Volume 1
Capítulo 5: Quem é você?
Acordei com o barulho das batidas na pesada porta de metal, e acredito que esse é um sinal de que já amanheceu. Me levantei lentamente na medida em que minha cabeça voltou a funcionar sem sono matinal, mas meu maior desejo ainda é voltar a dormir por mais algumas horas. Balancei levemente a cabeça para afastar estes pensamentos e abri a porta, apenas para me deparar com uma sorridente Amélia à minha espera.
— Espero que tenha descansado bastante. Tudo pronto?
— Prontíssimo. Para onde vamos? — respondi enquanto esfregava levemente os olhos, tentando mantê-los abertos.
— Preciso passar no meu laboratório e registrar algumas coisas antes das aulas, e você pode finalmente dar uma olhada no reino. Fenrir é um lugar lindo, mas já aviso que você vai chamar bastante atenção. — Ao dizer isso, ela me entregou um sobretudo escuro de tecido grosso para cobrir minha cabeça na esperança de diminuir o reconhecimento.
Assim que meus pés saíram da masmorra subterrânea, fechei os olhos e suspirei para aproveitar a revigorante luz do Sol que atingia meu corpo. Ar fresco, luz e o entorpecente barulho de movimentos ao meu redor me fazem lembrar de Kingsback, o lugar onde cresci e vivi toda a minha vida. Observando o ambiente com mais calma, sou obrigado a concordar com Amélia sobre a beleza desse lugar. Era uma grande praça comercial, extremamente comum nas capitais. Comerciantes montaram as bancas em sequência para formar dois extensos corredores, todos esbanjando as mais diversas mercadorias como comidas, armas e armaduras ou objetos estranhos.
O chão não era feito de terra, mas sim asfaltado com blocos de pedra retangulares e lisos para não atrapalhar a locomoção das carruagens, um ótimo exemplo de um reino modernizado. Olhei levemente para trás para focar minha visão na prisão que agora é meu novo lar, a aparência dela continua tão mórbida por fora quanto é por dentro, mantendo a estrutura de calcário organizada e depressiva. Era um prédio enorme se comparado a qualquer outro por aqui, talvez para passar uma impressão de algo ruim e opressor.
As pessoas ao meu redor possuíam as mais variadas características, mas havia uma em particular que me deixa intrigado: Algumas delas se parecem menos com humanos e mais como lobos, com um par de orelhas peludas logo acima da cabeça e uma longa cauda de pelagem espessa. Essas são as famosas marcas da espécie lycan, o que os torna definitivamente diferentes dos humanos.
— Erith, evite olhar tão intensamente para evitar ser descoberto. — A voz de Amélia me tirou de meu estupor, então retomei o foco e abaixei a cabeça. Entretanto, agora minha mente me leva a outro lugar ainda mais sinistro.
“Como será que são as orelhas dela? E a cauda balança se estiver feliz, tipo um cachorro?”
— Todos vocês conseguem ficar desse jeito? — Entretanto, minha pergunta não seguiu a linha de pensamento totalmente, mas a imaginação ainda corria solta.
— Mesmo nos assemelhando quase que completamente a vocês humanos, nossa genética é completamente diferente. Podemos continuar em nossa forma simples como a que estou agora, ou mudar nossa aparência para algo mais parecido com a de nossos ancestrais. É algo que todos nós aprendemos a controlar quando filhotes, mas geralmente mudamos a fisionomia em momentos de batalha ou quando um macho quer impressionar a fêmea. — Ela explicou indiferentemente, não parecendo notar minhas mudanças de expressão.
Entretanto, há outra coisa que me deixa incomodado aqui, mas desta vez é com as pessoas ao redor. Assim que passam por Amélia, eles realizam uma curta reverência antes de continuarem seu caminho. Se ela fosse apenas uma garota nobre, toda essa comoção seria desnecessária e irreal, mas não parece ser o caso. No entanto, se sua fama estiver focada no âmbito militar, a história é outra. Ídolos públicos geralmente são os que lutam para proteger a população, alguém que se importa com o povo o suficiente para morrer por eles.
O herói humano é um ótimo exemplo, sendo reverenciado e adorado por todas as raças até hoje.
— É aqui. Viu? Não foi tão difícil. — O edifício em questão é bastante simples, projetado com paredes de madeira reforçadas por aço em seus quatro metros de altura. O telhado era reto, construído a partir de telhas velhas para se proteger da luz solar. Em geral, o lugar se parece bastante com uma loja de ervas medicinais, até mesmo com uma pequena varanda para descanso. Amélia se aproximou da porta e colocou a palma da mão em uma área específica marcada com o símbolo do reino lycan, que brilhou com uma cor dourada assim que recebeu o contato. Um estalo foi ouvido e a porta se abriu instantaneamente, o brilho do símbolo real se esvaindo aos poucos até retornar ao seu estado original.
— O laboratório tem um sistema de runas de proteção, a única forma de desativar é com o reconhecimento do proprietário. — Ela me explicou, já esperando por minhas eventuais dúvidas.
— E como eu não consigo vê-las?
— Fiz alguns ajustes na composição da barreira externa a fim de evitar a desativação. As runas não formam mais ligações em cadeia a fim de protegerem o interior, mas sim obedecem a uma hierarquia sob o comando de uma runa mais densa. Contanto que a runa maior não seja afetada, a barreira não é desfeita, mas é impossível saber a localização da runa maior se a barreira não emite luz igual a um sistema de defesa convencional.
Dizer que entendi completamente seria uma mentira, mesmo assim não consigo deixar de me impressionar com a inteligência dela. Organizar um novo sistema de defesa supostamente deveria demorar meses ou até anos para ser efetivo, mas essa garota conseguiu aprimorar a barreira apenas uma dia a partir da composição e funcionamento dos pergaminhos de destrave do domínio humano.
“Ela é inteligente, mas isso não é tudo. Organizar uma coisa assim requer um nível impressionante de reserva de mana e habilidade o suficiente para a manipulação e aplicação de energia. Os humanos sabem da existência de tal prodígio no reino inimigo?”
O cheiro inebriante de ervas adentraram em meus sentidos assim que passei pela porta, acompanhado do barulho borbulhante de algo sendo preparado por um caldeirão velho, sua textura já moldada pelas chamas e o uso de vários anos O laboratório tem uma sensação surpreendente de conforto, as janelas cumpriram bem o papel de iluminar tudo com o auxílio dos raios de Sol. Um extenso balcão de madeira reforçada foi construído de forma fixa às paredes, agora lotado de livros empoeirados, papéis que descrevem anatomias de diferentes espécies e efeitos de ingredientes estranhos.
— Você é uma alquimista? Não me admira. — Comentei espontaneamente, talvez por não esperar que este lugar me trouxesse essa sensação de estranha familiaridade.
— Bem, o que posso dizer? A ciência é um ramo fascinante. — Sorrindo, Amélia se recostou em uma cadeira e sinalizou para que eu fizesse o mesmo. Em nosso último encontro eu estava preso em uma cadeira parecida, praticamente esperando a morte.
A situação atual é relativamente mais confortável.
— Eu o trouxe aqui para determinar a melhor maneira de conduzi-lo ao objetivo. Já tenho algumas informações fornecidas por Geralt, mas acredito que perguntar diretamente é mais eficaz. Pense nisso como uma conversa simples, você também pode me perguntar algo se quiser. — Ao me informar sobre a situação, Amélia localizou um de seus livros e o abriu, juntamente a uma pena tinteiro simples para as anotações.
— O que precisa saber? — Perguntei diretamente.
— Bastante objetivo, isso é bom. Para resumir a minha pergunta: Como exatamente sua magia funciona?
De modo geral, cada ser vivo nasce com um dom. Esse dom é algo que é concedido pelos deuses através do fenômeno do nascimento, por isso o casamento é um ato de extrema importância hoje em dia, além das disposições políticas envolvidas. Existem três tipos de magia que os deuses podem conceder aos mortais: Elemental, Aeros e Hereditária.
A magia elemental é a base de tudo observável ao nosso redor. Os deuses da água, fogo, terra e ar são os responsáveis por manterem o planeta em equilíbrio, cada um administrando seus domínios individualmente. A magia elemental é a categoria mais comum de se encontrar, mesmo possuindo diversas formas de uso para cada uma delas.
O segundo tipo, denominado aeros, é ligeiramente mais complicado de se entender. Se você é escolhido por uma divindade diferente dos quatro pilares da natureza, vai nascer com uma magia bastante específica. Digamos que alguém nasceu com o poder de ler mentes, é de senso comum que esta pessoa foi escolhida por Aelarion, o deus do conhecimento, da verdade e da curiosidade, por isso é uma magia aeros. Existem magias que se assemelham a fenômenos naturais como a magia elemental, mas se diferenciam desta categoria por não pertencerem aos quatro pilares. Um exemplo disso é o monarca dos céus, que controla os raios como uma verdadeira força da natureza.
O último se refere a uma magia específica de famílias abençoadas pelos deuses, contemplada apenas por seus descendentes. A magia hereditária é designada apenas às principais famílias dos elfos e dos rubros, as raças soberanas do planeta desde o princípio. Victoria se encaixa nestes requisitos por descender do extinto clã Earthson, mesmo sendo a última de sua linhagem.
— Sou um aeros. Minha magia é capaz de aumentar o impacto de meus golpes através de duas etapas: O primeiro golpe é uma espécie de início de contagem, não sendo destrutivo nem preciso. Após isso, a densidade da mana aumenta conforme a quantidade de golpes desferidos, o que resulta no aumento da força de impacto.
— Habilidade bastante interessante. Existe um limite?
— Não há um limite certo para o quão densa minha mana pode se tornar, mas meu maior número até o momento é de dez golpes, talvez pelo esgotamento da mana. — Sinto que poderia alcançar números bem maiores se minha reserva não fosse tão baixa, mas não consigo pensar em uma solução efetiva para isso.
— Tenho certeza que daremos um jeito nisso. A próxima pergunta é de âmbito pessoal, mas preciso que seja claro na resposta. Você tem algum parente ou laço afetivo no império humano?
Não existe ninguém assim. Não conheço meus pais ou alguém que posso chamar de amigo. Na verdade, isso é algo que me deixa um tanto perturbado.
Não tenho nenhuma lembrança da minha vida antes dos meus cinco anos de idade. Não sei sobre o lugar onde nasci ou como cheguei em Kingsback, muito menos a identidade dos meus pais.
— Não, nada desse tipo. — Depois de refletir por alguns minutos, respondi sua pergunta sem deixar demonstrar meu incômodo.
— Sinceramente, isso é um alívio. Não me leve a mal, eu sinto muito pela sua situação, mas invadir um lugar onde estas pessoas podem se ferir é bastante complexo no quesito emocional.
Não existe forma de contestar isso. O desconforto acontece mesmo com minha relação de indiferença com as pessoas da capital, e não me imagino com a coragem de continuar com isso se algum parente estivesse presente no momento em que a defesa do domo se extinguir. A situação em que milhares de soldados se aproximam de suas casas enquanto destroem sua cidade é inimaginável para aquelas pessoas.
E elas vão conhecer o inferno por minha causa.
— É, eu concordo.— Respondi secamente.
Nos encaramos em completo silêncio por um tempo. Arrisco dizer que ela não está necessariamente satisfeita com os resultados eminentes da invasão, mas também não consegue pensar em outra situação para o fim da guerra.
O inverno precisa acabar, é o que todos dizem.
— Eu também quero fazer uma pergunta. — De repente, decidi continuar nossa conversa
Parecendo surpresa, Amélia esboçou um pequeno sorriso antes de acenar com a cabeça em confirmação. Ao longo do dia minhas dúvidas sobre seu respeito aumentaram consideravelmente, e talvez esta seja a melhor oportunidade para descobrir seu apoio e identidade.
— Quem é você? — Minha dúvida finalmente veio à tona. Amélia se surpreendeu com isso, mas também parece ter percebido o significado da pergunta.
— Já não lhe disse antes? Sou a comandante do esquadrão Zero.
— E além disso?
Seu olhar agora me encarava fixamente, os olhos dourados estão carregados de uma pressão insuportável.
“Merda! Não era a hora certa para a pergunta?”
— Além disso… Fora de meu ofício? — Finalmente, seu olhar se dirigiu para o chão e ela parecia pensativa. Depois de longos segundos, Amélia parecia finalmente ter tomado uma decisão. — Além disso sou Amélia Fenrir, filha do monarca Edward II. Fenrir e descendente do lendário guerreiro Fenrir, membro oficial do conselho real e herdeira do trono lunar.
Desde o começo, Amélia não se parecia com alguém comum. Seu modo de agir, falar e raciocinar eram anormais para uma simples nobre ou comandante, além do respeito unânime entre os cidadãos da capital.
Minha comandante é filha do homem mais forte do mundo, e a próxima força avassaladora do continente.