O Mestre da Masmorra Brasileira

Autor(a): Eduardo Goétia


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 15: A Vila Destruída

Quando acordei de manhã, estava tudo bem. Nenhum monstro ou animal parecia ter se aproximado. Foi uma decisão ruim? Até poderia ser, mas estava tudo bem.

Logo que levantei, Cristal também despertou, espreguiçando devagar e, em seguida, abanando o rabo.

— Hoje o dia vai ser longo. Primeiro precisamos comer. 

Assim que falei em comida, ela já ficou animada. Trouxe comigo alguns mantimentos, porém eles não durariam muito, então era melhor caçar um pouco.

Na realidade Cristal é quem caçaria, pois suas habilidades de rastreamento e abate eram muito superiores as minhas.

Acabei por notar uma coisa. Durante a noite, eu não senti frio. Mesmo que não estivesse congelando, não sentir nem um calafrio era muito exagero.

Por isso olhei para a fogueira que havia montado e surpreendentemente havia apenas brasas terminando de queimar.

Será que os gravetos deram certo e eu não vi? 

Um ronco alto do meu estômago soou, então parei de pensar naquilo e olhei para a loba.

Acima de qualquer coisa, ela era um animal feito para a caça. Seus sentidos eram bons, principalmente o olfato e a audição.

Observei enquanto ela cheirava e escutava em todas as direções, andando de um lado até outro e buscando por um alvo.

Isso continuou até que sua orelhas se voltaram para mais longe, ao leste de onde estávamos.

— Achou algo? — perguntei, mas ela estava estranha. — Cristal, o que foi?

Os seus olhos ficaram mais vermelhos, todo o seu pelo branco se arrepiou e as unhas saíram para fora. Os dentes afiados foram postos para fora e ela correu em alta velocidade na direção que suas orelhas apontavam.

Eu nunca havia a visto assim.

Rapidamente corri atrás dela por entre árvores, moitas e pedras. Sendo um pouco mais rápida e muito mais fluída, ela pegou uma distância considerável. 

No entanto não deixei que ela sumisse da minha visão. Logo, entendi o porquê daquela aparência de combate.

Ao longe, logo abaixo de um declive considerável do terreno, havia um pequeno vilarejo com não mais que vinte cabanas de madeira.

Pulei uma altura de mais de cinco metros no declive e corri na direção do vilarejo. Um cheiro estranho começou a assaltar minhas narinas.

— Ferro... — Tinha uma certa semelhança com o cheiro de ferro, mas era mais forte, mais pesado, mais embriagante.

Notei até que minhas presas, que normalmente ficavam ocultas entre os dentes, tornaram-se maiores e buscavam intensamente por aquilo.

— Sangue... cheiro de sangue morno.

Quando me aproximei mais, tive a confirmação. Encontrei um corpo no chão. Ele estava cortado em vários pontos, mas ele era anormal.

Não era o corpo de um humano ou animal, mas sim o corpo de um monstro humanoide com mais um tamanho três vezes maior que o meu.

Uma pele de cor rosada, musculoso, barrigudo e uma cabeça de porco careca.

— Um orc. — Conclui por meio das informações.

Além dos cortes, consegui ver uma grande marca na sua cabeça. Provavelmente morto por esse golpe.

— O que teria força suficiente para esmagar o crânio de um orc?

Continuei seguindo em frente. Estava cheio de preocupação. Cristal desapareceu nessa direção e havia algo muito forte por aqui. 

Escondi minha mochila e só trouxe itens essenciais. Algumas poções e minhas três lanças que coloquei nas costas.

Corri então na direção do vilarejo. Conforme me aproximava, mais e mais o cheiro de sangue e os corpos aumentavam.

Havia também uma diferença nas roupas e nos corpos, mostrando que eram dois grupos diferentes de orcs. 

— Uma guerra civil? Não. Orcs tem bandos e eles apenas se unem; eles não guerreiam entre si. O que está acontecendo aqui?

Finalmente, cheguei ao vilarejo e fui recebido com uma surpresa. Assim que cheguei nos muros altos de madeira que ficavam ao redor, vi os amontoados de corpos.

Eu não senti vontade de vomitar, mas minhas presas de vampiro saltaram para fora e minha garganta secou.

— Que merda é essa? 

Eu estava sentido sede. Uma sede incontrolável pelo sangue daquelas criaturas. A confusão me abateu por aquele sentimento que nunca tive antes.

Controlando minha sede, tentei dar um passo para frente, mas mal pude terminar!

Repentinamente, um poderoso impacto me atingiu, arremessando meu corpo contra um dos muros de madeira do vilarejo.

— Argh! — O meu grunhido de dor soou enquanto cuspia um pouco de sangue.

Levantei e olhei na direção do ataque, vendo o meu agressor parado de pé. Era um enorme Orc de pele rosa. Imediatamente tentei ver sua tela de status, mas não tive êxito.

Sem outra alternativa, puxei minha lança, entrando em posição de combate. 

O grande gordo me observou; também partindo para o ataque logo em seguida. Aqueles nojentos olhos de porco me encaravam.

— Venha, criatura grotesca.

— Orkchi! 

Até os sons que fazia eram grotescos. Ele bateu com o grande taco de madeira na minha direção, mas consegui desviar.

Ele avançava sem medo e eu apenas desviava com medo de tomar uma única porrada e ir conhecer o outro mundo pela segunda vez.

Logo, ganhei mais confiança. Ele era grande, forte, mas burro e lento. Comecei a contra atacar. Ele sempre repetia os mesmos ataques.

Batida de lado, batida por cima, batida pelo outro lado; quase como robótico. Quando reiniciou sua série de ataques, pulei para à esquerda.

Desta vez corri por debaixo do seu longo braço gordo e perfurei a base das suas costelas. Prendi a lança com força e dei-lhe mais três estocadas antes que conseguisse me acertar um golpe.

Ainda que a habilidade Maestria com Lança estivesse no nível 1, tê-la já era um apoio incomensurável.

Porém o golpe ainda veio!

Quase como se eu fosse explodido em uma direção por uma granada, sai rolando para trás pelo impacto do golpe. Quando parei, levantei a cabeça, cuspi o que eu achava ser uns dois dentes, ou talvez um órgão interno e limpei meu rosto sujo de terra e sangue.

A criatura gritava de dor pelos meus ataques, junto disso, e do poderoso golpe que levei, minha cabeça parecia prestar a explodir de dor, porém me levantei de novo. 

— Gostou disso, seu porco...  — Puxei fundo e cuspi sangue na direção dele com um sorriso vermelho surgindo do meu rosto.

Outra vez, entretanto, meu corpo foi atingido por um impacto pelas costas e saiu voando, batendo contra uma das casinhas de madeira que despencou sobre mim.

Antes ainda havia alguma dúvida, mas agora eu tinha certeza: alguma coisa quebrou no meu corpo.

Merda! Merda! Como poderia ser acertado de surpresa outra vez?

Levantei respirando pesado e com o sangue escorrendo do meus fios negros, descendo pelo rosto e pingando no chão.

Além dos dois Orcs que me emboscaram, mais um se aproximava, totalizando três deles. Eles pareciam rir de mim.

— Estão rindo do que, feiosos? — Aparentemente não gostaram do meu insulto, já que correram enfurecidos na minha direção.

Sem escolha, levantei e comecei a correr na direção oposta. Passei de uma cabana para outra e eles atravessavam por dentro das casas de madeira como se não fossem nada.

Claro. Eu entrava por um lado e saia do outro, mas eles quebravam elas como rolos compressores de gordura e músculo.

Quando estava para derrubar a quinta casa, dei um salto na direção contrária e os grandões passaram correndo sem perceber que escapei.

— Ufa! — exclamei pelo minuto de descanso.

Parei para respirar, bebi uma das poções e esperei. 

Preciso descobrir uma forma de achar Cristal e dar o fora daqui antes que mais deles apareçam.

Me sentia profundamente humilhado naquela situação, no entanto minha vida valia mais que uma vingança idiota.

Aquilo era claramente uma guerra. Talvez pudesse vencer um deles, mas três? Era loucura. Poderiam me chamar de covarde, mas o covarde morreu de velho. 

O ditado não era esse, mas cabia perfeitamente à mim.

Estava levantando para dar o fora dali, mas escutei sons de luta e uivos.

— Cristal...!? 

Passei por entre os escombros do lado e fora e vi: Cristal, um grupo de orcs em um círculo protegendo uma casa, uma bela senhora de pele rosa em um vestido branco sujo de sangue e uma outra que parecia uma cópia sua mais nova.

Aquele grupo de orcs era um pouco menor em estatura e Cristal os estava defendendo.

Do outro lado, o dobro do número e havia um líder ainda mais gigantesco. Ele era duas cabeças mais alto que os demais, possuindo uma cabeleira loira rasa na cabeça.

— Um nobre?! — Meus olhos só poderiam estar me enganando. Não era possível. 

Dentro de Vangloria, havia um ditado. Se você viajou para o oriente e não morreu para um Orc Nobre, então você não viajou para o Oriente.

Um orc era um monstro voltado para o combate. Corpos grandes, robustos, gordos e uma força destruidora do mesmo nível, senão maior, que o de um Campeão.

Sendo dessa forma, eles eram o prelúdio da destruição. Reproduziam-se, devoravam, guerreavam, matavam. Um ciclo interminável.

Entre eles, havia os nobres. A força de elite. Maiores, mais fortes, mais inteligentes. 

Agora sei o que afundou o crânio daquelas criaturas.

A classificação dos orcs como monstros comuns sempre me deixou louco em vangloria. Como um orc poderia ser tão mais poderoso que outros monstros comuns?

Contudo isso não era nada se comparado aos nobres. Aquilo era simplesmente absurdo demais. Poder bruto, facilidade de se reproduzir, comando relativamente inteligente, com tantas características, eles não perdiam para nenhum monstro Heroico ou até Épico em capacidades.

— Como uma criatura dessas pode ser classificada como Comum?

Monstros comuns tinham um limite claro de estatísticas. Mesmo alcançando o máximo do seu grau, havia um limite para monstros comuns.

Entretanto isso não acontecia com os orcs nobres!

— Como uma criatura dessas pode ser classificada como Comum? — Tudo se tratava de potencial e genética.

O lobo branco possuía menos da metade das estatísticas de um Goblin Campeão, mesmo esse sendo classificado abaixo em raridade.

Porém, sua capacidade de aprendizagem e a velocidade com que as suas estatísticas subiam era extremamente maior.

Nobres, por outro lado, não ficavam muito mais fortes após nascer. Claro, caso evoluísse, as coisas mudavam de figura, mas era praticamente impossível.

Os cabeças de porco normais tinham uma chance em um milhão de virar nobres; imagine um nobre conseguir ascender ao reinado; improvável, senão impossível! 

Ah! Reis! Reis, reis, reis! Esses sim me preocupavam. Eu odeio Reis!

Na realidade, odiava qualquer monstro que tivesse algum tipo de cargo de liderança absolutista.

Eram os piores! Nunca leais; sempre com ideias na cabeça...!

Mas agora não era hora para isso. Com uma análise rápida da situação, reuni coragem para me aproximar. 

Cristal parecia lutar em favor daqueles em menor número no círculo. Eles também pareciam apoiá-la constantemente.

A batalha entre eles estava ficando cada vez mais brutal. Um orc foi pego desprevenido fora de posição e sofreu um ataque bárbaro.

Seus braços e pernas fora retalhados em pancadas enquanto ele clamava pela morte. O som que soava era assustador. Vendo aquilo, quase quis dar meia volta.

Segui por detrás. Ainda continuava escondido e observava. Ser cauteloso era uma obrigação. A bela mulher dava ordens, incentivava e ajudava os feridos.

Quando cheguei mais perto, consegui ver um par de orelhas incomuns. Eram rosadas, caíam por seus longos cabelos dourados.

— Orelhas de porco? — Não eram desagradáveis de se ver; na verdade, eram bem encantadoras, mas por que ela as possuía? 

Em certo ponto, percebi que aquele combate já havia acabado. O número de inimigos passou do triplo dos aliados. Eles não tinham mais chance de revidar.

Eu precisava urgentemente fugir dali com Cristal. A loba continuava lutando e defendendo os caídos. Ela pulava com agilidade entre as dúzias de inimigos. Sua velocidade me deixou boquiaberto.

Porém ela não era invencível. Estava ficando cansada e ferida, logo não aguentaria mais. 

Cheguei mais e mais perto, até que um grito soou:

— Mãe!!! — A bela mulher foi capturada. Aquela que possuía uma aparência parecida era quem havia gritado.

Um orc segurava a beleza e a levava com passos pesados pelo chão de terra até o orc nobre. 

Ele jogou-a nos pés dele e voltou. O embate parou por um momento e todos passaram a observar.

— Orcki Ourki Arcki! — Os sons pareciam com gemidos incompreensíveis, mas eu conseguia entender a sua essência.

Ele dizia: “Agora você me pertence. Tentou fugir de mim, mas eu te achei.” Ele falou sobre uma situação estranha. Algo sobre Rei, traição e fuga.

A mulher apenas encarou-lhe com raiva aparente na sua face. Ela o desprezava profundamente e cuspiu no seu peito, recebendo em troca um único tapa no rosto.

— Eu sou livre. — A beldade levantou o rosto sem temer. Seus olhos encontraram diretamente com os do nobre e, sem medo, ela decretou: — Eu escolho como morrerei!

Repentinamente, sangue escorreu da sua boca. Mordeu a própria língua. O chão foi pintado de vermelho e a expressão do nobre escureceu-se profundamente; entre surpresa e fúria.

Nunca antes havia presenciado algo, ou alguém, fazer tal rosto demoníaco. Se o mais profundo ódio tivesse um símbolo, seria o daquela face.

Ele devorou brasas ardentes.

A raiva lhe consumira por dentro de tal forma que chegou a me assustar.

— AROKI! — Aquela expressão dita por ele não poderia ser traduzida para uma linguagem humana. Não existia uma palavra específica que a definia.

Contudo, traduzindo diretamente o mais literal possível, seria algo como: “Filha de uma Puta, Desgraçada!”



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