O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 30: Olhos transparentes

Expliquei para Aithne o que ocorrera. A cada palavra minha, mais suas sobrancelhas se juntavam, e seus olhos, vazios como um céu noturno sem estrelas, encaravam a parede, em uma profunda e inquieta reflexão.

No entanto, cada frase entoada exigia de mim uma energia que me faltava. Tentar me manter acordado e pronunciando palavras conexas era semelhante a torcer impetuosamente um pano seco, tentando sugar-lhe uma água já extinta. 

Assim que terminei de falar e aguardei pela resposta de Aithne, com certa expectativa que se fazia fraca e impotente em minha mente exausta, o sono me assaltou sorrateiramente, envolvendo-me sem que percebesse. Apesar do cansaço e da expressão perplexa da Aithne, contar-lhe as coisas era quase uma experiência terapêutica, na certeza de que era bem-ouvido...

Um pequeno sorriso abraçou meu rosto quando adormeci.

A espera pela elucidação do que vivi, que a princípio levaria apenas alguns minutos, se estenderia até nossa próxima conversa.

 

 

Os olhos da jovem maga contemplaram o sono profundo do rapaz ao lado. Percebendo que suas palavras já não eram mais apreciadas, as deixou ir, permitindo que reinasse o fraco crepitar do fogo.

Deu um longo suspiro relaxado, os lábios curvados em um pequeno sorriso.

Levantou-se, com movimentos lentos e incertos. Sua atenção titubeou entre Michael, o livro na estante, a cama e a porta do cômodo, até se focar no rapaz.

Ainda lhe era estranho vê-lo deitado com um calmo rosto que parecia ser um dos mais gentis e verdadeiros que conhecera.

Ele não era Flamel. Bastava uma olhadela atenta para atestar isso. Notou o cabelo jogado para trás numa tentativa de ser mais formal, distante do penteado bagunçado de seu antigo amigo. Quando andava, Michael mantinha a postura ereta, com mais confiança e ânimo. Seu sorriso era mais fácil, principalmente sua gargalhada engraçada e calorosa, muito embora por vezes com um toque escondido de melancolia. Flamel era um garoto sonhador, mas triste e cabisbaixo, tímido e quieto.

Apesar de todos esses trejeitos, o que mais se destacava era o sorriso e o choro que vinham da alma. Michael era transparente. Via-se através dele não da forma translúcida e distorcida do plástico, mas da nitidez cristalina do vidro. Ele não escondia o desconforto, a apreensão, a preocupação. Era mais fácil de ser lido que o livro que repousava na estante. Era notável o quanto que o sofrimento alheio, como o dela, lhe atingia o coração

Ainda assim, os olhos dele, que permitem a qualquer um enxergar sua alma, eram astuciosos. Examinavam as pessoas e o ambiente com atenção. Por mais fácil de coração que fosse, não parecia ser muito manipulável.

Em tantas coisas se distanciava de Flamel. Aithne não sabia como ninguém era capaz de perceber isso. Michael nem se esforçava para fingir ser Flamel...

Um sorriso irônico se abriu em seu rosto, embora os olhos o encarassem com admiração. Nos recantos do coração, o luto ainda espalhava suas raízes nos pensamentos, como uma erva-daninha que lhe suga a força e o calor, mas...

“Michael não é tão ruim assim.” Um agradecimento silencioso desabrochou no peito, junto de uma serenidade que tomou conta dos lábios.

Era diferente poder desabafar tanto com alguém. Cada história que contou a Michael era como um peso que esvaziou do coração. Ela nunca teve esse tipo de conforto, sempre solitária. Ou melhor, só com Flamel que...

Escorreu uma lágrima por sua bochecha, passando pelo sorriso tranquilo que se mantinha, até pender pelo queixo e molhar o tapete. Era uma lágrima muda e leve, mas em que pesavam memórias com uma sinfonia própria, repletas de música ao coração, embora, como em toda grande obra, a tristeza e a tragédia compunham parte da beleza.

— Obrigada — sussurrou.

Fitando o rapaz, viu novamente a calmaria em seu rosto. Viu o espaço que sobrava na cama, mais que suficiente para se esgueirar lá, num cantinho que já começava a achar que era seu de direito. Viu a mão aberta de Michael, a mesma que aqueceu seu rosto e que dormiu abraçada...

Quando percebeu os próprios pensamentos, riu de si mesma. Talvez a solidão a tenha feito um pouco carente. Talvez, nos últimos meses em que Flamel se distanciou e se tornou mais sombrio e depressivo, tenha sentido falta de ter alguém com quem compartilhar lágrimas e risos.

Mas, pelo respeito que tinha de si mesma, não se atreveria a mergulhar naquele mar tão convidativo. Não lhe pertencia, e estaria fadada a ver um rosto que, como uma pintura viva de Flamel, sempre a lembraria do que foi e do que poderia ter sido. Sempre a lembraria, por fim, que nem sequer sabe o que ocorreu com quem amava.

A despeito da aparente resolução, os olhos tornavam a fitar o espaço vazio da cama. Mas, mesmo se quisesse, não poderia. Enquanto esteve com Michael, deixou de fazer suas obrigações com a pesquisa de Tokewater, a qual foi convidada a fazer parte como aluna de honra. O prazo final era até a manhã seguinte. Teria que passar a noite inteira estudando. Mesmo assim...

Pegou suas coisas e, antes de sair do quarto, o observou outra vez. Aqueles momentos valeram a pena a noite que perderia. Não havia dúvidas sobre isso.

Mas algo a mais chamou a atenção dela. Embora ele repousasse daquela forma relaxada, o mundo lá fora parecia querer caçar aquela paz.

Com a nova informação de que é Michael no corpo, começava a desconfiar de coisas que julgara ser coincidência, como a Violette. Ela se aproximou dele justo no dia em que acordara nesse mundo. Uma garota como ela jamais conversaria com Flamel, muito menos faria um show de flertes e provocações como aquele na arena. Na verdade, Aithne nunca a viu agir assim com ninguém. Violette estava fora de si, e pouco poderia prever por quê.

Além disso, monstros e coisas misteriosas pareciam circundar os passos de Michael. Não apenas foi perseguido por aquela mulher monstruosa, como encontrou lobos que atacavam um garoto que não deveria estar na Academia, pelo que ouviu de Guinevere. Não só isso, mas também, quando Hayek e Tokewater o encontraram no quarto, ele estava banhado de um sangue cuja mana não era a dele...

A jovem feiticeira suspirou fundo. Não adiantava continuar caindo em devaneios, e precisava ir logo fazer suas obrigações. Mesmo assim, encarando o rapaz, sentiu o coração se apertar, afundado no próprio peito... Seus olhos eram suplicantes, como se pedisse que alguém o protegesse. 

Afinal, ao que tudo lhe indicava...

Ela não era a única a saber sobre a real identidade dele.

E tinha de haver um propósito, brilhante ou obscuro, para que tivesse sido invocado. No entanto, com tantos mistérios e segredos sobre isso, Aithne se inquietava pensando no pior...

Ela abriu a porta e, enquanto a fechava com hesitação, contemplou Michael uma última vez. Ver aquele conforto que se exalava em cada fibra do rosto foi o bastante para a relaxar um pouco da ansiedade.

Em silêncio, desejou que nada rasgasse aquela paz, e se retirou do quarto.

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