O Mestre da Masmorra Brasileira

Autor(a): Eduardo Goétia


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 14: Nascimento, habilidades e magia


Eu sei que eu já existia antes, mas apenas considerava o começo da minha vida no dia que recebi um nome.

— Aa-aaron... — Quando eu falava, parecia mais um rangido de ossos. Era o único som que eu conseguia fazer soar.

— Aaron, vá buscar algum coelho no quarto andar. Preciso dos chifres dele para fazer uma experiência — escutei uma voz atrás de mim, apesar de não ter ouvidos.

Era Gleen, o segundo em comando. Bati com os ossos e caminhei lentamente na direção do terceiro andar. 

Aparentemente, Gleen tinha o respeito do mestre. Alguma coisa sobre ele ter derrotado um poderoso adversário e protegido a masmorra sem uma única baixa.

Que legal...

Ele parecia ser um bom chefe e, como o mestre disse para obedecê-lo, nunca me passou pela cabeça sequer pensar em não ouvir.

Gleen também foi o primeiro a receber um nome e também ganhou recompensas e elogios do mestre...

Que inveja...

Ah! E sobre ele, o mestre. Eu tive poucos vislumbres de sua aparição. Faço parte da vanguarda, então estou sempre do lado de fora caçando e rondando a região.

Mas de uma coisa sei: o mestre é incrível!

Espero um dia poder ser recompensado dessa forma. Se eu tivesse um sorriso, ele estaria enorme nesse momento. 

Após um bom tempo de caminhada, encontrei o círculo mágico e apareci no terceiro andar. Assim que surgi, tive que dar um salto para o lado.

Ninguém gostava muito de subir até o terceiro andar, mas era obrigatório passar por ele para chegar ao quarto.

— Argh... — tentei fazer soar minha voz em vão. Até se conseguisse, o monstro na minha frente não entenderia nada.

Lá estava um esqueleto. Em aparência, nós dois não éramos muito diferentes, entretanto eu tinha consciência e ele era uma marionete que apenas atacava o que visse pela frente.

Depois do primeiro golpe, ele não atacou outra vez. Ficou ali parado me observando com aquele par de olhos vazios e escuros.

Acho que alguém que visse essa cena acharia graça. Poderiam até brincar: “Olha, dois esqueletos flertando.”

Pensar nisso me causava até frieza nos ossos.

— Argh! — Com o bater dos meus ossos, ele saiu da frente com um passo para o lado.

Esse andar tinha um aspecto mais cinzento e escuro, com árvores rasas e pedras afiadas onde os esqueletos foram estrategicamente colocados.

O esquema desse andar era muito bem pensado. Havia guardas que circulavam aleatoriamente por aí e outros que ficavam de guarda em um único lugar.

Tudo foi organizado pelo Glenn. Eu ficava cada vez mais fascinado pelo conhecimento dele.

Depois de mais algumas esquivas e passagens perigosas, finalmente cheguei ao círculo mágico.

Quando estava prestes a tocá-lo para prosseguir, um outro esqueleto se interpôs na minha frente.

— Argh! — exclamei, porém ele não se moveu. Ele ergueu o grande pedaço de osso e correu na minha direção.

Pulei para o lado pelo ataque súbito e tentei outra vez gesticular ordens, mas ele continuava a me encarar com os buracos negros vazios.

Então vai ser assim? Você quer um duelo? 

O mestre não disse nada sobre uma situação dessa, mas ele odiava traidores. 

Acredito que ele não vá se importar de eu matar esse.

No próximo ataque dele, eu não desviei. Saltei com meu corpo para frente e bati ossos contra ossos.

Minha força e resistência eram extremamente superiores. Ele não teve nem chance; caiu no chão desmontado.

— Urf! — Soltei um som de satisfação e vitória e quase baixei a guarda.

De repente, os ossos remontaram e ele estava de pé de novo. Era a primeira vez que via isso. Se eu tivesse um rosto, ele estaria demonstrando uma expressão de surpresa.

Então ele tem alguma habilidade ativa...

Encarei o adversário outra vez. Agora não agiria com tanta sutileza quanto antes. Coloquei minha arma rente ao corpo e ajustei minha postura.

Ele correu na minha direção outra vez, colocando o seu corpo inteiro contra o meu, mas eu não recuaria.

Recebi de frente e contra ataquei com um poderoso golpe frontal, jogando-o outra vez contra o chão.

A cabeça dele rolou pelo chão terroso separada do corpo, porém os buracos vazios ainda me encaravam.

Os ossos sem cabeça se levantaram do chão e correram para pegar a cabeça de volta. Vendo eles tentarem se reconstruir, interceptei e acertei um golpe jogando a cabeça longe.

Então com um golpe de baixo para cima no peito, joguei-o o corpo sem cabeça no chão.

Como venço esse cara?

Ele estava paralisado sob meu corpo e tentava fugir. Desmontei seu corpo, mas ele sempre voltava ao normal.

Depois de separá-lo mais uma dúzia de vezes, eles começaram a se reunir ainda mais rápido que antes. Na verdade, tive que dar um pulo para trás.

O osso da perna dele se quebrou e voou em minha direção como uma lâmina. Se eu não tivesse desviado, teria perfurado meu coração! 

Apesar de eu não ter um coração.

Era realmente algum tipo de habilidade e agora estava mais forte do que antes. Logo o osso quebrado também se reuniu ao resto do corpo.

Ele não se regenerou; apenas se encaixou na posição correta e ficou.

Ficando de pé, o esqueleto me pareceu ameaçador. Entretanto ele não atacou logo em seguida. Ficou buscando pela cabeça perdida.

É isso!

Se eu tivesse um rosto, com certeza ele teria um olhar convencido agora. Eu sabia onde a cabeça estava e corri até lá.

Vi a cabeça no chão rangendo os ossos. Ele não poderia ser imortal, então havia um centro de controle: a Pedra de Mana. 

E, sabendo que ele era um esqueleto, havia apenas um único lugar onde poderia estar. 

— Ca-cabeça... — Rangi os ossos até o som sair. — Arghk Arphmkr — Se um humano entendesse a língua dos esqueletos saberia que eu disse: “Ataque Aprimorado”, apesar de que esqueletos não falavam.

Busquei uma pedra pesada e bati contra a cabeça no chão até que se quebrou em pedacinhos junto da pedra de mana.

<<Você subiu de Nível>>

Rangi os ossos como se estivesse gargalhando. A vitória tinha um gosto bom. Estava começando a pegar gosto por esse tipo de coisa: duelos.

Antes de partir, precisava recuperar minha energia perdida e também era preciso descobrir do que se tratava aquela habilidade do esqueleto.

Então coloquei minha mão sobre os seus restos mortais, apesar de que ele já era um bando de restos quando ainda estava vivo. Bem, retirando isso da mente, usei minha habilidade.

— Rghhhhhh — Se um humano entendesse a língua dos esqueletos saberia que eu disse: “Absorção de Ossos”, apesar de eu não ter língua.

De repente, o corpo do esqueleto morto desapareceu sendo sugado para dentro do meu corpo. Todo meu cansaço e danos desapareceu, além de eu sentir um aumento repentino na força do meu corpo.

Por fim, uma mensagem ressoou.

<<Habilidade Manipulação de Ossos Rara Adquirida>>

Oh! 

Era essa então a forma com que ele manipulava tão bem os ossos do próprio corpo. Sujeitinho sortudo ele, mas agora a sorte dele era minha.

Se eu tivesse olhos, eles estariam brilhando com arrogância. 

— Argh! Argh! — Meus ossos batiam enquanto eu tentava gargalhar.

De repente, notei que estava gritando sozinho dentro do andar. Ainda bem que ninguém além dos esqueletos viviam por aqui, senão não saberia onde enfiar minha cara...

Apesar de eu não ter cara...

❂❂❂

Havia um coelho, o primeiro que Kayn levou para a masmorra, que se acostumou a viver no segundo andar e achava a comida de lá muito mais gostosa, então, sem ninguém saber, descia os andares para roubar comida.

Para chegar lá, ele precisava atravessar o terceiro andar secretamente. Naquele dia específico, ele teve uma visão incomum.

Um esqueleto colocando as mãos na cintura e batendo com ossos enquanto olhava para cima.

Desde então ele nunca mais desceu para se alimentar no segundo andar.

❂❂❂

Finalmente chegando ao quarto andar, eu me deparei com uma pastagem rala, pequenas flores no chão e árvores baixas.

O quarto andar era, de longe, o meu lugar favorito da masmorra. O campo de flores onde o círculo mágico de entrada ficava era simplesmente maravilhoso!

Além disso, ele possuía lagoas refrescantes. Em um dia quente, eu poderia vir até aqui para me refrescar, apesar de eu não sentir calor ou frio.

Continuei meu caminho andando devagar, sentido a brisa bater contra meus ossos e quase escutando pássaros a cantar, se houvesse pássaros neste andar...

Estava para esquecer o objetivo da missão, mas o pequeno coelho chifrudo pastando na minha frente me lembrou da missão.

Eu adorava a masmorra. Os divertidos goblins, meus burros irmãos esqueletos, a vida cotidiana, Gleen e o Mestre.

Adorava caçar quando o sol surgia no céu e amava ver os rostos alegres dos seres vivos, além dos comuns duelos que eu tinha.

Era o que eu mais estava pegando gosto. Algo tão intrínseco dentro de mim que, mesmo antes de ter consciência, já sabia dessa paixão correspondida.

Entretanto nem tudo era um mar de ossos. Meus inimigos mortais também eram meus companheiros, meus vizinhos.

Eles latiam continuamente e sempre tentavam morder meus ossos. Aqueles cachorros imundos que assombravam o meu lugar especial. 

Eu odeio cachorros.

Eu corria como um louco na direção do círculo mágico, carregando duas carcaças de coelho nas costas. 

Saltei por um galho e despedacei completamente as pequenas flores rosadas que batiam baixo no pé.

Logo atrás de mim, os lobos terminavam de devastar todo o chão. Eles sentiam o cheiro de sangue ou talvez apenas gostassem de roer meus ossos.

Prossegui em minha desesperada fuga. Se eu tivesse um coração, ele estaria saltando pela boca!

Apesar de eu também não ter boca. 

Finalmente estava alcançando o círculo mágico, mas a gigantesca alcateia continuava no meu encalço. Se eu pudesse gritar, estaria chamando desesperadamente pelo mestre.

Oh! Mestre, salve-me deste destino cruel! 

Embora fosse um pouco embaraçoso... contudo não importava. Era melhor viver na vergonha que morrer na boca de um lobo.

Em um salto pela minha vida, pulei no círculo mágico enquanto sentia a baba de um dos lobos cair sobre os meus ossos.

Quando reabri os olhos, suspirei aliviado. Havia apenas o bom e velho andar pedregoso e com árvores ralas. Aquele aspecto cinzento do andar nunca me foi tão confortável.

Fiquei de pé, colocando ambas as mãos na cintura. Uma aura arrogante cobriu meu corpo e outra vez gargalhei aos céus, vitorioso! 

— Argh! Argh! — Meus ossos batiam.

❂❂❂

— Bom trabalho. Pode voltar aos trabalhos diários. 

— Argh! — Meus ossos bateram enquanto entregava os coelhos para o Gleen.

Com um leve cumprimento, deixei ele sozinho. Já estava bem tarde e a maioria dos monstros haviam ido dormir.

A maioria diria que agora era minha hora de descansar após um difícil dia de trabalho, porém, como um soldado de ossos, eu nunca descansava.

Fiquei de guarda no círculo mágico entre o primeiro e o segundo andar. A mata estava calma e agradável.

O vento passava por entre meus ossos e a noite caía ainda mais, surgindo a escuridão junto dela. O ambiente era extremamente divertido para um esqueleto.

Oh! Eu sou um fantasma! Buuuh!

Por ficar brincando, acabei não notando, mas eu estava lentamente começando a entrar em uma profunda escuridão. Talvez fosse assim que as pessoas dormissem.

Sabe, sonhassem...

Eu não sabia que esqueletos sonhavam, mas eu aparentemente conseguia fazer isso.

Na minha frente estava parado um homem. Ele tinha uma altura um pouco abaixo da média,  mas possuía um corpo forte e um olhar que até me causou arrepios.

Uma forte vontade queimava em seus olhos e por toda a sua fibra.

Usava uma armadura que cobria o corpo inteiro em várias camadas sobre camadas em uma cor vermelha forte. Um elmo acobertava toda a sua cabeça e pescoço, além de uma máscara demoníaca que cobria seu rosto.

Olhando para os buracos escuros da máscara, via apenas o mais profundo abismo e, quando mais eu olhava para ele, mais ele me olhava de volta.

Por fim, começou a se mover com sutiliza. Uma das mãos moveu-se em direção a cintura e puxou da bainha uma lâmina longa, fina e afiada de um único gume.

Pôs-se ela em posição perpendicular ao próprio corpo e, para seguir seus movimentos, realizei o mesmo movimento.

Como se fossemos a mesma existência, cortamos para baixo. Meu movimento foi simplista; o único ato de descer os braços, mas o dele foi sucinto, limpo e poderoso, demonstrando as milhares, ou até milhões, de vezes que o realizou.

Fiquei encantado por aquela imagem, aquele homem poderoso. Não teria chance alguma contra ele, ainda assim desejava poder um dia desafiá-lo para um duelo...

A cena então foi desaparecendo como uma miragem dos meus olhos e eu estava de volta a masmorra, olhando para o círculo mágico.

Aquela foi uma experiência única desde meu nascimento e eu a guardaria no coração, principalmente a cena do homem cortando com aquela lâmina de um único gume.

Uma técnica tão majestosa e simples. Combinava comigo.

Apesar de eu não ter coração para guardar.

No dia seguinte, visitei Gleen e ele tinha um olhar entusiasmado. Eu havia visto aquele olhar poucas vezes e a maioria delas envolvia o mestre.

Será que o mestre voltou?

Argh! — Rangi os ossos e ele pareceu ter me notado.

— Venha aqui, Aaron — disse ele erguendo um dos braços e me chamando. — Eu descobri algo incrível.

Cheguei mais perto e ele me mostrou um círculo mágico todo confuso e no centro estava o chifre de um dos coelhos.

— Para poder fazer, preciso usar um chifre inteiro, mas é apenas um começo! Veja, Aaron!

Ele colocou a mão sobre o círculo e uma faísca estralou. Um momento depois, duas, três, quatro, cinco faíscas e então... 

Boom!

O chifre explodiu em pedaços e foi completamente destruído. Eu fiquei parado ali sem entender nada.

— Viu, Aaron! Eu consegui usar magia!

Encarei o rosto entusiasmado dele e apenas bati palmas enquanto ele balançava meus ombros e pulava de um lado para o outro.

Ainda bem que eu não tinha rosto, porque senão ele estaria entregando os meus pensamentos.

Isso não foi uma falha completa?

Como para responder minha pergunta, Gleen abaixou-se e começou a recolher os cacos do chifre quebrado e a refazer o círculo mágico.

— É uma falha, eu sei, mas você viu as faíscas, não é? Eu não considero isso como um fracasso, apenas considero um avanço no caminho certo. Agora sei que há algo errado e que posso consertar. Eu não fracassei, apenas descobri uma nova forma de não fazer fogo; só preciso continuar tentando e vou chegar lá!

Vendo a determinação dele, eu não poderia zombar da sua cara. Assenti com a cabeça e fiz alguns gestos com as mãos para ele.

— Você quer buscar mais chifres de coelho para mim?

Balancei a cabeça afirmativamente. Sorrindo, ele colocou a mão sobre o meu ombro e agradeceu.

— Argh! Argh! — Meus ossos bateram enquanto eu, outra vez, andava na direção do quarto andar.

O trabalho nunca acaba! 



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