Volume 1
Capítulo 8.1: Felicidade (Amélia)
O gélido frio da noite acobertava o escuro céu sem estrelas, mas a Lua se mantinha a todo esplendor no céu. Fenrir é um reino conhecido pelo clima tropical, mas no último ano até mesmo o território lycan se tornou frio e enevoado. Ninguém sabe o real motivo do clima do mundo sair do controle tão abruptamente, mas alguns dizem ser culpa do imperador. O humano mais forte da atualidade, toda essa situação se deu início após sua ascensão e conquista em Ancathen, o continente humano.
Se o imperador é realmente o responsável por isso, sua morte precisa ocorrer o quanto antes. A produção de alimentos passa por uma crise sem precedentes, e a reserva de alimentos tem previsão de escassez em até um ano.
Grande parte da reserva tem destino ao suprimento de tropas, então não vai demorar até que a população sofra ainda mais as consequências dessa guerra.
Meu pai me ensinou desde pequena a ser a rainha deste reino. Mesmo que eu me importe com a plebe, um governante deve sempre priorizar a estabilidade da coroa acima do resto. Em tempos de guerra, é apenas natural que a tragédia recaia sobre os que não tem condições, mesmo que não seja o certo.
Entretanto, meu pai também sabe que eu não permitiria algo assim.
No momento, meu laboratório continua sem o mínimo de organização. Os livros que consegui na biblioteca dos elfos estão jogados sobre a mesa, com a companhia de vários frascos vazios e ferramentas de magia. Não tive tempo nem ao menos para pensar em arrumar esse lugar, principalmente com os eventos da última semana. Primeiro, os boatos sobre a volta de espectros que vagam pelas florestas perto dos vilarejos apareceram com mais frequência, e os animais selvagens parecem inquietos pelo clima gélido. Notícias sobre as batalhas travadas na fronteira não são boas, e os elfos parecem não estar em sincronia com o nosso exército. A relação entre os nossos reinos continua em harmonia, mas os últimos eventos são como rachaduras em uma muralha.
E uma dessas rachaduras foi o evento na ruína de Vessom, onde séculos de história e tesouros quase foram perdidos. Erith Dragonir foi o responsável por passar pelas defesas e quase arrancar o tesouro real do fundador do reino élfico debaixo dos nossos olhos, e tudo piorou quando os elfos souberam que quem fazia a guarda na noite em questão era Geralt.
Elfos e rubros não se dão bem desde o início dos tempos, mas a hostilização dobrou depois da primeira grande guerra. Mesmo com o fim da guerra e a isolação dos rubros no continente infértil de Atrakis, esse ódio não desapareceu.
Foi um erro deixar a guarda para Geralt, e agora que isso aconteceu o rei Nyx ordenou que a segurança da ruína esteja sob a supervisão dos elfos, a entrada de qualquer um é expressamente proibida. Até mesmo eu teria dificuldade em entrar lá, o que torna a investigação sobre o espírito da ruína mais difícil de se concluir.
No momento em que continuo a tentar encontrar uma solução, o som de leves batidas na porta do laboratório ressoou em meus ouvidos.
— Alteza, vossa majestade solicita a sua presença no salão de banquetes. — A voz da minha empregada Kathelin me lembrou de meu compromisso esta noite. Meu pai é um homem extremamente ocupado, especialmente nos últimos dias. Sempre que ele consegue um tempo livre, ele o usa para se encontrar comigo em uma espécie de reunião de família.
Acho que ele ainda se sente solitário desde a morte da minha mãe. Como um monarca, sua responsabilidade exige que ele tenha mais de um herdeiro para o caso de um atentado à família real, mas meu pai se recusa a casar novamente. Ao invés disso, consolidou minha posição de herdeira e permanece firme em sua decisão de me entregar o trono.
Agora que penso nisso, essa também vai ser a minha obrigação em breve.
…
Os corredores do castelo estão vazios como de costume. As paredes são refinadas com cortinas de tecido fino e bordadas a ouro. Em todas elas, o símbolo da família Fenrir é posto no centro, o grande lobo dourado que intimida através de suas grandes presas. O único som ambiente nesse momento são os meus passos constantes através do corredor, o que torna esse lugar ainda mais solitário.
Na minha frente, as grandes portas do salão de banquetes eram compostas principalmente por madeira rústica, reforçada por grandes barras de ferro ornamentadas em relevos ondulados. Dois guardas estavam posicionados em cada extremidade do portão, onde fizeram sua reverência antes de se posicionarem de forma coordenada e abrirem as portas em conjunto.
O salão de banquetes é um espaço luxuoso repleto de lustres e enfeites chiques. Três janelas entregam uma vista panorâmica do reino de forma limpa, posicionadas em uma única fileira no lado esquerdo do salão. Na direita, enormes quadros que recordam os momentos memoráveis da história de nosso povo são ostentados, mas em especial estava o quadro da família real.
Meu pai aparenta estar na casa dos vinte anos na pintura, seu rosto que muitas pessoas poderiam descrever como divino era ainda mais aparente sem a barba. Os cabelos dourados estão mais curtos, e seus olhos possuíam a fervorosa energia da juventude. Ele usava a túnica branca revestida por lã e o gibão dourado com leves tons de branco realçados nas bordas. Seu sobretudo também era branco, todo o conjunto o deixa com uma imagem luminosa, quase que religiosa.
E o mais nostálgico de tudo, ele sorria. Seu sorriso feliz na pintura é algo que consigo me lembrar vagamente em minhas memórias. Esse é o tipo de sorriso que ele só demonstrava em momentos de família.
Minha mãe era uma mulher que exalava felicidade. Seus cabelos ondulados e castanhos eram como uma representação da natureza, mas o seu sorriso me deixa com uma sensação estranha no peito. O vestido preto em seu corpo era bastante simples se comparado ao estilo de uma rainha, mas isso apenas ressalta sua personalidade benevolente.
E ali, apoiada nos braços de minha mãe com uma pequena mão que segura seu cabelo, estava eu. Corpo pequeno e um pouco saliente, não aparento ter menos do que um ano no quadro. Ali naquele lugar, o mundo poderia estar estatizado que eu não me importaria.
— Algo errado? — Uma voz calma e controlada me tirou de meu estupor. Na grande e extensa mesa repleta de cadeiras, pratos e taças vazias, o último lugar no fundo estava ocupado pelo mesmo homem no quadro, com o diferencial de estar vinte e dois anos mais velho. A barba preencheu o seu rosto, e leves marcas de cansaço surgiram em seus olhos.
— Não é nada. Sinto muito pelo atraso, vossa majestade.
Ele não me parece muito feliz com essa recepção fria, mas não foi minha intenção. Na maioria das vezes em que interajo com meu pai, estou rodeada de velhos e generais do exército, então não me dou ao luxo de cortar a etiqueta.
— “Vossa majestade”? O que há com essa cordialidade?
— Apenas força do hábito, nada demais. — Respondi enquanto me ajeitava na mesa, o lugar sendo o último disponível na ponta esquerda da mesa, logo ao lado de onde meu pai se senta.
Mesmo o homem mais forte do mundo se incomoda com a distância da família.
— Já faz bastante tempo desde que jantamos juntos, está se alimentando adequadamente?
— Você me conhece, pai. A ciência não espera por pausas ou jantares, e eu também não.
— Bem, isso é o que uma alquimista diria. Mas a minha filha precisa comer, mesmo que ela não perceba a própria importância. — Sua resposta foi acompanhada pelo bater de seus talheres no prato, que agiu como um sinal para os servos abrirem as portas do salão e transportarem a comida até a mesa.
O guisado de frango é carregado por diversos temperos renomados, ao ponto de sua coloração se tornar algo mais escuro e avermelhado. Além disso, variados legumes compõem o prato perfeitamente.
Os mesmos legumes que entraram em escassez nos dias de hoje.
— Pai, eu preciso que me ajude a conseguir a autorização para entrar na ruína novamente.
Não houve uma única falha em sua expressão ao me ouvir, como se já esperasse pelo meu pedido. Não há ninguém que me conheça mais do que meu pai, e não acho que seja possível esconder algo dele.
Eu gostaria que ele pudesse dizer o mesmo em relação a mim.
— O garoto humano nos trouxe alguns problemas, mas não vejo porque recusar tal pedido. Por falar nisso, como ele está?
— Se adaptando ao lugar. Deixei Helen como responsável pelo treinamento dele no momento, e ao que parece ele superou as expectativas. Eu também vou ensiná-lo com qualquer teoria necessária para o êxito da missão.
— Admirável, mas você sabe a que me refiro. — Ele disse enquanto degusta lentamente do guisado, sempre de forma paciente. Meu pai é um homem orgulhoso, mas sabe reconhecer ameaças rapidamente. Eu já imaginava que a questão do espectro não sairia de sua mente por um tempo, e ao que parece eu estava certa.
— Não houve nenhum sinal de desequilíbrio mental ou tentativa de possessão. Sinceramente pai, até sabermos melhor que tipo de espectro causou tudo isso é difícil tomar alguma providência, ainda mais agora que a ruína tem vigilância constante.
Eu tenho alguns palpites, mas tomar decisões com apenas isso é uma loucura. Pelo relato de Geralt e o interesse do meu pai por respostas, o espectro que habita o corpo de Erith é relativamente perigoso, sua personalidade é definida como “insana”.
— Eu vou falar com Nyx pessoalmente, tenho plena certeza de que ele entenderá. Entretanto, preciso ser sincero com você filha. — Sua resposta não parece boa, a sensação é de que estou prestes a beber uma cerveja amarga em uma taverna qualquer. — Se seu esforço infelizmente for em vão, serei eu quem irá cuidar disso.
E eu estava certa, novamente.
— Ele é a melhor chance que temos em um ano inteiro.
— E também uma possível ameaça. Não há a menor possibilidade da garota humana Evelyn se encarregar do domo?
Existem alguns métodos para se disfarçar na multidão, mas apenas superficialmente. O imperador não cai em ilusões, então é de extrema importância que quem se encarregar da missão deve ser e agir de forma completamente anônima.
Meu pai sabe disso, mas também teme que eu sinta demais as possíveis perdas em uma eventual batalha.
— Se fosse possível, nós já estaríamos na capital imperial neste momento. Eu sei dos riscos, mas eu não seria sua filha se não aceitasse desafios.
Ele parece aturdido por um momento, seus olhos se abaixaram em direção ao prato agora vazio. Talvez por se lembrar de um momento muito distante em suas memórias, seus lábios se curvaram involuntariamente para formar um sorriso pacífico.
Um leve vestígio que restou daquele sorriso na pintura.
— Para ser sincero, isso é algo que você puxou da sua mãe. — Sua voz saiu um tom mais baixo que o normal, e seus olhos parecem um pouco enevoados. No entanto, tal visão durou apenas por um momento. — Muito bem, não vou interferir mais nesse assunto. Sei que vai tomar a decisão certa.
Toda essa conversa apenas me lembrou de meus objetivos ao entrar no exército. Meu pai se esforça todos os dias para administrar esse reino, sem tempo nem ao menos para ter o seu próprio luto adequadamente. Eu quero mudar isso, quero que ele possa deixar o reino para mim sem que nenhum daqueles velhos estúpidos tente enfraquecer a minha posição como rainha. Se quero que meu pai divida seu fardo comigo, preciso provar que sou digna de sua nomeação.
Preciso acabar com esse inverno.
— Mudando de assunto, quando você irá se casar?
O pouco de guisado que restava em minha boca quase saiu para fora ao ouvir isso, e eu tive que evitar ao máximo para não tossir. Senti todo o meu corpo enrubescer e meus pés formigarem, mas evitei abrir a boca para evitar a voz trêmula.
— … Como assim? — Depois de longos segundos, isso foi tudo o que consegui pronunciar.
— Já passou da hora de você arrumar um pretendente. Sinceramente, eu nem me importo se ele for um nobre ou plebeu, contanto que eu tenha a certeza de que verei o rosto dos meus netos. — Sua voz era perigosamente séria, mas sua boca estava claramente em uma luta para esconder o sorriso.
Ele parece realmente se divertir ao me ver nesse estado, mas ainda julgo haver um pouco de verdade nessa brincadeira.