Volume 1
Capítulo 9: Melhora
Todo o meu corpo transpira enquanto sinto meu coração acelerado, a respiração ofegante chegou ao ponto de deixar minha garganta seca. Em minha mão direita, a espada de mithril foi posicionada para uma guarda simples, principalmente pela incapacidade de usar o braço esquerdo como apoio efetivo. Na minha frente um demônio disfarçado de mulher se encontra apenas parada, seu olhar não ostenta nada além de desdém. Meu objetivo durante todo o meu dia foi apenas acompanhá-la, mas tudo se complicou assim que eu realmente percebi que quem eu vou acompanhar não pode ser definida por nada além de um monstro.
— Eu já não disse para se atentar na movimentação ao ambiente? Se quer sobreviver ao lutar contra alguém mais forte, a única chance é evitar ser atingido até conseguir a oportunidade de fugir. — Seu único olho me causa uma pressão inexplicável de dominância, como se atingi-la fosse algo que não conseguiria fazer mesmo que treinasse loucamente.
— Estamos nisso a duas horas, pelos deuses. Eu me moveria melhor se descansasse um pouco. — Respondi com o resto de energia que ainda me resta, mas Helen não parece ligar para a minha opinião.
Antes que meus olhos tivessem a chance de acompanhar o movimento ao meu redor, Helen apareceu ao meu lado pronta para me desacordar pelo resto do dia. Talvez por um instinto ou a guarda de um deus que é gentil o suficiente com a minha vida, meu ombro direito se inclinou o bastante para efetuar a esquiva.
Entretanto, minha mente se forçou tanto para desviar que não percebi o chute que veio ao mesmo tempo na minha perna, que foi obrigada a se ajoelhar no solo.
— Ótimos reflexos, mas sua mente ainda pensa demais. O cansaço é o encosto que vai te acompanhar em cada batalha, então é bom se acostumar com ele o quanto antes. — Seu corpo se inclinou para se aproximar do meu, as mechas de seu cabelo acompanham seu rosto de uma forma que julgo que ela considera irritante, pois as colocou rapidamente atrás da orelha.
— Nem todo mundo tem o fôlego de vocês, sabia? Humanos são mais frágeis e menos fortes, e eu duvido que algum dia superarei um lycan em uma corrida.
A mão de Helen se estendeu ao meu alcance para que eu conseguisse me erguer novamente, mas meu real desejo é permanecer no chão por mais tempo. Assim que meu corpo ficou de pé, ela decidiu continuar sua explicação.
— Em termos físicos, pode ser realmente difícil ganhar de um lycan com as mãos nuas. Entretanto, seu objetivo no treinamento é a paciência e a mentalidade. Seu estilo de luta não será focado em atacar, mas se esquivar de qualquer ataque e revidar no momento certo com um golpe certeiro.
Um estilo de luta que não foca em atacar, mas em se defender. Não me parece uma boa ideia inicialmente, mas Helen parece bastante convicta nesse assunto. Suspirei fundo e retirei o suor acumulado em minha testa com as costas da mão direita, a fim de aproveitar o descanso enquanto essa aula durar.
— Vou focar apenas em me defender? Como isso vai ajudar a derrotar um inimigo que me descobrir como espião no império?
— Não é apenas defesa, é evitar ser atingido o máximo possível enquanto analisa o oponente. Em uma luta real, a frustração por não conseguir golpear ou ferir o adversário é a melhor abertura que você pode conseguir, e é nesse momento que a defesa fica em segundo plano para o ataque. Apenas um, mas certeiro e eficiente para que o inimigo conheça o deus da morte mais cedo.
Agora, minha compreensão sobre esta técnica ficou mais evidente. Existem muitas pessoas mais fortes do que eu no império, e estou prestes a passar por cima deles e desativar as defesas da cidade mais segura do mundo. Se quero tornar isso possível apenas com força, meu treinamento demoraria décadas.
Mas se eu não for atingido em primeiro lugar, a força do meu adversário não importa.
— Agora que isso ficou claro, vamos continuar. — Assim que estas palavras saíram de seus lábios, a pressão recaiu sobre o meu corpo novamente. Helen me começou uma sequência de golpes imprevisíveis, sem me deixar pensar nem por um segundo.
Sempre que eu conseguia desviar de um soco pela esquerda, um chute atinge minha costela pela direita e vice-versa. Tudo isso somado ao desgaste físico resultou em dores pelo corpo todo e um olho roxo, que foi curado logo depois do treino.
Já faz uma semana desde que fui preso, e esse processo é repetido todos os dias.
…
À tarde, a tão esperada pausa chegou. Eu estou apoiado em um tronco de uma árvore com uma grande sombra, apenas em estado de paz e felicidade. Helen observava o riacho atentamente, sua figura a distância apresentava bem menos intimidação. O uniforme da Zero foi feito a partir da vestimenta masculina, mas isso apenas reforçou as curvas de seu corpo esguio.
Fisicamente perfeita para a inspiração de todos os artistas e canções no mundo, e mentalmente a arma indestrutível do exército dos lobos. Não são coisas que combinam muito, mas isso a torna única de certa forma.
Depois de observar o riacho em calmaria por alguns instantes, Helen retornou ao meu lado sem dizer uma palavra e se sentou. A comunicação ainda não é o forte dela, mas sinto que minha presença é levemente menos irritante em sua opinião.
— Sabe, eu sempre quis saber de uma coisa.
Em resposta a meu comentário, Helen apenas inclinou levemente a cabeça em dúvida. Talvez perguntar sobre seja um erro, mas minha curiosidade cresceu significativamente após passar a manhã com ela todos os dias.
— Como você perdeu o olho esquerdo? Não me leve a mal, mas você é a pessoa mais forte que eu já conheci. Alguém forte o bastante para derrotar um orc com facilidade sofrer um ferimento desse porte não encaixa na minha cabeça.
Apenas o silêncio seguiu depois disso. Helen apenas tocou levemente os dedos no escuro tapa olho e abaixou a cabeça, sua expressão não mostrava nem raiva nem tristeza.
“Erith, seu idiota imbecil. Foi realmente um erro.”
— Me desculpe, eu não devia…
— Eu mesma que fiz isso.
Desta vez, o silêncio seguiu por minha parte. Perder a visão parcial é uma desvantagem enorme, ainda mais para uma guerreira. Mesmo que algumas pessoas consigam continuar em batalhas com essa deficiência, a maioria abandona as lutas e guerras.
Por que alguém faria isso de propósito?
— P- Por qual motivo?
— Pelo mesmo motivo que você carrega esse medalhão no pescoço. Eu não queria me tornar um monstro, só isso.
Infelizmente, toda essa conversa apenas me deixou com mais dúvidas, mas Helen parece não querer mais falar sobre esse assunto. Deixei isso de lado e comecei a observar a natureza ao meu redor, mas por alguma razão eu estou bastante inquieto hoje. As verdes árvores no bosque se tornaram apenas entediantes, suas folhas chacoalham no mesmo ritmo que das últimas vezes todos os dias. Até mesmo os pássaros, meus antigos calmantes, agora são apenas animais com barulhos irritantes que me distraem do foco.
“Acho que o que eu preciso fazer é encher a cara. Me casar também seria bom, mas isso não me parece muito possível agora.”
— Então, em quanto tempo eu estarei pronto para a grande missão? — Em meio a meu próprio devaneio, decidi perguntar sobre minhas maiores preocupações nos últimos dias.
— Eu diria que você vai ficar pronto em três meses, mas sinceramente acho que teremos que encurtar esse tempo devido os últimos dias.
É a pior resposta que eu poderia receber.
— Como assim? Houve alguma mudança na guerra?
— Vou ser bem sincera, a situação não é nada boa. Perdemos muita gente, e a produção de recursos ficou escassa devido ao frio. Por conta disso, os humanos estão cada vez mais ousados nas investidas.
Mesmo inferiores fisicamente, a raça humana consegue superar tudo com seus números exorbitantes. Além disso, ouvi algumas pessoas em Kingsback que chegaram a descrever o exército humano como “invencível”. Na época eu achei que se tratava apenas de bajulação por parte delas, mas pelo visto a situação é realmente desigual.
Considerado um traidor para os humanos e um inimigo para os lycans, eu não tenho um lugar que posso chamar de meu em nenhum dos dois mundos.
É realmente a pior situação possível.
— … O que vamos fazer então?
Novamente, Helen recostou a ponta dos dedos em seu tapa olho, o que julgo ser uma mania para evitar transparecer alguma emoção.
— Já que chegou a esse ponto, a única opção é te deixar pronto pela experiência. Não vai ser tão ruim, e eu vou estar junto caso algo aconteça.
Aí está o ponto central de toda essa conversa. É como se o mundo quisesse saber se eu estou pronto para meus objetivos, provar que realmente sou capaz de alcançar o que desejo no futuro.
“Eu vou explorar um continente desconhecido e mortal para lutar em missões suicidas por um povo que me odeia?”
— Finalmente vou em uma missão? Sinceramente, pode ser uma coisa boa. — Ao invés de expressar meus reais pensamentos, optei por uma abordagem mais animada.
No entanto, Helen parece ter percebido minha ansiedade por um segundo, pois um sorriso de escárnio surgiu em seus lábios.
— Não é o que o seu coração acelerado diz. Está com medo de caçar alguns javalis, pequeno traidor?
Senti minha veia saltar em minha testa com o apelido de traidor, mas não posso negar sua veracidade. Enfim, o lado bom é que não participarei de nada arriscado por enquanto, mas tudo pode mudar assim que nos distanciarmos da capital.
— Eu não tenho medo, sua ciclope. Alguém que tem medo te chamaria disso?
— Me diz você, ou será que esse coração acelerado significa outra coisa? — Seu olhar ficou fixo em meus olhos de repente, como se esperasse por um sinal de nervosismo. Não convivo muito tempo com essas pessoas, mas aprendi o suficiente com Helen para saber que sua única intenção aqui é me tirar do sério.
Eu duvido que ela saiba até mesmo o que seria a reação de alguém apaixonado.
— Nos seus sonhos, talvez. Mas pessoalmente arrisco dizer que prefiro passar o resto da minha vida em um subsolo imundo e mofado junto aos ratos do que com você. Tenho quase certeza de que seriam uma companhia melhor.
Talvez eu tenha exagerado um pouco, mas o resultado continua o mesmo. Helen voltou ao estado inexpressivo de sempre, o que me leva a dúvidas sobre seus atuais sentimentos.
— Ok, essa foi boa. O tempo de descanso acabou, vamos voltar ao treino. — Sem deixar transparecer nada fora do normal, ela apenas se aproximou e estendeu sua mão para me colocar de pé, assim como já fez tantas vezes no passado.
Desta vez, no entanto, eu não aceitei sua ajuda tão prontamente. Talvez o medo de ser atingido de repente, ou talvez por simplesmente não aguentar outra hora de treino, meu corpo não aceitou se mover.
Depois de relutar por um instante, forcei minha mão para agarrar a dela e me levantei, meu corpo soltou um suspiro de alívio quase que instintivo. Sem tempo para qualquer reação, um peteleco atingiu minha testa e me deixou momentaneamente desnorteado.
— Viu? Ainda pensa demais, senhor companheiro de ratos e subsolos. — O irritante sorriso de escárnio voltou ao seus lábios, e esse foi o sinal do início de uma nova rodada.
Helen investiu em um golpe pela esquerda de velocidade incomparável, mas meu corpo já havia premeditado o desvio ao curvar todo o meu tronco para trás. Quando o segundo ataque veio pela direita com destino ao meu rosto, meus joelhos já se encontravam meio dobrados para o meu corpo abaixar perfeitamente.
Por último, um potente soco se aproximava por cima para anular minha chance de me levantar. Em puro instinto, todo o meu corpo girou para a esquerda, minha visão avistou o flanco de Helen perfeitamente.
E foi ali, como se um grande xis vermelho se estendesse sobre um mapa, que eu visualizei uma abertura. A parte superior do meu corpo se inclinou para frente enquanto meus pés se firmavam no solo, uma maneira de potencializar o golpe. O mundo parecia estático, como uma grande pintura entendida sobre óleo e tinta. Naquele instante, e apenas ali, eu me senti realmente capaz de tudo.
O soco atingiu Helen no tronco meio segundo depois, seu corpo foi forçado a recuar meio passo para o lado como resultado.
Pode parecer pouco, mas é uma melhora significativa a uma semana atrás. Ela parece concordar, seu rosto transparece uma leve reação de surpresa.
— Haha! Muito bem, senhor dos ratos. Você parece finalmente ter entendido do que se trata.
Novamente, meu corpo ficou ofegante e suado, mas a frustração de horas atrás foi substituída pela euforia. A cada luta, meu corpo parece compreender ainda mais a essência de si mesmo e de tudo ao meu redor, como um desenho que lentamente toma sua forma e acabamento.
Foi assim contra o orc, e agora contra Helen.
— Não consegue deixar sair nenhum elogio que não seja acompanhado de um insulto?
Em resposta, Helen apenas deu de ombros e se virou em direção a cidade, um sinal de que o treino havia chegado ao fim. Seus passos cessaram, no entanto, e ela virou seu corpo levemente para trás a fim de conseguir encarar o meu olhar livremente.
— Bom trabalho hoje, Erith. — Não houve nenhuma expressão que comprovasse seus reais sentimentos, mas eu senti que essa era realmente a opinião dela.
Meu coração continua acelerado, no entanto. Gosto de pensar que me exercitei demais em nossa última luta, apenas isso.