O Lobo Negro Brasileira

Autor(a): Kannon


Volume 1

Capítulo 6: Ao Encarar A Morte Escarlate

— Isso é o suficiente por enquanto. O primeiro passo é aprimorar seu condicionamento físico. Inicialmente Geralt seria o encarregado, mas ao considerar os últimos eventos entre vocês dois eu tenho uma ideia melhor. Ao mesmo tempo também vamos dar início aos seus estudos, é imprescindível que o espião saiba interceptar e decifrar as ordens quando elas chegarem. —  Amélia fechou seu livro com um pequeno baque e suspirou levemente. Lá fora, a luz do Sol havia chegado ao seu ápice, uma prova que estávamos no início da tarde.

— Então com quem eu vou aprender?

Minha aptidão física não é perfeita, mas acredito ser o bastante para me virar em uma batalha. No entanto, o mesmo não se aplica à leitura e aos estudos. Se não quero ser um espião analfabeto, melhor me empenhar bastante nas aulas.

— As aulas teóricas serão lecionadas por mim, acho que consigo te transformar em alguém culto e elegante o bastante. Para as aulas de combate, acho que é melhor você se encontrar com seu instrutor pessoalmente. — Ela respondeu ao se levantar na direção da saída. 

Assim que saímos, coloquei o capuz novamente em minha cabeça e abaixei o olhar. A praça continua tão movimentada quanto antes, vozes animadas e relinchar de cavalos se sobrepõem aos demais sons fervorosamente. A caminhada nos levou a um velho estábulo consideravelmente afastado da multidão, localizado na extremidade dos muros da capital. O estábulo tem uma estrutura espaçosa, mesmo que construída de forma simples com paredes de pedras e estruturado com madeira. Consigo ouvir sons de movimentação atrás do estábulo, algo parecido com uma luta entre duas pessoas ou mais. 

Amélia também pareceu notar, visto que uma alegria incontrolável surgiu em seu rosto. Seus passos se apressaram em direção aos fundos do local, e eu decidi segui-la. A área atrás do estábulo foi carregada com equipamentos de batalha. Espadas, lanças e escudos enfeitam o solo esverdeado pela grama completamente, com os bonecos de palha posicionados como espectadores para um tiro ao alvo. No centro deste grande palco, uma grande luta se desenrolava.

David, com a parte superior de seu corpo totalmente exposta, suava profusamente enquanto ajeitava a guarda e limpava um rastro de sangue em sua boca. Sua expressão agora é de concentração extrema, os sons ofegantes da fadiga evidente revelam perfeitamente sua condição atual. Até ontem eu me perguntava quem seria tolo o bastante para disputar com esse brutamonte em um combate corpo a corpo, mas a resposta chegou mais cedo do que eu poderia imaginar.

A figura que David observava era a de uma mulher, seus longos cabelos negros esvoaçavam levemente ao rumo da brisa. Em seu olho esquerdo, um tapa olho de couro velho e esfarrapado cobria o que julgo ser uma terrível lembrança de batalhas anteriores. Entretanto, apenas seu olho direito transmite um brilho dourado de pressão insuportável para manter o contato visual. Suas roupas são as mesmas que as minhas e dos outros membros desse esquadrão, com a exceção de estarem cobertas de sangue e suor.

Diferente de Amélia, que apresentava uma graciosidade aristocrática e pura, esta mulher possui uma beleza selvagem e violenta. Os dois se encararam por alguns segundos, o suficiente para David recuperar um pouco de suas energias.

— Você está mais lento, velhote. — A mulher comentou ao levantar os braços para começar um trabalho de aquecimento.

— E você mais rápida, pirralha. — David abriu um sorriso, aparentemente satisfeito. 

Quando o intervalo aparentemente terminou, os dois avançaram para uma nova investida e se chocaram tão rápido que mal pude acompanhar. David desferiu socos poderosos o suficientes para partirem rochas com o impacto, mas essa mulher desviou de todos com uma facilidade extrema. Sem o menor indício de cansaço ou preocupação, cada movimento dela parecia tão natural quanto respirar. De repente, ao desviar de um gancho de direita, a mulher girou o corpo e contra atacou em um soco que atingiu a cintura de David, e naquele momento eu percebi.

Foi apenas um golpe, mas com força o suficiente para levantar David a dez centímetros do solo. O mesmo caiu de joelhos segurando o abdômen, sua expressão carregada de agonia.

— Eu me rendo! Cacete, como você tem essa força com esse corpinho magrelo? — Usando o fôlego que lhe restava para falar, David não aguentou mais e se deitou no solo.

A mulher apenas sorriu como resposta. Amélia se aproximou dos dois casualmente, um indício de que eu deveria fazer o mesmo. 

— Nem ao menos trocou as roupas depois de voltar de uma viagem de duas semanas e já está treinando? — Amélia disse em um tom alegre, seu sorriso floresceu como um desabrochar da primavera.

— Não fale como se não soubesse que eu faria isso, você estar aqui já prova tudo. — A mulher respondeu, retribuindo o que julgo ser um esboço de um sorriso.

Amélia se aproximou rapidamente e a abraçou calorosamente. A mulher parecia surpresa, pois não a abraçou de volta. Eu e David nos encaramos por um momento e aparentemente chegamos à mesma conclusão de desviarmos o olhar em conjunto.

— Deuses, continua apática como sempre. — Amelia resmungou de forma infantil ao se afastar. — Foi uma boa viagem?

— Não foi nada demais. Encontrei as três gangues vagantes que assaltaram os vilarejos do norte, cada gangue tinha uma média de quinze homens. Eles não serão mais um problema.

“São muitos deles, ela fez tudo isso sozinha?!”

Finalmente, ela pareceu notar minha presença. Seu olhar parece focar diretamente em minha alma, uma sensação de vulnerabilidade agonizante. 

— Um novato? Outro humano, ainda por cima.

O clima atingiu novamente um ar de estranheza, mas desta vez eu estava diretamente envolvido. Amélia se aproximou de mim como uma guardiã na tentativa de mostrar apoio.

— Erith, esta é Helen. Ela é a principal força de combate da Zero e, a partir de hoje, sua instrutora de combate.

— O que?!

— O que?!

 De forma surpreendente, minha voz e a de Helen exclamaram em uníssono. Em resposta, o sorriso de Amélia parece ter se aprofundado ainda mais. 

— Helen, Erith será os nossos olhos e ouvidos dentro do império. Quem além de você é capaz de treiná-lo no curto período de preparação até este dia?

O cenho de Helen se franziu ao ouvir isso, mas nenhuma resposta saiu de seus lábios. Seu olhar repousou em mim novamente, desta vez sua avaliação interior é ainda mais perceptível. Se por um lado suas preocupações se originam por eu ser um humano ou por não aparentar ser forte o suficiente para a missão, as minhas são completamente diferentes.

“Se eu for atingido do mesmo jeito que David, estarei morto. Amélia nem se deu conta ainda, mas acabou de restaurar minha sentença de morte.”

Senti o suor que surgiu em minha testa neste momento, mesmo que o clima ao nosso redor esteja carregado de ventos frios.

— Quer me dizer que este garoto é quem vai acabar com a guerra do inverno? Pelo o que consigo ver, ele não seria capaz nem de passar pelos portões da capital imperial humana. Já foi lá ao menos uma vez? 

— Na verdade não, mas existe alguma outra opção além de mim para atravessar o domo?

 —  Atravessar? Pelo o que vejo, uma flecha vai atravessar o seu crânio antes mesmo de chegar até a ponte das lágrimas. 

Minha primeira impressão sobre Helen não poderia ser pior. Não entendo qual o objetivo dela em me menosprezar aqui, mas uma parte de mim acha que a única razão é me tirar do sério.

E ela conseguiu isso perfeitamente.

— Bem, fique a vontade para tomar o meu lugar se você acha que sou incapaz. Mas como nós dois sabemos que isso não é possível, fique fora disso — Após minha fala, observei as expressões tensas de David e Amélia brevemente ao fundo. Helen abriu levemente a boca em uma rara expressão de surpresa, mas logo depois tal expressão foi substituída por uma aspereza extrema.

— Como é?

Ao pensar racionalmente, essa abordagem não é a melhor escolha. Helen é a encarregada de me treinar de agora em diante, mas eu duvido que algum aprendizado saia do comportamento arrogante dela. Se eu quero mudar isso, o único jeito é provar que não sou inútil como ela pensa.

Provar que não vou abaixar a cabeça.

— O que eu quero dizer é: Cuide da sua própria vida e fique fora da minha.

O silêncio absoluto foi o que se seguiu depois disso. O vento, sons do ambiente, até mesmo as batidas do coração, tudo ficou quieto. Nossa distância é de quatro metros, e nenhum de nós dois parece ter uma arma disponível. Helen moveu o corpo para frente como se estivesse prestes a dar um passo, e no mesmo instante eu preparei o meu corpo para evitar ser atingido, ou ao menos tentar.

Não sei em que momento ela havia chegado ao meu lado esquerdo.

O único movimento que meu corpo conseguiu realizar foi o de girar minha cabeça e apenas observar enquanto seu punho vinha rapidamente em minha direção. Era como se cada momento que vivenciei até agora fosse reproduzido em meu cérebro de uma só vez, algo como viajar ao passado.

Assim que a pressão de seu punho já podia ser sentida em minha pele, fechei os olhos e esperei. Um segundo, dois segundos, mas nada aconteceu. Quando eu os abri novamente com uma leve incerteza no coração, o que entrou em minha visão foram as costas de uma mulher esguia e delicada, mas que neste momento se tornaram maiores e mais protetoras para mim do que qualquer muralha.

Amélia agora parece outra pessoa, sua mana foi liberada em intensa quantidade ao ponto do vento ao nosso redor ficar instável. Minhas ponderações anteriores estavam certas, a reserva de mana dela é realmente notável. Enquanto isso, Helen havia retornado a distância anterior, mas sua expressão atual é de surpresa.

— O suficiente. É assim que você trata um recém chegado? — A voz não parece pertencer a mulher com quem conversei até agora. Amélia se parece mais como a comandante do exército lycan e menos com a princesa do reino.

— Vai defendê-lo? Realmente? — Helen, por outro lado, não possui a mesma entonação de soberania de Amélia, mas sua frieza não podia ser menosprezada. 

— Você não está na posição de questionar minhas decisões, Helen. Eu espero que se lembre disso.

As duas se encararam em um impasse, o contraste entre ambas agora apresentado com clareza. Novamente, eu e David nos encaramos para confirmar as opiniões silenciosas um do outro. 

Ambos concluímos que a culpa disso foi minha.

— Muito bem então. — Helen disse, seus olhos se estreitaram como finas fendas. — Escute, garoto humano. A partir de amanhã eu vou treinar você da mesma forma que fui treinada, todos os dias até você concluir o seu papel insignificante ou morrer tentando. Não importa o quanto você reclame da dor ou desmaie no processo, só vai parar quando eu disser.

E ao dizer isso, ela girou o corpo e se retirou com passos largos do local. Assim que sua figura desapareceu completamente, a vida pareceu ressurgir no ambiente. Pássaros voltaram às árvores, a leve brisa reapareceu gradualmente e até mesmo os insetos apareceram para nos importunar. E neste momento, em que tudo parecia estar calmo, que meu corpo desabou no chão e eu respirei pesadamente.

— Que merda! Eu… eu quase… 

— Ela não iria te matar, nem Helen chegaria tão longe. — Amélia manteve a voz soberana, mas seu rosto parece abatido neste momento. Pelo o que observei, ela estava realmente feliz com o retorno de Helen. A relação das duas parece ser algo mais profundo do que alguém que obedece ordens de sua comandante. Se fosse para entregar um palpite, eu diria que é algo como uma amizade.

— Qual é o problema dela?

Amélia suspirou em resposta. Seus olhos se viraram para o céu em um tom pensativo, tão claros e dourados como o próprio Sol.

— Helen foi criada para a guerra, Erith. Ela é indiferente a qualquer outro tipo de emoção que não seja uma batalha ou desafio. Sei que pode ser difícil, mas tente ser compreensivo com ela.

Acho que é um pouco tarde demais para isso.



Comentários