O Lobo Negro Brasileira

Autor(a): Kannon


Volume 1

Capítulo 7: Primeiro Passo

Depois dos eventos no estábulo, o resto do dia passou tranquilamente. Fiquei em meu quarto nas masmorras até o dia seguinte, e apenas acordei quando o som de conversas animadas ressoavam em meus ouvidos. Provavelmente, o grupo estava reunido no corredor para ir até ao refeitório da prisão.

O corredor do nosso dormitório se localiza no primeiro nível do subsolo da prisão, onde são alocados os prisioneiros condenados por delitos menores. É claro, meu crime não pode ser considerado pequeno em qualquer ponto de vista, mas fui designado a esta ala por pertencer a Zero. Alguns privilégios de entrar em missões suicidas para o reino é ter a liberdade de sair de minha cela quando quiser, ir ao refeitório ou até mesmo treinar em algum lugar. Contudo, isso só se torna possível pelo fato do bracelete ser uma espécie de vigilância ou precaução que os lycans têm sobre nós, uma garantia de que não sairemos da linha enquanto livres.

Assim que saí de minha cela, os ruídos de conversas ficaram um pouco mais claros, mas eles estão longe demais para que eu possa ouvir com clareza. 

Se me concentrar o bastante, no entanto, pode ser possível. Para ser sincero, ouvir os batimentos dos outros não é algo muito normal para um humano, muito menos o olfato apurado. 

“Se eu não for realmente humano, ainda terei sucesso em atravessar o domo? Não, eu já fiz isso antes ao passar pela ponte das lágrimas para chegar aqui. Então o que eu sou?”

Seja como for, não é uma boa ideia apresentar estas dúvidas com alguém aqui. Ser um humano é a única coisa que me afasta da execução no momento, e isso não é um luxo que eu gostaria de perder.

— Essa parede de calcário é tão interessante para você observar por cinco minutos inteiros?

Me concentrei o suficiente nos próprios pensamentos ao ponto de ignorar uma súbita presença ao meu lado. Surpreso e assustado, me afastei imediatamente com passos largos da figura, que apenas me encarou asperamente como resposta. Helen vestia roupas idênticas às de ontem, com o diferencial de estarem limpas e bem ajustadas. 

— Como chegou aqui? 

— Eu vivo aqui, como todo mundo. Hoje é o primeiro dia de treinamento, ou será que você esqueceu?

Eu não esqueci, mas não esperava que o treinamento começasse tão cedo. Cada pensamento meu é receoso em relação a isso, mas não há nada que possa fazer se quero ficar mais forte.

Bem, nada poderia piorar mais a minha manhã.

Novamente, eu estava no meio da praça comercial da cidade. O mesmo capuz cobria meu rosto ao ponto de dificultar minha identificação, mas desta vez a situação é um pouco diferente. 

— Quer me dizer o porquê precisamos ir a um ferreiro justo agora? — Abaixei o tom de voz para apenas Helen ouvir o conteúdo da conversa.

Estamos parados em frente a uma pequena loja, suas paredes externas retocadas com uma cor branca que me lembra a clareza de uma pérola. Uma janela foi construída à direita, grande o suficiente para que qualquer um pudesse ver seu conteúdo. As prateleiras exibiam todos os tipos de armas e ferramentas, desde espadas longas a cutelos e navalhas.  O símbolo de uma bigorna moldada a aço puro foi pendurado no topo do lugar, retocado por linhas de tom dourado que formam o símbolo do reino Fenrir. Um catavento foi posto logo acima do fino telhado de tijolos. Ferreiros humanos costumam moldar seus produtos em um lugar mais aberto, uma vez que a fumaça é um evento comum ao produzir armas, mas este não parece ser o caso aqui. 

— Para o nosso treinamento. Não é óbvio?

Algumas pessoas nos observavam com curiosidade, mas essa curiosidade era dissipada assim que sentiam o olhar de Helen sobre eles. 

“Se eu for descoberto agora, o que fariam comigo? Helen interviria, caso tudo saísse do controle?”

— Não vamos usar espadas de madeira? 

— Madeira? Como pretende matar alguém com madeira?

“... Na verdade, acho que ela os ajudaria a me matar.”

Rangi meus dentes com tamanha  força que por um segundos pensei que iria quebrá-los. Sem o menor aviso, Helen adentrou na loja e sinalizou com o olhar para que eu a acompanhasse. Assim que a porta de madeira foi aberta, o som de um sino sinalizou a nossa chegada. A sala de recepção da loja era bastante organizada, principalmente para uma oficina de armeiro. Uma mulher se encontra parada em frente ao que julgo ser o caixa do lugar, seu sorriso traz uma sensação de cordialidade e profissionalismo.

— Bem vindos ao Aço Dourado. Meu nome é Loranda, como posso ajudá-los? — Tudo em seu comportamento e vestimenta exala uma boa educação. Seu vestido verde esmeralda  é ajustado perfeitamente ao seu corpo, mas ainda traz uma sensação de simplicidade de uma camponesa da capital. O cabelo castanho claro foi devidamente amarrado em um penteado estiloso. Mesmo os olhos dourados não causam temor como o dos guerreiros lycan — em específico, Helen ao meu lado — mas sim uma estranha calma e conforto.

— Vilis está na forja? Tenho um pedido especial por ordem da família real. — Helen respondeu, sua voz seca e irritantemente desprovida de emoções. 

Ao contrário das minhas expectativas, Loranda não demonstrou surpresa ou desconforto pela resposta de Helen, mas uma inesperada compreensão. Sua mão direita apontou para um corredor que julgo nos levar aos fundos da loja, onde provavelmente é o local onde cada arma aqui foi feita. 

—Sim, ele está. A demanda de armas está em alta ultimamente, uma consequência da guerra. Vou avisá-lo que está aqui, senhorita Helen.

Mas Helen já estava em direção aos fundos antes mesmo de Loranda terminar de falar. Olhei para a vendedora por um momento com uma expressão de desculpas, mas duvido que ela interpretou como tal por conta do capuz que dificulta a visão do meu rosto. 

“Minha primeira loja neste lugar e tenho quase certeza de que serei expulso, tudo por culpa daquela ciclope!”

Meus passos caminharam por entre o corredor, na direção de um som de marteladas no que julgo serem chapas de aço. Apenas quando o som estava bastante nítido é que descobri se tratar de uma verdadeira oficina. O cômodo era escuro, iluminado apenas pela grande forja que expelia fogo e fumaça com bastante frequência. Um homem utilizava a forja com maestria, seu martelo moldava o aço recém aquecido para formar o início de uma lâmina. Seus longos cabelos brancos transformados pelo tempo grudaram na testa pelo suor, mas seus olhos nunca perderam o foco. A túnica que julgo ser branca originalmente agora está chamuscada e coberta de sujeira e carvão, e até mesmo a calça estava apenas em trapos de remendos.

— Sim, este ângulo é o melhor para o fio. O guarda mão não pode ser tão inclinado, mas vou fazer desta forma por se tratar de uma espada cerimonial. — O homem falava em tom pensativo. 

Helen, que observava tudo de um canto escuro, de repente caminhou na direção do homem. Seus passos não eram silenciosos, mas ele não os ouviu mesmo assim, talvez por sua atenção estar exclusiva na criação da espada. Apenas quando a distância entre os dois era de um metro, os passos de Helen cessaram.

— Ainda fala com a espada? — Ao invés disso, sua decisão foi de iniciar uma conversa sem avisar que estava ali em primeiro lugar. Como consequência, o velho foi pego de surpresa e se virou quase que instantaneamente na direção do som. Todo o seu corpo se transformou em uma aparência de uma criatura coberta de pelos e presas afiadas, as longas garras em suas mãos foram lançadas na direção de Helen na intenção de desmantelar seu corpo.

Sem rodeios, Helen desviou do golpe de forma relativamente fácil. Em resposta, sua mão direita segurou o pulso da fera firmemente e não o deixou escapar. Apenas quando o lycan se surpreendeu pela força de Helen que suas tentativas de atacar acabaram. Ao invés disso, seu corpo retornou gradativamente ao estado anterior. 

— Pelos deuses Helen, isso é jeito de chegar na loja dos outros? — Havia uma grande veia em sua testa, um sinal de seu descontentamento.

— Eu preciso de uma espada Vilis, de preferência agora mesmo.

Vilis bufou e revirou os olhos, não interessado na conversa. Sua atenção se voltou para a forja e ao martelo, que foi jogado para longe pelo próprio em sua surpresa. 

— E quem não quer uma nos dias de hoje? Você vem aqui, assusta um pobre velho como eu e ainda tem a coragem de pedir uma espada? Você ao menos tem dinheiro?

— É uma ordem de vossa alteza, não preciso de dinheiro. Além disso, você passa longe de ser um pobre velho.

Vilis parecia surpreso, mas logo essa surpresa se transformou em desdém e ele se dirigiu a um canto da oficina coberto pela escuridão, junto aos murmúrios de reclamação que saíam de sua boca.

— Amélia anda cada vez mais atrevida ultimamente, acho que ela finalmente chegou à fase rebelde. Que lástima, sinceramente. — Com seu monólogo aborrecido e irritante, Vilis avidamente procura por alguma coisa, pois vários metais e equipamentos parecem serem jogados para qualquer lugar, como se não interessassem ou servissem de nada. — E quem é esse esquisito aí com você? Ele é tão feio assim para não mostrar o rosto?

Não sei se me revelar é a melhor escolha aqui, ainda mais ao considerar que desconfio da sanidade de Vilis. Não respondi sua pergunta diretamente, decidi deixar Helen escolher o caminho.

— Este é o novato da Zero, um humano. A espada é para ele, e vossa alteza ordena que seja própria exclusivamente para treinos.

“Para mim? O que aconteceu com a espada que eu levei para a ruína?”

— … Realmente, a fase rebelde. — Vilis emergiu das sombras carregando um embrulho longo, mas aparentemente leve. Apenas a um metro de distância de mim, seus braços estendem o embrulho prontamente.

— Não é a melhor arma que já produzi, mas deve ser o suficiente.

Assim que peguei o embrulho, retirei os panos rapidamente e revelei seu conteúdo. O longo fio era consideravelmente fino, o que facilita na distribuição de peso e equilíbrio.

— É leve, mal parece ter peso. Não é muito frágil?

— Ora garoto, eu pagaria uma sacola cheia de ouro para quem conseguir quebrar isso. Ela é feita de mithril, o metal mais resistente do mundo. Se seu objetivo é treinar sem se preocupar em quebrar a arma, mithril é perfeito. — Vilis levantou a palma, e nele se criou uma pequena chama ardente que parecia dançar conforme sentia a nossa presença. Sem hesitar, ele jogou a chama na forja, que se reacendeu completamente como resultado.

— Se isso é tudo, deem o fora da minha oficina. Eu já tenho trabalho demais aqui, e não vou desperdiçar tempo com as brincadeiras da Amélia.

— Não tem medo do que a princesa pode fazer se souber que você a despreza desta forma? — Perguntei de forma realmente curiosa, mas que pode ter soado como ameaça.

— Se ela tem reclamações, que venha dizê-las pessoalmente. Será um prazer educar minha afilhada.

“Afilhada? Esse cara é padrinho da família real?”

Mesmo que minha curiosidade não tenha cessado, o olhar enfurecido de Vilis me impediu de perguntar mais e sai apressadamente da oficina. De volta a multidão, a atenção à nossa volta aumentou com uma espada em minhas mãos, mas Helen pareceu não se importar. Nossa caminhada nos levou para fora dos limites da capital, onde é possível observar as casas dos camponeses ao redor. Nosso destino foi uma área silenciosa e parcialmente coberta por árvores, o que julgo ser a entrada de um bosque. 

— Está pronto? — Ela me perguntou. Eu sou o único com uma espada aqui, mas é Helen quem possui toda a vantagem de uma possível luta. 

— Eu nem sei o que vou fazer especificamente, como espera que eu esteja pronto? — Eu respondi enquanto retiro o capuz da minha cabeça.

Mas sem responder minha pergunta, Helen se dirigiu rapidamente em direção ao bosque. Desta vez, eu não queria segui-la e permaneci no mesmo lugar. O som dos pássaros e insetos eram calmantes, mas depois de longos minutos até mesmo isso se tornou estressante. Apenas quando repensei a ideia de procurar por Helen, o som de um rosnado ressoou por entre as árvores.

O som indica algo grande, pesado e monstruoso. Senti um cheiro de sangue fresco e preparei minha espada imediatamente, desta vez com uma súbita preocupação pelo desaparecimento de minha companheira.

Mas não era preciso, pois foi Helen que surgiu calmamente por entre as árvores. Ela segurava grossas correntes de aço em suas mãos, e carregado por estas correntes estava uma enorme sombra verde que se entendia quase até o topo das árvores. Seu corpo era cheio de músculos e cicatrizes, e a única vestimenta eram os trapos que cobriam sua cintura. O Orc mostrou suas presas para mim assim que me viu, seu rugido agora é forte o bastante para atrapalhar meus sentidos.

Aqueles olhos vermelhos estão ansiosos para me devorar.

— O que você vai fazer é bastante simples: Sobreviver — Ela anunciou, as correntes que preservam minha sobrevivência foram quebradas em um único puxão.

“ E eu ainda me preocupei com essa caolha de merda.”



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