Volume 1
Capítulo 4: Boas-vindas
O que entrou em minha visão foi uma sala luxuosa se comparada às demais celas. Bem iluminada com velas, mobília feita de madeira de carvalho e até um bonito tapete com uma cor que me lembra vinho de uva barato. Uma grande e escura mesa se encontra no centro, rodeada por cadeiras perfeitamente organizadas e enfileiradas. Entretanto, o que mais me chamou a atenção não foi outra coisa senão as três pessoas sentadas ali, todas vestidas com a mesma túnica branca forrada ostentando o símbolo da família real no peito, além dos braceletes de bronze bem característicos em seus pulsos.
Amélia tomou a frente e adentrou no cômodo sem rodeios, mudando o foco de todos para ela. Estas pessoas são criminosos, autores de crimes provavelmente muito piores que os meus, e mesmo assim essa garota rica não me parece preocupada. É como se ela estivesse perfeitamente acostumada com isso.
— Pessoal, esse é o nosso novo recruta, Erith… desculpe, você tem sobrenome?
— É Dragonir, Erith Dragonir.
Uma careta se formou em seu rosto ao me ouvir, mas não sei o motivo disso. Ao fundo, escutei risadas abafadas, mas intencionalmente ainda possíveis de serem ouvidas. Minha atenção se voltou para o som, e meus olhos se depararam com alguém com quem já me encontrei antes, seus olhos vermelhos me demonstrando todo o seu desdém.
Acho que o nome dele é Gertrude, ou algo parecido.
— Que tipo de nome é Dragonir? É um bom para um remédio, se quer saber.
Não pude deixar de inclinar a cabeça ao ouvir isso. Como alguém chamado Gertrude pode ironizar meu sobrenome? Sorri de volta, não permitindo deixar a impressão de alguém passivo em meu primeiro dia.
— Você parece feliz hoje, vermelhinho. Finalmente afogou o ganso ou ainda se guarda para a sua prometida?
Seu rosto corou instantaneamente, o que torna o apelido “vermelhinho” ainda melhor. Assim que senti uma satisfação imensa interiormente vi Amélia se sobrepor entre nós dois — tentando em vão esconder o sorriso — me impedindo de saborear a reação do rubro por mais tempo.
— Você e Geralt parecem já se dar muito bem, então vamos prosseguir. — Ela disse, me guiando para o encontro de cada membro individualmente. A primeira foi uma elfa alta de pele pálida como um fantasma, cabelos acinzentados extremamente lisos e rosto fino. Seus olhos eram verdes como as florestas de sua terra natal, profundamente ricos em detalhes e emoções. Ela sorriu ao me ver, mas eu percebi instantaneamente que era falso e cordial.
— É um prazer te conhecer Erith, me chamo Victoria Earthson. — Victoria cumprimentou com um aceno de mão elegante. A única forma de conseguir um sobrenome no reino dos elfos é ser descendente de algum dos clãs que administram o continente. A notícia da extinção de um deles, o clã Earthson, se espalhou nos quatro cantos do mundo. Os relatos dizem que o responsável pelo extermínio era a primeira filha do chefe do clã, mas nunca ficou claro o destino dela.
E agora eu sei que esta pessoa está bem na minha frente, usando roupas sujas de criminosos e até agindo da mesma forma.
— Não fique tão tenso, ela não morde. — Amélia estava sorrindo ao meu lado, seu braço levemente apoiado em meu ombro.
— Eu deixo essa parte para você. — Disse Victoria, retribuindo o sorriso.
Logo depois, o último a se apresentar foi um homem de porte físico impressionante, um ótimo exemplo de um “corpo de aço”. Seu cabelo alaranjado e arrepiado o deixa com um aspecto selvagem, enfatizado por seus olhos dourados da espécie lycan.
— Esse aqui é o David, meu parceiro de trabalho. — Victoria cutucou levemente David no ombro para o mesmo se apresentar, mas não obteve resposta. Ao invés disso, David cruzou os braços e permaneceu com uma expressão firme.
“Um lycan? Ele parece mais um Orc. Posso mesmo trabalhar com essa gente?”
— Escute, eu vou lhe perguntar uma coisa e quero que me responda com total sinceridade. — David finalmente disse, mantendo o cenho franzido e carrancudo. Involuntariamente senti o suor escorrer do meu rosto, o ambiente ao nosso redor agora carrega uma atmosfera gélida.
David olhou no fundo dos meus olhos como se pudesse avaliar a minha alma, nem ao menos piscando. Sua mão direita estendeu um pequeno e transparente cristal com uma imagem congelada de uma figura. É uma criança que aparenta ter cinco a seis anos, com cabelos castanhos e curtos e um semblante sorridente.
— Ela não é a criança mais fofa do mundo? — Toda aquela pose de durão se esvaiu tão rápido que quase pensei ter sido uma miragem. David agora se parece mais como um grande urso de pelúcia sorridente, as bochechas rosadas e os olhos esbanjando ternura.
“Que porra?!”
— Ugh, isso de novo? Você tem mesmo que se exibir cada vez que alguém novo chega? — Victoria recostou as mãos na cabeça ao ouvir David, sua voz carregada de aborrecimento. Amélia, pelo contrário, sorria infantilmente ao observar a interação da equipe.
“Essas pessoas… São realmente criminosos?”
— Acho que ela deve ser uma criança adorável. — Simples e direto, achei que estas características eram a melhor escolha aqui. Não quero ser torcido como um pano por estes braços enormes, então é bom dizer o que ele quer ouvir aqui.
— Minha Laura é o ser mais adorável desse mundo! Ah, que saudade da minha lobinha. — A melancolia se instaurou em seu rosto, novamente me pegando de surpresa. Minha primeira impressão de David é que ele é do tipo bastante expressivo, um completo contraste ao seu físico de guerreiro indomável.
É bem diferente do que eu imaginava originalmente. Talvez seja possível trabalhar em equipe com essa gente, mas ainda preciso deixar meus objetivos bem claros comigo mesmo. Não são meus amigos ou colegas, muito menos pessoas com as quais eu preciso me preocupar. Se meu objetivo é a liberdade, devo focar minha concentração em acabar com essa guerra de merda o mais rápido possível.
— De qualquer forma, não esperava ver outro humano por aqui — A voz de Victoria me tirou de meus pensamentos, seu comentário me despertando enorme interesse.
— Outro humano?
— O nome dela é Evelyn. Ela deve estar assaltando a cozinha do palácio neste momento. — A elfa respondeu, ignorando a expressão de Amélia ao ouvir a palavra “assalto”.
Não sei dizer quantas vezes me surpreendi hoje, mas agora é diferente. Meu objetivo neste lugar é me preparar o suficiente para atravessar o domo e desativar as defesas da capital imperial, mas qual o sentido disso tudo se não sou o único capaz de tal feito aqui? Talvez por perceber minha inquietação, Amélia suspirou levemente antes de me responder.
— Evelyn é encarregada de outra tarefa específica, não se preocupe. Além disso, acredito que ela seria pega em menos de um dia no império tentando roubar uma loja de doces.
— Isso mesmo. Também não acho que ela consiga lutar contra o Geralt aqui, muito menos trocar socos contra o monarca dos céus. — David complementou de forma monótona, seus olhos focados na figura de Laura.
Registros de figuras emblemáticas são relatados em todos os períodos da história, mas alguns nomes atingem um status diferente de qualquer outro . O monarca dos céus é um título que desperta o medo cravado no fundo da alma de qualquer um, especialmente os rubros. Na primeira grande guerra, dizem que quando se ouvia um som estrondoso parecido com trovões no campo de batalha as tropas inimigas recebiam ordens de recuar imediatamente. Todas as canções dos bardos descrevem um jovem príncipe solitário que observava a batalha no céu, e apenas aquela visão era o suficiente para trazer medo em cada um daqueles olhos escarlates.
A figura mais famosa do nosso tempo, o rei dos lycans. O meu eu normal não ousaria nem ao menos pensar em atacar alguém assim, que dirá sobreviver a tal luta. Isso me faz imaginar o quão terrivelmente poderosa é essa coisa dentro de mim, o quão perigoso é eu ainda estar vivo.
— De fato, mesmo sabendo que o principal responsável por tal feito foi o espectro, seu corpo tem uma resistência impressionante. Por falar nisso, como foi que ele entrou em contato com você tão rapidamente? — Victoria questionou, seus olhos focados no pesado medalhão de grilhões que repousa em meu pescoço.
— Não sei dizer ao certo, mas acho que ele estava preso na ruína e encontrou uma saída através de mim. Você é uma elfa, tem alguma ideia do que essa coisa possa ser?
— Não, isso é até intrigante na verdade. Os elfos são responsáveis por purificar a magia das trevas, então um espectro estar preso em um de nossos monumentos era inimaginável, ainda mais se tratando da ruína de Vessom. Eu entraria em contato com o centro de pesquisa de Millsphen, mas não posso nem colocar os pés naquele lugar.
Uma coisa me chamou bastante atenção agora. Vessom é outro nome bastante relembrado nas canções sobre as eras passadas, um nome tão famoso quanto o de Edward. O fundador do reino élfico, aquele responsável por expulsar os humanos do lugar que atualmente é chamado de Millsphen, o coração do continente de Daavil e capital do domínio élfico. Se a ruína que invadi era seu local de descanso, então aquela lápide com ornamentações de ouro deve ser dele.
Se qualquer elfo souber do que eu tentei fazer com aquele lugar, Victoria não será a única proibida de pisar em Millsphen. Por sorte, tenho certeza de que Amélia devolveu as lápides que coloquei em meu anel espacial antes de me interrogar.
Ou eu espero que sim.
— Bom, considero essa uma ótima reunião de boas-vindas. Erith, vou te mostrar o seu quarto agora, é bom que você descanse antes do início das preparações. — Amélia me informou, já caminhando na direção da saída.
A partir de agora, tudo vai ser diferente.
…
Meu cômodo de descanso é bem ao lado de onde estávamos antes, mas extremamente mais simples e apertado. As paredes voltaram a serem feitas de calcário cinza e mórbido, as únicas decorações sendo as duas tochas localizadas nas extremidades laterais da cela para iluminar a mesma, acompanhada de uma simples cama de palha velha, forrada com um lençol que originalmente deveria ser branco, mas com a óbvia passagem do tempo se transformou em uma grande mancha marrom com vestígios de sua antiga cor.
Estou deitado nela neste exato momento, relembrando todos os eventos que me colocaram nesta situação inesperada. A cama é mais confortável do que parece, mas a palha ainda causa certo desconforto em minha pele. Meus olhos parecem mais pesados agora, finalmente sentindo as consequências de uma grande viagem seguida de diversos problemas. Assim que finalmente senti um pouco de paz, eles se fecharam completamente e tudo que se seguiu foi a escuridão.
Eu deveria me lembrar de que a escuridão é minha inimiga.
— Se divertiu com os novos amigos? — Minha própria voz foi ouvida, entoada por outro alguém que não sou eu. Meu corpo congelou instantaneamente e senti o coração acelerar, abrindo os olhos com um sobressalto e olhando ao meu redor, apenas para encontrar uma escuridão sem fim.
Ele estava a apenas dois metros de distância, sorrindo como se estivesse observando uma espécie de animal engraçado. Uma cópia exata minha, não havendo diferença senão os olhos sombrios e penetrantes.
— Quando vai parar de imitar a minha aparência? — Ignorei meu medo com todas as minhas forças para responder sua pergunta, mas não consegui esconder o tremor em minhas mãos.
— É a única forma que tenho para me comunicar com você, pelo menos por enquanto. De qualquer forma, estou aqui para te dar um pequeno aviso.
Instintivamente me nego a acreditar em cada palavra que essa coisa diz, mas não acho que isso vai impedi-lo de falar o que quer mesmo assim. Sei que minha única segurança é o medalhão, então no pior dos casos não vou perder controle do próprio corpo.
— O medalhão não vai te ajudar para sempre, se quer saber.
“Porra! Ele está lendo meus pensamentos!”
— Isso não é óbvio? Estou dentro da sua mente, mesmo que não completamente. — O espectro deu de ombros ao me responder, novamente com aquela expressão nojenta de superioridade.
— E por qual motivo o medalhão perderia o efeito? — Questionei ao franzir o cenho, decidindo ignorar sua inesperada telepatia.
— Sinceramente, é até ultrajante achar que tal coisa funciona comigo. Não sou como os outros espectros que vocês podem exorcizar com um show de luzes, sou mais antigo que isso. O único efeito é o bloqueio do acesso ao seu corpo, mas ainda posso reduzir a restrição com minha magia. Qualquer deslize seu, por menor que seja, é o suficiente para que eu consiga influência total sobre seu cérebro.
— Se isso é verdade, por que me contar?
Nesse momento, sua risada ecoou no vazio. Era uma risada insana, de alguém ou algo que caiu no mais profundo poço de insanidade a muito tempo.
— Sua expressão neste momento é ótima, assim como eu imaginei que seria. Não tem nenhum objetivo nisso tudo, é apenas para ver como você reagiria. Não passa de um mero capricho.
Até algumas horas atrás, meu objetivo era me livrar do espectro para sobreviver. Não tinha nenhuma outra intenção além dessa, nem motivos para se pensar diferente. Mas isso mudou agora, posso sentir em cada parte de mim. Além da sobrevivência, quero acabar com isso da forma mais pessoal possível.
Vou matar esse filho da puta só para tirar esse sorriso orgulhoso da cara dele, ver sua expressão se desfazer em agonia e medo.
Não consigo evitar de sorrir sabendo que ele sabe o que estou pensando.