O Lobo Negro Brasileira

Autor(a): Kannon


Volume 1

Capítulo 8: Amaldiçoados

Assim que o orc sentiu a ausência das correntes, ele avançou sobre mim de forma quase que instintiva. Seus passos eram pesados e lentos, mas fortes o bastante para estremecer o chão à nossa volta. Quando nossa distância chegou a meio metro, o monstro verde levantou o braço para o céu e o desceu rapidamente, na intenção de atingir minha cabeça. Me joguei para o lado imediatamente, mas os ataques continuaram sem me deixar pensar em uma contramedida. Por alguma intervenção divina ou sorte minha, eu consegui desviar de todos sem me ferir.

No momento em que o orc efetuou outro golpe mal sucedido, sua guarda foi completamente aberta por um segundo, mas esse segundo era tudo o que eu precisava. Canalizei a maior quantidade de mana que consegui em minha espada, que agora brilha com uma intensa luz azul resplandecente. O aço percorreu pelo tronco do monstro em uma velocidade inesperada, o que julgo ser por conta da leveza da espada. Entretanto, o corte não foi muito profundo, apenas perfurou a pele fibrosa de seu corpo ao ponto de causar um leve sangramento. 

Como resposta, seu rugido reverberou pelo bosque. Meus ouvidos chegaram a zunir por um instante, mas eu não posso perder o foco aqui. Sem deixar a concentração ruir, avancei para um nova investida com três golpes em pontos vitais, na esperança de ao menos causar um sangramento fatal. A luz da minha mana deixou a tonalidade azul para o vermelho vibrante, e minhas mãos tremiam loucamente. 

“ Só tenho mais seis golpes antes de ficar sem mana, tenho que pensar com calma a partir de agora.”

— Cuidado com o agarrão dele, é muito prático para quebrar uma coluna. — Há muitos metros atrás de mim, a voz de Helen me lembrou da verdadeira culpada dessa situação. Talvez pelo seu comentário ter me deixado ligeiramente irritado, não percebi o orc se aproximando a tempo. 

Seu punho atingiu o meu peito, e foi como se eu tivesse sido chutado por uma montanha. Minha mente ficou em branco por alguns segundos e a única sensação que tinha era a de que meu corpo flutuava no ar.

E de certa forma, eu realmente estava. Devo ter sido arremessado por diversos metros até tombar no tronco da árvore em que estou agora. Não consigo sentir nada e meus olhos continuam embaçados, mas o pressentimento é de pelo menos cinco ossos quebrados. Ouço um leve som de passos do meu inimigo que se aproxima lentamente, e esse é um aviso de que eu já deveria estar de pé. Apoiei meu corpo na árvore e me levantei, ainda que isso só piore meus ferimentos. Olhei em volta, mas não havia nenhum sinal da minha espada. Minha situação agora é o famoso beco sem saída, mas meu corpo está em um estado tão alto de energia e foco que não consigo pensar em outra coisa senão sobreviver.

“Se é assim, que seja.”

E ao esticar o pescoço e limpar um rastro de sangue no queixo, encarei o orc de volta com o melhor sorriso que consegui.

— Cai dentro, seu filho da puta. 

Como se tivesse entendido perfeitamente, o monstro verde respondeu com um sorriso animalesco e avançou.

Ao analisar sua estrutura de forma detalhada, existem marcas de cortes que não foram causadas por mim. Meu palpite é que Helen feriu o orc de forma considerável antes de capturá-lo, talvez como uma forma de equilibrar as coisas. 

Se eu estiver certo, então existe uma chance de sair vivo dessa.

O orc não perdeu tempo, seus golpes eram tão potentes quanto antes. Porém, toda vez que eu desviava de um soco, é como se meu corpo compreendesse algo. Quando se está mais perto da morte que cada passo da sua vida fica mais claro, uma espécie de iluminação ou revelação. 

Após outra investida do monstro, os sinais de um eventual cansaço ficaram evidentes. Ele começou a ofegar com mais frequência, e até mesmo seus olhos parecem trêmulos.

E foi nesse momento que minha empolgação atingiu um pico, e a mana vermelha ressurgiu em minhas mãos. Dois socos seguidos no monstro foram o bastante para atordoá-lo por um momento, mas eu não terminei ainda. 

Sua surpresa logo se transformou em ira, e seu rugido reverberou no ambiente. Seus braços se levantaram para uma tentativa de agarrão, mas antes que qualquer movimento pudesse ser feito uma luz vermelha surgiu na frente de seus olhos novamente. Após receber o sétimo golpe, um claro indício de estresse surgiu na expressão da criatura, que se curvou levemente para o chão enquanto ofegava constantemente. 

Não houve a menor tentativa de se defender do oitavo e nono golpe, desta vez forte o bastante para derrubá-lo no chão completamente. De repente, um objeto prateado e longo foi arremessado para perto de mim misteriosamente, interrompendo minha sequência de investidas. Era a minha espada, apenas a um metro de distância, que foi devolvida a mim por uma força anônima.

“Odeio admitir, mas essa caolha sabe como ajudar.”

E, como se um membro do meu corpo tivesse sido reimplantado perfeitamente, minha espada acompanhou a espessura da minha mana, seu aço quase que completamente preenchido pela cor vermelha. Meu oponente estava apenas estático no chão, sem esboçar um sinal de reação. Nossos olhares se chocaram, e naquele momento seu semblante não era de medo ou raiva.

Ele simplesmente parecia satisfeito, orgulhoso por morrer em uma batalha. Não considero orcs criaturas extremamente racionais, seu nível de inteligência não deve ser superior a de um ciclope ou um goblin. No entanto, se tem algo que posso me convencer é de que nossos sentimentos agora são mútuos.

Eu também estou satisfeito.

Sem perder tempo, a lâmina atravessou o peito do orc rapidamente na execução do décimo golpe. Seu sangue negro enfeitava a verde vegetação a nossa volta, e a última centelha de vida deixou seu corpo lentamente. O corpo permaneceu rígido no chão, um decreto de que ali seria o seu monumento e o local de seu descanso final.

— Hahaha. Você se saiu melhor que o esperado, tenho que admitir. Talvez você tenha uma chance de sair vivo do império, afinal. — A voz de Helen ressoou atrás de mim, novamente antes que eu percebesse sua chegada. Sua furtividade é tão elevada que me dá arrepios, mas eu não iria deixar isso transparecer na frente dela.

— Achou mesmo que eu te daria o gostinho de me ver perder? 

Ao invés disso, prefiro causar a impressão de que nada nela me deixa perturbado.

Após o confronto, fomos até um riacho no coração do bosque. Eu estou apoiado sobre uma grande rocha lisa e coberta por musgo que me acompanha entre as inúmeras árvores e o longo caminho que a água percorre. O som da natureza finalmente retornou ao estado de antes, mas eu tinha preocupações maiores em mente. Na minha frente, Helen analisa os danos que sofri na luta contra o orc. Agora que a empolgação e o nervosismo da batalha se passaram, cada parte do meu corpo parece gritar de dor. 

— Não parece muito sério, apenas deslocou o ombro esquerdo e fraturou a perna.

— Apenas? Eu poderia ter morrido lá atrás, caso não tenha notado até agora. Que tipo de treino envolve orcs acorrentados e lutas até a morte?

— O meu treino, ou o treino que me fizeram passar. Além disso, eu não deixaria você morrer. Amélia tem uma irritante preocupação com você, e eu não quero ser parcialmente responsável pela sua morte enquanto essa preocupação existir.

— É ótimo saber que não pretende me assassinar, mas não vejo como vou sobreviver se os treinos continuarem assim.

Após isso, Helen retirou de seu bolso um pequeno frasco que carregava um líquido verde e massivo aparentemente não muito degustante. Sem qualquer hesitação, ela abriu a minha boca com um forte aperto e me fez beber a poção. Mesmo se eu quisesse, é impossível sair desse aperto apenas com a força física. 

O gosto é tão ruim quanto eu imaginava, mas o pior veio depois. Helen pressionou meu ombro deslocado e o moveu rapidamente para encaixá-lo no lugar com um estalo. Instintivamente, todo o meu corpo deu sobressalto, mas eu não senti dor alguma no processo. Ao invés disso, é como se a dor estivesse se esvaindo aos poucos, sem o indício de que ela estava ali em primeiro lugar. 

— Isso vai ajudar com os ferimentos, mas ainda vai ter uma dificuldade em mover o ombro da mesma forma que antes por alguns meses. Por sorte, você é destro.

— … Obrigado, eu acho. De qualquer forma, como derrotou e prendeu aquela coisa?

— Enquanto eu terminava minha missão com os bandidos nos vilarejos. Derrotar um orc não é difícil se você sabe como eles lutam, e eu fiz isso a minha vida toda antes de ficar aqui. 

— Mas qual o motivo de deixá-lo vivo? Você não sabia que seria responsável por me treinar naquela época.

— Os Orcs vivem em bandos, então resolvi procurar o resto deles. Um orc pode chamar o resto do bando com o rugido, e eles não costumam deixar os seus para trás. No entanto, nenhuma ajuda chegou, então acho que aquele orc era um desertor. Pretendia matá-lo ontem depois da viagem, mas tive uma ideia melhor.

Helen não esboçou a menor emoção ao falar disso, como se fosse algo realmente habitual para ela. Quanto mais tempo passo com essa garota, menos sei sobre como ela pensa. 

É um saco, mas se quero evitar lutar contra orcs todos os dias, preciso fazer com que ela desgoste menos de mim. O único problema é a dificuldade de encontrar a melhor abordagem, ainda mais quando se lida com uma assassina de sangue frio e sem sentimentos.

Completamente alheia a minha frustração, Helen se recostou ao meu lado na rocha. Seu olhar fixo no medalhão prateado em meu pescoço, e sua expressão finalmente mudou para uma leve surpresa.

— Isso… Você é um amaldiçoado.

Falar sobre Ahrk pode ser bem complicado. Toda essa situação aconteceu pela minha ganância e desejo de fama, mas o meu fracasso em conseguir isso não é o problema aqui. Eu posso ser possuído no momento em que este medalhão sair do meu corpo, ser obrigado a fazer coisas horríveis e apenas esperar pelo desaparecimento de tudo que me faz ser eu mesmo.

— Minha recompensa divina por tentar passar por cima dos elfos, eu acho. Entrei na Zero para sair da prisão e exorcizar essa coisa da minha cabeça.

Em resposta, Helen apenas acenou com a cabeça. Nenhum de nós dois falou por um tempo, mas o clima surpreendentemente não era ruim. O som do ambiente natural é apenas calmante, um ótimo remédio para curar todo esse estresse dos últimos dias. Mas essa paz foi quebrada novamente por Helen, que parece cada vez mais interessada na conversa.

— É muito ruim? Sentir que a qualquer momento você pode não ser o mesmo e perder o controle?

Meu cenho se franziu imediatamente com a pergunta. Eu não quero falar isso em voz alta — especialmente na frente dela — mas não posso fugir da verdade. Minha mente se pergunta a cada minuto se já não é tarde demais para reverter isso, se todo esse esforço para viver é simplesmente fútil.

“Viver com esses pensamentos todos os dias é minha melhor definição de inferno.”

Mesmo assim, não quero morrer sem tentar exorcizar esse desgraçado. 

— Tenho que admitir, é horrível. Mas eu não penso nem por um segundo em desistir, não quando tenho a vida toda pela frente. No final, minha determinação é o que vai me livrar dessa situação de merda.

De novo, mentir sobre os meus sentimentos reais torna as coisas bem menos complicadas.

Helen, por outro lado, se levantou abruptamente e estendeu sua mão para que eu fizesse o mesmo. A palma de sua mão era surpreendentemente fina e macia, especialmente para quem vive no caminho da esgrima.

— Vamos parar por aqui hoje. A partir de amanhã, eu vou te ensinar tudo o que sei sobre estilo de combate e esgrima. Esteja aqui toda manhã bem cedo, entendido?

Minha mente simplesmente não consegue entender a situação na minha frente. Essa garota quase me matou duas vezes até agora, e de repente ela quer levar essa história de treinamento a sério? 

Era meu objetivo, mas nunca pensei que ele aconteceria tão fácil.

— O que te fez mudar de idéia?

Helen pensou sobre a minha pergunta por um tempo, mas sua reação me fez duvidar dos meus próprios olhos. Ela sorriu, não o sorriso selvagem que ela mostrou a David, mas o mesmo esboço de sorriso que ela demonstrou a Amélia.

—  Talvez eu ache que ver você apanhar pode ser um tipo de entretenimento, ou pode ser porque você passou no teste de sobrevivência. Ou talvez… Eu também saiba como é ser amaldiçoada. 



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