profundezas da caverna, onde nenhuma luz chegava.
Em poucos passos, minhas mãos tatearam uma superfície fria e rígida. Meu coração pulou uma batida, jurando que havia encontrado algo que traria minha morte. Porém, a superfície continuou a mesma, estática e imóvel. Vencido o medo inicial, tateei mais, e concluí que era uma simples parede de pedra, o final do corredor.
Só que isso não fazia sentido algum. Aquilo tinha que ser impossível...
Ainda sem acreditar, lancei um pequeno feitiço de fogo, meu dedo indicador e o médio servindo como um isqueiro. A pequena luz bruxuleante exibia uma parede tão real quanto meu corpo. A vista, a textura, e mesmo o som pouco opaco que fazia eram reais. Não existiam os corredores pelos quais me perdi antes.
Sem saber o que acontecia, retornei à proteção do quarto. O perigo instável que cercava o mistério me dava a sensação de que muitas coisas ruins imprevisíveis poderiam ocorrer. Ali poderia não ser seguro.
Uma vez no quarto, percebi que repousava uma nova carta acima da pilha de livros, de papel tão chique quanto a destinada à Hayek. Peguei-a nas pontas dos dedos, cuidadoso para não deixar amassos perceptíveis, mas franzi o cenho quando percebi que um lacre vermelho me impediria de ler o conteúdo. Ou pelo menos foi o que pensei, até ler no papel: “para Flamel”.
Engoli em seco e um arrepio se alastrou pelas costas. Não esperava encontrar algo para mim. Até então, esse quarto, a caverna, tudo era como um ambiente externo e misterioso para explorar. Nunca fui parte dele. E ser parte disso não poderia significar boa coisa...
Com um pouco de nervosismo, quebrei o selo e li a carta. Era um recado de Hayek, informando que deixou meu uniforme dentro da gaveta, e que as aulas da semana, que já se iniciavam naquele dia, haviam sido reformuladas com maior uniformidade de horários — fato que ela comemorou na carta, alegando ser influência dela.
A grade das disciplinas estava disposta em um canhoto anexado ao papel. As aulas tinham início às oito da manhã, de segunda-feira à sábado. Nos dias de semana, terminaria às 16:40, com um intervalo de almoço um pouco mais longo, enquanto nos sábados só havia aulas de manhã.
Ela também afirmou que havia um relógio na gaveta para mim. Além disso, incluiu um minimapa dos corredores da caverna — do lado oposto ao que explorei. Tratava-se do subsolo da Torre dos Professores, conectado com outros locais da Academia. Um caminho traçado em vermelho indicava como chegar no prédio das salas de aula. Também notei que não havia os corredores por onde perscrutei, como se o local não existisse.
Saber que era bem cuidado e bem-quisto pela Hayek e pela Aithne daquela forma... Era um privilégio que nem sonhava em possuir. Com movimentos carinhosos e cuidados, repousei a carta na mesa, abri a gaveta e trouxe o relógio para perto do rosto. Era prateado, em formato chato e arredondado, propício para bolsos, com uma corrente que poderia ser anexada nas presilhas da calça. Vi pelos ponteiros que eram sete horas da manhã.
Agradecido por todo apoio, fiz uma pequena reverência silenciosa junto de uma oração por proteção à Aithne, Hayek, Guinevere, Dolgan, Violette, e até Tokewater, que me explicou sobre meus dons.
Religião era um tema delicado para mim. Depois que Lucas morreu, a figura de um Deus misericordioso e justo parecia distante. Nenhum de nós merecia isso, e, mesmo se o motorista estivesse bem acima da velocidade, possivelmente teria se esquivado de Lucas, caso não houvesse uma lombada justo naquele trecho da estrada.
Ainda assim, não conseguia acreditar na não-existência. Tanto acreditar que sempre houve matéria, na forma antes do big-bang, quanto crer que sempre existiu um ser ordenador dos cosmos parecia me exigir um mesmo grau de fé, diferente de quem simplesmente não carrega nenhuma certeza. Afirmar que nada existia me parecia mais um protesto que uma hipótese cuidadosa.
Olhando em retrospectiva, até continuei com o hábito de rezar, mas sem muita fé ou certeza de que alguém me escutava. No famoso “vai que”, depositando algumas fichas numa proteção que me parecia distante e inacessível. Talvez me sentisse como uma estátua de um santo clamando por um poder maior, mas atormentado pelo inferno da Terra do qual não era socorrido.
Isso mudou desde que vim parar naquele mundo. Entrar neste corpo não poderia ser explicado por nenhuma ciência. A magia era algo pouco natural. Monstros das mais diversas formas, ou mesmo visões como a que tive com a falecida Maria, me faziam crer que há um mundo maior e mais espiritual que pensei. Talvez, afinal, houvesse um significado espiritual no sofrimento maior do que poderia imaginar.
E, falando sobre o mundo espiritual, a voz na minha cabeça...
No armário, enquanto me atormentavam os gritos agonizantes do menino, a fala da minha mente pareceu ser proferida com a lógica e argumentação de uma pessoa. Talvez fosse um espírito. Eu estaria sendo mera marionete de uma consciência sobrenatural?
Um frio invadiu meu estômago, mas por outra razão. Mais urgente que procurar uma resposta inalcançável sobre tal pergunta, notei que um denso sentimento sombrio esgueirava pelo coração, como se garras sorrateiramente o envolvessem, prontas para apertá-lo e o estilhaçar no primeiro momento de fraqueza. Instintivamente sabia que o horror que presenciei naquela caverna jamais deixaria de me perseguir, não importava quanto a Aithne e a carta roubassem minha atenção.
Mas não era como se fosse a primeira vez que o mundo me chocasse. Era nojento, cruel, horrendo o que aquele canalha encapuzado fez. Porém, foi igualmente grotesca a forma como os lobos arrancaram a carne da minha perna, tão fácil quanto alguém mastigaria uma coxa de frango num churrasco. Ou de quando rastejei pelo chão quase com os pés amputados por causa daquele maldito monstro. Ou de... Ah...
Só era... diferente ver isso acontecendo com uma criança inocente, por um ser humano ainda mais sádico que um monstro feito para a carnificina...
Talvez nada daquilo passasse de uma ilusão. Talvez... No fundo, sabia que não era, mas, mesmo se não fosse, o que ganharia pensando naquilo? Enfiar uma outra faca na parede? Suicidar? E o que isso mudaria, senão foder ainda mais com todos que tinham qualquer simpatia por mim, além de jogar fora tudo que poderia fazer para ajudar um pouco o mundo, como foi confortar a Aithne?
Mordi os lábis e me decidi, resoluto. Vesti o uniforme, botei o relógio no bolso, joguei o cabelo para trás e me enfiei pelos corredores que a carta indicava. Um novo dia começava, e não me deixaria perder oportunidades de novo. Não mais.
Não percebi quando aconteceu, mas, em algum momento, meus passos ficaram mais leves e o coração finalmente respirava ar puro. A ansiedade me abandonava, como um temporal fervoroso que inevitavelmente chega ao fim. Algumas ruas da minha alma continuaram molhadas, mas talvez o tempo bastasse para secar.
Na sala de aula, estava sentada a professora Zanyt, uma mulher por volta dos sessenta anos, de pele enrugada e uma expressão tão azeda que parecia conter um incrível repertório de murmúrios rabugentos, pronto para ser lançado à primeira coisa que a incomodasse. Carregava uma régua na mão, com a severidade de quem se prepara para chicotear um aluno com ela, enquanto nos outros dedos segurava uma folha de chamada.
— Erlin? — chamou ela.
— Presente — disse um rapaz de cabelos castanhos com mechas pretas, que se levantou ao enunciar a fala. Logo se sentou de volta à carteira acompanhado dos olhares de outros alunos, em especial dos olhos dourados de Sara, que o encarava com uma secreta admiração. Ela estava sentada ao lado de Violette, de face emburrada, as pernas e os braços cruzados.
— Certo. Flamel?
Não houve resposta. As rugas do rosto de Zanyt se estreitaram, como se fosse assaltada por um desafio severo à sua honra.
— Flamel? — repetiu, o que, até então, não havia acontecido no ano.
Sara e diversas pessoas olharam para Violette com um sorrisinho. Os rumores do possível caso entre Violette e Flamel haviam se alastrado por toda Academia; todos que conversavam com ela a interrogava sobre isso, mas a jovem ruiva entrara numa onda de mau-humor tão atípica quanto o suposto interesse dela por Flamel. Ela simplesmente se negava a responder, tão fechada e rígida quanto estava naquela manhã.
— Ele não veio — declarou Cyle, levantando-se para falar. — Deve estar ainda se recuperando do duelo com Violette.
Algumas risadinhas borbulharam pela sala. Os lábios de Violette se estreitaram ainda mais.
— Ah... — suspirou ela num tom irritado. — Parece que, pela primeira vez, terei que...
— ESPERA! — rugiu uma voz que fez a feição de Violette se abrir com curiosidade.
Entrou na sala um estudante alto, magro, com o cabelo negro bagunçado. Suor escorria pela testa e pescoço, como se tivesse acabado de ter uma aula de combate corporal.
— Estou aqui! — Michael disse entre arfadas de ar com uma expressão exausta.
Silêncio recaiu sobre a sala, o rosto das pessoas envolto pela surpresa do que presenciavam. Os alunos se entreolharam, tentaram manter o decoro que Zanyt exigia, mas, como um elástico que se arrebenta e rebate com força, gargalhadas explodiram pelo cômodo.
Cada risada parecia transmitir uma vergonha que, como uma onda do oceano, atravessava a sala e se quebrava em cheio em Michael. Ele ficou com as bochechas meio coradas, os olhos meio desesperados indo de rosto em rosto que gargalhava.
O rosto de Zanyt, porém, fazia um severo contraste com a graça da situação.
— Silêncio. — chicoteou a régua na mesa, produzindo um estrondo que calou a sala no mesmo momento. — Está atrasado, senhor Vandutch. Menos cinco pontos. Será perdoado se fizer um fichamento da unidade completa com que estamos trabalhando. Aliás, cadê seu livro?
Os olhos do rapaz se arregalaram de surpresa, e então exploraram as carteiras de cada aluno, apenas para constatar que todos tinham um grosso livro sobre a mesa. Ele começou a suar e coçou a nuca, sem jeito.
— É que...
— Menos dez pontos. Em vez da unidade, me entregará um fichamento de capa a capa do livro.
Michael não pôde acreditar. Era uma punição severa demais. Aquele tijolo que ela chamava de livro parecia ter pelo menos setecentas páginas. Isso...
— Entendido? — soaram as palavras dela com acidez, como se fosse uma serpente a esguichar veneno pelos dentes.
— Sim...
— Pois bem. Sente-se com alguém, e comecemos a aula.
Sara notou que a expressão de Violette estava relaxada e atenta, até quase rindo. Com os lábios meio-abertos, os olhos opacos da garota ruiva encaravam Michael, perdidos em algum dos becos da própria mente. Quando finalmente soltou os braços e se preparou para acenar ao Michael, notou que Dolgan já o fazia com um vasto sorriso, claro e leve como a neve.
Vendo que perdeu a oportunidade, Violette cruzou os braços e se refugiou no seu canto da cadeira. A expressão, porém, permaneceu aliviada. Suficiente para que Sara começasse a imaginar como descrever a cena para os amigos. Seria uma fofoca das boas.
Nunca vi uma aula tão rígida e sistemática quanto à da senhora Zanyt.
Cada fórmula transcrita no quadro à giz demorava cerca de vinte a trinta minutos, por causa do extenso número de detalhes. Ainda assim, foram dados somente dez minutos para que os alunos copiassem, antes de a runa ser apagada e começar a desenhar outra. O ritmo da aula seguia assim, enquanto Zanyt comentava sobre os efeitos e estruturas de alguns feitiços.
Os desenhos tinham de ser minuciosos para que funcionassem. Todos os três eram círculos inscritos com um pentágono, preenchido com as mais diversas figuras geométricas, além de escrituras de uma linguagem que eu não conhecia. Era difícil copiar com exatidão os pingos, acentos e símbolos estranhos das letras.
Um princípio básico que lembrei dos livros que li era a tal linguagem universal dos seres humanos. Feitiços pronunciados em voz alta, por causa dela, tinham mais força que os executados silenciosamente. O cérebro parecia obedecer a ordens nessa língua.
Com Dolgan me emprestando algumas folhas, desenhei tudo fervorosamente. Eram três feitiços principais daquela aula: olho aéreo, propulsão e parede de vento.
Olho aéreo era capaz de criar uma área no ar na qual se poderia enxergar, como se fosse um terceiro olho flutuante. No nível que aprendíamos, a runa sempre se manteria bem próxima de nós, no máximo meio metro longe. Era mais útil para enxergar pelas costas, embora em nível mais avançado poderia ser implantada em um local e ver por lá, como uma câmera de segurança da Terra.
Propulsão foi um feitiço mais complexo. Tinha como objetivo tornar ataques físicos mais rápidos e impactantes. Inicialmente imaginei que seria simplesmente soprar o vento a favor do golpe. Porém, lendo o livro do Dolgan, descobri que isso que descrevi era o feitiço básico de corrente de ar simples, ensinado na matéria de Feitiçaria de Ar I. A matéria atual, ministrada pela Zanyt, era Feitiçaria de Ar II, mais complexa.
Propulsão era uma forma mais avançada de encantar um ataque físico. Ela criava uma série de vácuos no ar pelo percurso que o membro da pessoa percorreria. Assim, o braço ou perna do combatente seria puxado com força para frente, aumentando drasticamente sua potência. Quanto maior a maestria com o feitiço, maior a intensidade do vácuo.
Porém, algo me deixou confuso. Esse feitiço de vácuo não seria capaz de atuar de várias outras maneiras?
Levantei o braço. Assim que Zanyt se virou, me encarou com rispidez, mas seus lábios se levantaram microscopicamente, talvez escondendo um sorriso.
— Sim, senhor Vandutch?
— Esse vácuo não poderia ser usado para outros propósitos? Por exemplo, se um feitiço de fogo for lançado em alguém e a pessoa for conseguir desviar, não se poderia usar o vácuo para prendê-la ou até mesmo puxá-la de volta à área do feitiço?
Os olhos de Zanyt brilharam, embora o semblante continuava fechado.
— Seria possível, se fosse outro feitiço — disse ela, batendo a régua na mão com certa diversão. — Propulsão, veja, não tem força suficiente para evitar o movimento de alguém. Os vácuos criados são minúsculos, e, se não forem feitos colados ao corpo da pessoa, é o ar ao redor que será puxado, em vez da pessoa. Então não dá para fazer alguém se movimentar contra vontade, apenas, no máximo, tornar o movimento de alguém mais pesado. Neste caso, um feitiço que aumenta a densidade do vento é mais apropriado.
Cocei o queixo, tentando alisar uns fiapos de barba que faltavam no corpo de Flamel. Um sorriso cobriu de leve meu rosto, revelando um ânimo crescente no coração. Era... empolgante estudar tudo aquilo. Toda runa tinha seus prós e contras. Até poderia ser usada fora da caixa e em combinação com outros feitiços, mas eram como peças de um quebra-cabeça: seus locais de encaixe apropriados são específicos e limitados.
— Obrigado — falei-lhe.
A aula prosseguiu com o desenho da última runa: parede de vento.
O conceito era simples, mas incrivelmente desafiador. O objetivo era criar um escudo de vento. Mas como? Pensando quimicamente, as moléculas dos gases do ar são muito distantes e com fraca energia entre elas. Qualquer objeto passaria pelo gás sem muito impedimento.
Zanyt não explicou como funcionava a teoria do feitiço. Apenas demonstrou, projetando uma runa no ar de quase dois metros, cintilando em tom de azul profundo, na frente dela. A menos de um centímetro do feitiço — um alcance curtíssimo —, o ar se comprimiu, tendo a aparência translúcida igual de um plástico.
Curioso sobre como isso funcionava, supus que envolveria aumentar a energia de ligação das moléculas do ar e encurtar a distância entre elas, até formarem uma superfície mais rígida, com moléculas tão próximas umas das outras que fariam uma "parede" dura. O problema era que talvez trilhões de interações entre moléculas seriam afetadas naquela área de dois metros que ela projetou. Isso...
Talvez isso explicasse por que o gasto de mana era exageradamente alto.
Tendo conhecimentos básicos de física e química, me senti como se tivesse um cheat naquele mundo. Ninguém sabia disso. Aithne, estudante de honra, nem conhecia a existência dos neurônios...
“Será que é muito difícil produzir uma runa efetiva?...” Fiquei tentado pelo conhecimento que tinha. Olhei para o papel desenhado com incontáveis símbolos mágico. Aquilo era complexo, como se fosse um dragão de vinte cabeças. Ri de mim mesmo, um pouco triste, e acabei deixando a ideia de lado.
Quando a aula já se aproximava do fim quase duas horas desde o início, comecei a me relaxar mais — sobrevivi à minha primeira aula normal. Zanyt também começava a ter um olhar menos severo.
Fitei Dolgan de soslaio. O anão era um aluno dedicado. Passou a aula inteira copiando os símbolos, e os olhos constantemente se dirigiam ao livro, como se estivesse acostumado a ler alguns trechos durante as explicações.
A pele dele parecia mais grossa e rígida que a de uma pessoa normal, como um couro de urso. Também tinha pelos um pouco mais espessos pelo braço. As mãos eram meio desproporcionalmente grandes, e com uma pele mais escura, que logo notei ser uma luva de cicatrizes extensas que consumiam todo o punho, provavelmente por queimadura.
Aquilo me deixou abalado. Como poderia alguém se queimar daquele jeito?...
Tinha medo dessa resposta.
— Ei, Dolgan — chamei-lhe.
— Oi? — cochichou ele, sorrindo um pouco sem jeito. Parece que o tirei do foco da aula.
— Desculpa te interromper. É só que... — morreu minha voz, indeciso sobre como fazer a pergunta, ou se ainda deveria sequer perguntar.
— O que foi? — As sobrancelhas dele se levantaram e se aproximaram. — Pode falar.
— Não, é só que... — Encarei as mãos dele, ainda hesitante.
— Ah... — Ele as olhou também. Os lábios se abriram, surpreso e sem saber o que falar. Então levou as mãos ao bolso. Lembrou-me do meu pai quando escondia de mim o quão triste havia ficado com a morte de Lucas, apenas para tentar não me fazer sofrer mais.
— Você já passou por muita coisa... — Apoiei minha mão em seu ombro oposto, abraçando-o um pouco, talvez por ver nele um pouco do meu pai sofrido, talvez por ele ser tão amigável comigo desde que vim parar aqui.
— Não é nada. Na verdade, é algo bem comum para os anões... É quase um rito de passagem. Desde pequenos aprendemos a trabalhar com fornalhas e peças de ferro em brasas. Quase ninguém escapa das queimaduras, no começo sempre somos meio desastrados. — Dolgan riu. — Mas depois a pele fica tão resistente que queimaduras não machucam muito.
Fitei-o bem. A história parecia verdadeira, mas estava acostumado com desculpas vindas do meu pai nessas situações. Analisei-o mais, mas a expressão dele não pareceu revelar nenhum indício de que mentira...
Um sorriso de admiração floresceu em meus lábios. Era como se visse diante de mim um protagonista de história de fantasia. Lembrava-me de alguns jogos de RPG que havia jogado.
Ri também, mas cortei a fala assim que ouvi a régua de Zanyt batendo na mão dela. Ela nos encarava. Engoli em seco e voltei a me concentrar, mesmo que, tecnicamente, o horário da aula dela já tivesse se acabado.
Quando finalmente a professora finalizou a aula, disse que no nosso próximo encontro iria fazer um teste envolvendo a execução dos três feitiços, valendo cinco pontos e muita reputação. Recolheu os papéis na mesa, limpou a lousa e saiu da sala.
Até que enfim pude cair na cadeira e suspirar fundo. Ouvi uma risadinha de alguma garota, mas, antes que a pudesse identificar, a porta se abriu e um outro professor entrou na sala, esguio como uma serpente. Parou na frente de sua mesa, abriu o manto negro e retirou dos bolsos internos algumas poções verdes e laranjas. Jogou os cabelos roxos e longos para os lados e sentou em cima da mesa numa pose meio rebelde.
Secretamente xinguei Zanyt por ter roubado todos os vinte minutos de intervalo, e me preparei para a próxima aula.