O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 32: O que foi que eu fiz?

A voz calma do professor se distinguia muito da carregada de Zanyt. Seu nome era Mekus, professor de Alquimia III. Cada palavra era pronunciada com o mesmo cuidado com que virava cada página, as mãos leves como a brisa, embora repletas de cicatrizes cortantes.

Talvez por causa do dom intelectual de Flamel, conseguia escutar a aula e observar a sala com um bom nível de foco em ambas as atividades. Passei a manter os dois tipos de estudo: um teórico e um outro observador, me contextualizando melhor das pessoas ao meu redor.   

Surpreendi-me com o quão mais relaxado e tranquilo estava o clima da sala. Alguns colegas conversaram, em especial Cyle, sentado atrás de Guinevere, tentava puxar assunto com ela. O rosto da garota não mostrava um conforto tão grande. Parecia meramente suportar a presença dele.

Anna, de cabelos azuis que desciam como molas comprimidas, estava mais animada com a presença dele. Os olhos dela carregavam um certo brilho respeitoso para com Cyle. Até nesse mundo os “valentões” tinham apreço de algumas pessoas, bem como antipatia de outras... Apesar de que o que mais incomodou meu peito foi uma leve pontada ansiosa. Quanto mais Cyle se aproximava e cochichava no ouvido de Guinevere, mais crescia.

Talvez fosse um leve ciúme, talvez um lembrete de que, se eu quisesse algo com ela, não deveria demorar tanto para colocar as cartas na mesa. Ou, ainda, sabendo como é o rapaz, podia ser uma raiva por obviamente constrangê-la a conversar mesmo desinteressada...

Mais provável que fosse um misto de tudo. Mas a Guinevere ainda me era distante para julgar se gostaria de ficar com ela ou não. No momento, me apetecia alguém tranquila e confiável como a Aithne — apesar de que, por eu ter o rosto do Flamel, provavelmente as portas do romance estariam para sempre fechadas —, e a...

Por entre outros alunos, meus olhos alcançaram Violette, que me fitava de soslaio. Nos entreolhamos por um instante. Meu coração pulou uma batida no momento, minha atenção focada somente nas írises violetas dela, que logo saltaram e se desviaram de mim, fugitivas como um gato que é pego roubando comida do prato de alguém.

Uma risada muda abraçou minha face. Violette era-

Flamel — cochichou Dolgan, interrompendo meus pensamentos por completo. — Que preguiça de quando os professores gastam uma aula para fazer revisão...

Foquei em recuperar a linha de raciocínio da aula de Mekus. Apesar de ser capaz de prestar atenção em duas coisas bem, a troca de olhares com a Violette havia me roubado sem que percebesse.

Mekus, como Dolgan disse, resumia o que todos, menos eu, haviam aprendido nas disciplinas de Alquimia I e II. Inicialmente, focaram em estudar propriedades elementais. Por exemplo, folhas de coníferas possuem energia de terra e de gelo — este é uma especialização do elemento água. Raros eram os materiais puros em um elemento. Fazer alquimia era uma prática constante de destilar elementos indesejáveis, tentando neutralizar uma parte de um material com outro.

Em Alquimia II, o foco passou a ser catalisadores. Eles tornam a mistura dos materiais mais rápida e violenta, mas adicionam impurezas e manas elementais diversas na poção. Foi um estudo extenso aprender a neutralizar os efeitos negativos deles.

Tudo se complicava porque o mundo físico não era composto só dos sete elementos conhecidos. Mekus frisava que havia quase infinitos tipos de mana. Por convenção, o homem dividiu toda a mana da natureza em 7 categorias principais, de água, fogo, terra, ar, raio, luz e trevas, embora as duas últimas sejam casos raros.

O fato de isso ser mera categoria humana, criada da nossa cabeça e não da natureza, se revela por haver subelementos. Por exemplo, a categoria água pode comportar incontáveis subelementos, como gelo e vapor. Muitos desses subelementos são misturas de dois ou mais elementos, tal como vapor é fruto dos elementos de água e ar.

Praticamente todo reagente ou catalisador da Alquimia tinha mais de um elemento, às vezes uma mistura de todos. A arte alquímica era complexa e minuciosa: um grão a mais de uma substância e a poção poderia perder todo equilíbrio elemental, arriscando matar alguém ao invés de curar.

Agora, em Alquimia III, começaríamos a colocar os conhecimentos em prática e fazer poções comuns no mercado. 

Sim, não perdi só mais de uma década de educação de magia que todo nobre com certeza teve com os melhores professores, mas perdi também todos os dois semestres de aulas diárias e integrais da Academia.

Apreensão e um pouco de medo fez meu coração vibrar. Se eu fosse o mesmo Michael que veio parar aqui, chegaria à conclusão de que é muito para mim, que seria impossível. Trancaria a porta do quarto e choraria debaixo da coberta. Mas...

Não sou o mesmo Michael. E percebia isso naquele momento em que, com o medo crescendo no meu peito, também se expandia um sorriso no rosto. Um sorriso desafiador, que queria provar até onde conseguiria ir.

Não que tivesse me tornado um nobre guerreiro corajoso. Muito longe disso. É só que... tanta coisa acontecia comigo. Fiz aventuras que jamais imaginei que seriam possíveis. Descobri talentos em mim que transcendiam o que acreditava ser meus limites, como o feitiço duplo. E...

O garoto torturado. Era real demais para uma ilusão. Algo acontecia, e eu era clamado a me tornar forte o suficiente para agir. Além disso, Dolgan, Aithne, Violette e Guinevere. Até Hayek que apostava muito em mim. Não podia decepcioná-los. Não mais.

Era diferente de uma motivação grandiosa. Simplesmente pensava: “e se?”. E se eu realmente pudesse vencer? Se conseguisse chegar no nível de Cyle? Então eu...

Peguei um novo papel do Dolgan e comecei a anotar, concentrado. Até conseguia compreender muito bem o que o professor dizia, mas queria deixar algumas notas de revisão para depois e anotar a bibliografia recomendada. Mesmo lendo rápido, tinha um longo percurso para adquirir todo conhecimento que me faltava — e ainda faltaria a técnica.

Naquele ritmo, a aula rapidamente passou. Só me dei conta quando o professor já finalizava a aula e se despedia. Por vezes, o tempo passa mais rápido e com mais valor quando se está na luta por algo...

 

 

Espreguicei os braços, bocejando com todo cansaço que começava a querer assombrar meu corpo.

Ainda estava na sala, agora praticamente vazia. Dolgan, que se sentava ao meu lado, foi ao banheiro. Na verdade, era hora do almoço e deveríamos ir ao restaurante. Mas quis revisar as anotações para fixá-las bem na mente, o que me fez permanecer na carteira por mais um tempo.

Aaawwnn... — Esfreguei os olhos, removendo as lágrimas que se acumularam no bocejo.

Flamel?

Antes de olhar de quem era a voz, já sabia. Senti uma crescente ansiedade tomar formas de borboletas no estômago, voando e mexendo comigo. Virei o rosto para ela, e...

Violette estava sentada na mesa do lugar de Dolgan. Suas pernas, cujos contornos eram um pouco nítidos na calça bem-ajustada, estavam cruzadas. Os lábios exibiam um pequeno sorriso, com um ar de quem se pergunta como se divertir com um brinquedo novo que ganhou.

— Violette? — perguntei, um pouco surpreso por a ver tão perto.

Naquele momento, perdido no rosto dela, nos contornos do corpo que poderiam ser bem imaginados atrás das roupas formais, notei algo que me fez perder o ar. Ela era muito parecida com a mulher de fogo que havia visto no dia anterior. Seja a forma de olhar, o modo sedutor com que andava, as curvas do corpo que pareciam tão semelhantes, ou os olhos que, embora de cores ligeiramente diferentes, carregavam a mesma intensidade. 

Não entendia como e por quê. Era como se Violette fosse a mesma pessoa que ela, mas mais jovem e com um filtro de cores diferentes.

Talvez notando meus olhos nela, seu sorriso se desabrochou ainda mais. A energia com que ela me contagiava era intensa e envolvente, como o perfume de uma flor de jasmim, distante de uma rosa suave.

— Eu mesma... — Ela riu um pouquinho e se aproximou mais, se arrastando na carteira. Perto o suficiente para ser perigoso. — Senti sua falta...

— Minha falta? — falei, sem realmente pensar.

— Sim. E... — Jogou seu corpo para ainda mais próximo, até estar sentada na minha carteira, encarando-me de cima, como se estivesse no meu colo. Os olhos dela se tornaram mais amenos e relutantes em mim. — Desculpa pelo nosso duelo, eu...

Apesar da súbita transformação das emoções dela, não pareceu ser falsa. O rosto todo mostrava certo arrependimento. Não tinha pensado muito no duelo, mas sei que os cortes foram superficiais... o que não mudou o fato de que arderam como ferro em barras na pele. 

Mesmo assim, não a julgaria. Não poderia julgar a garota que chorou no meio da luta, num estado de caos, hesitação, incerteza e súplica. Ela era uma bagunça no duelo.

Não que eu não fosse uma bagunça desde que vim parar aqui. Não, desde muito antes.

— Está tudo bem. — Sorri, um pouco tímido, mas acariciei seu antebraço, tentando confortá-la. — Reparei que no começo você estava explorando minhas aberturas sem destruir a batalha em um segundo. Estava tentando me treinar, não era?

Violette abriu os olhos de uma forma que tive certeza que seu coração havia dado um pulo. Ela desviou o olhar, tirou uma mecha de cabelo que escondia o pescoço alvo e falou meio sem jeito:

— Você estava cheio de falhas...

— Eu sei. Nunca lutei com uma espada antes — disse novamente sem pensar, mas imediatamente me arrependi. Ela me encarou com surpresa, e tive certeza que mais uma pessoa saberia que não sou o Flamel. Merda...

— É verdade. Nunca pensei nisso, mas você tinha sido criado para ser o próximo barão da Casa Vandutch, não é? Sempre estudando administração, finanças, fugindo do mundo da luta... Uma sacanagem o que seu irmão fez com você, não é? Você teria sido um excelente barão.

Senti meu corpo se congelando. O Flamel tinha um passado assim? A falta de treinamento explicaria o porquê daquela obstrução de mana não ter sido resolvida e de todos o chamarem de inútil. Mas exatamente o que aconteceu entre ele e o irmão?

Começava a entender melhor o que Aithne me disse quando me apanhou treinando sem dormir. Seria uma disputa pela herança do baronato ou algo mais profundo?...

Tive que evitar mostrar a minha dúvida, senão Violette poderia perceber minha máscara. Já era surpreendente que não o tivesse feito.

— A-acontece — tentei esboçar qualquer resposta convincente. — Agora estou aqui, de toda forma...

— E você realmente está aqui... — Ela aproximou o rosto dela ao meu, perto o suficiente para sentir sua leve respiração quente acariciando minha face. — E não desistiu depois de tudo, não é? É digno de admiração. — Os olhos dela fisgaram os meus.

— Se você diz... — Quando criança, nunca entendia as histórias sobre marinheiros que eram atraídos ao fundo do mar quando ouviam a doce melodia das sereias. Agora, porém, encarando seus olhos, fitando os lábios avermelhados dela que pareciam tão macios, começava a entender o real significado daquelas lendas.

— Você mudou desde o nosso duelo — falou, repousando uma mão sobre a base do meu pescoço. — Seus olhos amadureceram.

— Meus olhos? — Engoli em seco, ainda sem saber se deveria recuar, avançar ou simplesmente conversar.

— Sim... seus olhos. — As írises dela brilharam como se fosse uma ametista cintilante, encarando minhas pupilas como se pudesse ver através delas.

Agora que estava mais versado em magia, pude sentir uma mana intensa provindo dela. Era uma mana... sufocante e egoísta?... Talvez egoísta não fosse o termo certo... Era como se tentasse sugar tudo que via para dentro de seu olhar, como se tentasse rasgar uma resposta do mundo.

O dedão dela acariciou meus lábios, brincando com eles. Como se satisfeita, seu sorriso cresceu e um leve suspiro atravessou o nariz. Voltou-se um pouco para trás, criando uma distância maior entre nós.

— Gosto de como você nunca mais me perguntou sobre o brilho nos meus olhos. — Todo aquele perfume intoxicantemente sedutor se desfez com um sorriso caloroso. Aproximou-me de mim outra vez e plantou um beijo suave na minha testa. Os lábios dela eram bem macios e úmidos... — Obrigada.

— Não planeja me revelar a verdade? — Fitei os olhos dela quando se distanciou e retirou a mão do meu pescoço.

— Me arrependi. Agora quero um reembolso pelo beijo.

Ri e me deixei cair na cadeira.

— Sem reembolsos aqui. — E, sentindo o coração cavalgando, ousei continuar: — Mas posso te dar um beijo em troca. Assim ficaríamos quites, não?

— Mas que mecenas safado esse, roubando minha arte e a usando contra a criadora descaradamente? — O rosto dela cintilou com um toque de diversão e surpresa, meio desafiada. A face dela ficou com um toque mais roseado. Senti minha pele formigar por todo corpo...

— Talvez. Mas terá que se esforçar mais na sua arte. A julgar pelas suas bochechas avermelhadas, creio que já consegui extrair bastante da técnica da minha mestra, não é?

— Parece que alguém acordou ousado hoje. — Ela riu e esticou a coluna, jogando o cabelo todo para trás enquanto o movimento fazia a roupa se esticar contra os seios e a barriga. Ela era realmente parecida com a mulher do fogo... Porém, logo os olhos dela se conectaram aos meus com uma seriedade escancarada em meio à euforia. — Mas está disposto a assumir a responsabilidade pelo que provoca?

Engoli em seco e cada batida do coração foi forte como um trovão. Abri os lábios, porém o que diria? Apesar de toda tensão e da forma como ela me fazia sentir, não parecia a melhor garota para se ficar. Ela apenas se divertiria comigo, ou iria querer algo sério? Era muito, muito tentadora, mas a que custo? Queria segurança e conforto, jogado nesse mundo como fui, e não estava disposto a trocar isso por uma aventura que me levaria a um final solitário.

Respirei fundo, recobrando o controle sobre mim. Percebendo minha reação mais fria e distante, o sorriso de Violette murchou como uma flor sensível que parou de ser regada. Era incrível como conseguia me ver nas entrelinhas, mesmo sem nada pronunciar. 

Por um instante, as írises dela brilharam outra vez, com o mesmo destaque da lua reluzindo no céu noturno. Começava a ficar claro para mim que ela via meus pensamentos. Mas, se me chamava de Flamel, não poderia ser exatamente isso. Então era meus sentimentos que lia?

Querendo provocá-la um pouco e conseguir alguma informação, lancei:

— Gostou do que viu?

Ao invés do sorriso desafiado que ela costumava exibir quando confrontada, Violette suspirou fundo, a face triste e decepcionada, antes de apertar os lábios e me encarar fria como gelo.

— Nem um pouco. — Suas palavras foram ríspidas, me atingindo como um balde de água gelada na face.

— E-eh?

— Desculpa. — Ela se levantou, bateu o pó inexistente das roupas, como se procurasse alguma coisa para se distrair do constrangimento, e tornou a andar para a direção da saída. — Preciso ir comer. Você também.

Tudo aconteceu muito rápido. Quando percebi, estava sozinho na sala. Segundos, minutos se passaram, mas ela não retornou. Ela realmente foi embora, súbita daquele jeito.

— O que foi que eu fiz?...

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