O Lobo Negro Brasileira

Autor(a): Kannon


Volume 1

Capítulo 10: Boa Caçada

No dia seguinte, uma grande neblina se instaurou pela capital. Ouvi dizer que o frio não é comum em Fenrir, e a cidade não tem estruturas para prosperar por longos invernos. Mesmo em temperaturas muito baixas, nunca houve nenhum registro de neve na região. Mesmo assim, o clima gélido se tornou o maior problema estrutural para a corte, especialmente Amélia.

O grande refeitório da prisão tem uma aparência bastante limpa, mas mórbida. As paredes são frias e cinzas, sem muita iluminação como costuma haver nas tavernas ou abrigos. Longas mesas se estendem pelo lugar em fileiras, todas rodeadas por balcões de madeira velha e desgastada por cupins. No momento, voltei a utilizar o meu casaco de lã para viagens por cima do meu uniforme da Zero, uma falha tentativa de me proteger do frio. Na minha frente, uma sopa composta por o que quase tenho certeza ser lavagem ou sobras transbordava em minha tigela. Não que eu espere um tratamento menos solidário para criminosos, mas ainda sinto a decepção em minha boca.

Foi quando eu analisava a comida e sentia o desgosto subir pela garganta que as portas atrás de mim se abriram. Eram meus companheiros de grupo, todos com suas expressões animadas e simples. 

David era o mesmo de sempre, seu corpo bem torneado é exibido plenamente mesmo no frio, desta vez com o diferencial de seu cinto carregar um grande machado na cintura. Geralt parece bem abatido, seu rosto carrega uma palidez anormal e grandes olheiras cobrem seus olhos carmesim. A elfa Victoria, no entanto, parece relativamente animada em seu semblante.

— Estou surpresa que você esteja aqui tão cedo. Como está indo o treinamento? — Victoria se ajeitou ao meu lado na mesa, sua postura e comportamento são típicos de uma garota nobre. 

— Bem, eu acho. Vocês todos vão sair em uma missão? — Respondi ao observar Geralt ajustar levemente a barra da túnica e suspirar levemente ao falhar. 

— É isso aí, vamos sair em algumas horas. Fomos enviados para o cerco na segunda frente de batalha, parece que a situação não é muito boa. — David comentou com um sorriso pacífico, sem parecer notar o peso do que acabou de dizer.

A guerra, o lugar onde sua sobrevivência depende pura e exclusivamente da sorte para aguentar a maioria das adversidades. Não fui obrigado a me alistar no exército humano na época, então tudo o que imagino sobre a guerra vem dos contos e relatos de soldados desertores e aventureiros.

Se tenho alguma certeza sobre a situação, é a de que vou me juntar a eles no campo de batalha em breve. Preciso saber como os humanos lutam, como se dividem e atacam em estratégias letais o suficiente para pressionar o exército dos elfos e os lycans. Mesmo que seja algo frio da minha parte não priorizar a sobrevivência dos meus colegas de equipe, meu objetivo é entender o campo de batalha.

— Pelo visto, não é a primeira vez que vocês saem para uma batalha. Prometem me contar tudo quando voltarem?

David e Victoria acenaram animadamente, mas Geralt ainda parece perdido nos próprios pensamentos. De repente, David se levantou de seu assento e procurou algo e saiu em passos largos do refeitório, sua expressão animada e inesperadamente surpresa.

— O que ele tem? — Perguntei para a elfa ao meu lado, que apenas sorriu misteriosamente como resposta. Minutos depois, David voltou carregando uma grande bolsa em seus ombros. 

Ele a jogou sobre a velha mesa, que cambaleou levemente com o impacto. A bolsa parece pesada e cheia, mas julgo não ser pelo excesso de armas ou peças de armadura. David a abriu rapidamente e seu conteúdo logo se revelou serem itens de viagem comuns para os aventureiros e mercenários, mas David estava interessado em outra coisa. Sua mão procurava as cegas, mas não demorou muito até que ele se animasse com o eventual sucesso. 

Seis papéis, esfarelados e amarelados pelo tempo. Cada um enfeitado por um grande desenho e uma pequena frase escrita de forma torta, provavelmente porque o autor não domina completamente a própria língua.

Ele entregou os desenhos a cada um individualmente, e logo notei que se tratava de um retrato infantil de cada um de nós, ou a forma que o autor imagina que nos parecemos. Mesmo com as imperfeições, o retrato de Victoria ressalta corretamente suas características. O mesmo com Geralt, mesmo que seus chifres estejam exagerados no desenho.

No meu caso, entretanto, não é possível dizer o mesmo. Meu palpite é de que a descrição de minhas características vieram da parte de David, que não se atentou muito aos detalhes sobre a minha espécie. O desenho era de um homem gigante com cabelos castanhos, seus olhos eram vermelhos e com o formato de longas fendas. Ele sorri, mas seus dentes eram afiados e exageradamente longos. 

Provavelmente essa é a visão pessoal de um ser humano, mas ao que parece também a versão mais amigável que o autor encontrou para me entregar.

— Então, o que achou? Minha filha não é uma bela artista? — Ele me pergunta, seus olhos ficaram carregados por um brilho anormal de orgulho. Mesmo que não fosse de meu agrado, eu não tenho o luxo de dizer as reclamações na frente de David.

No entanto, o desenho não é ruim. Mesmo exagerado, é óbvio que Laura realmente se esforçou para realizar tudo isso, mesmo que seu objetivo não me pareça claro.

A maior razão para isso é o fato de que eu não consigo ler a frase logo acima do desenho.

— Na verdade, é realmente impressionante. Mesmo assim… Eu não consigo ler a frase, sabe? — Entreguei o desenho de volta às mãos de David com a melhor expressão de desculpas que consegui, e ele parece ter entendido minha situação.

— Oh! É verdade, eu não pensei nessa parte. É uma frase desejando boa sorte nas missões e um pedido para que vocês salvem a minha pele no campo de batalha. — David disse em uma voz risonha, mas agora eu entendo o motivo de sua alegria.

Talvez não tenha nada tão estimulante para a sobrevivência de um soldado do que voltar para a sua família. 

Enquanto meus pensamentos vagavam em direções solitárias, as portas se abriram mais uma vez para a entrada de Amélia e Helen, ambas com expressões inexpressivas em seus rostos.

Para Helen é algo comum, mas Amélia costuma ser um pouco mais expressiva. O motivo, no entanto, se tornou claro no momento em que ela ajeitou a postura e ergueu levemente a cabeça. David não perdeu tempo e entregou as duas os respectivos desenhos de Laura. Helen apenas inclinou levemente a cabeça e franziu as sobrancelhas, falhando em encontrar um significado para aquilo.

Amélia, no entanto, apenas brevemente havia retornado a sua expressão carinhosa de sempre, mas só por um momento. Com um suspiro, ela colocou o desenho no bolso esquerdo de seu casaco e retornou a sua expressão rígida.

— Muito bem, esse é o momento. Informações da segunda frente relatam um número significativo do inimigo reunido na tentativa de atravessar a fronteira. Nosso objetivo é frear esse avanço de uma vez por todas e fazê-los se sentirem como ovelhas entre lobos. — Sua voz era pesada e alta, uma representação de poder e comando. 

Seus olhos não exibiam mais a delicadeza e o brilho da curiosidade, mas a frieza e ameaçadora natureza dos lobos de Daavil. O grupo parece ter se animado com sua declaração, a euforia e determinação iluminam seus olhares ansiosos. Em resposta, Amélia colocou a mão em seu peito e curvou levemente a cabeça em respeito, suas garras surgiram para demonstrar a força de sua espécie. 

David respondeu com o mesmo gesto, enquanto os outros apenas se curvaram em resposta. Helen e eu, no entanto, permanecemos imóveis no local, mesmo que por motivos provavelmente diferentes.

— Boa caçada. — Amélia disse com um sorriso simples, seus dentes agora equipados com presas longas e finas.

Enquanto o resto do grupo partiu para o campo de batalha, eu também me preparava para sair em uma viagem. A bolsa à minha frente carrega apenas o necessário para uma viagem de duas semanas, de modo que ela não fique pesada demais para o caminho. Sem rodeios, coloquei a bolsa em meus ombros e saí da minha cela em direção aos estábulos ao lado da masmorra enquanto ajusto o capuz em minha cabeça. Helen já estava lá, ajustando a cela em seu cavalo enquanto acalmava o mesmo.

— Precisamos nos apressar se quisermos chegar no local indicado em dois dias, ou então os rastros podem esfriar. — Ela disse ao subir no cavalo e afagar levemente o pelo do animal com as mãos. 

— Nem precisa repetir.

Meu cavalo é o mesmo que roubei na ponte das lágrimas naquele dia, e ele também parece ter me reconhecido. Seus olhos castanhos refletiam a minha imagem como uma porta para a alma, e eles eram particularmente gentis. 

— É bom te ver de novo, garotão. 

Um leve relincho foi feito em resposta, o que inevitavelmente trouxe um sorriso aos meus lábios. Subi em minha cela sem demora, com temor de que Helen me fizesse dobrar os turnos de vigia como punição pelo atraso. Ela, no entanto, apenas procurou indiferentemente por algum objeto em sua própria bolsa sem se importar com a minha presença.

— Encomendei isso a alguns dias com um comerciante, e ao que parece ele fez um bom trabalho. Não foi feito sob medida, mas a fivela pode ajudar a ajustar a diferença. — Em sua mão havia uma máscara esculpida principalmente a partir de ferro e reforçada com couro negro. Sua forma me lembra a cabeça de um lobo, até mesmo aos mínimos detalhes de ondulações que remetem ao pelo e o formato das presas superiores.

O objetivo por trás disso é bastante simples. Em uma eventual luta nos arredores do reino, não será possível ficar com o capuz o tempo todo. A máscara é o método mais eficaz de proteger a minha identidade por enquanto.

Helen a entregou em minhas mãos, e seu peso é relativamente maior do que o esperado. No entanto, assim que eu a coloquei sobre o meu rosto, tudo se tornou uma questão de costume. Felizmente, a máscara não me atrapalha para falar ou respirar, o que torna mais fácil a utilização recorrente.

— Eu agradeço. 

— Não há necessidade, pelo menos não ainda. Quando chegarmos ao nosso objetivo, talvez a sua gratidão não perdure por muito tempo.

Não consigo compreender o real significado de suas palavras, mas um leve arrepio percorreu o meu corpo por consequência delas. Quando outra brisa gélida trespassou sobre nós, foi como um sinal da natureza de que deveríamos nos apressar.

A minha primeira jornada nesse reino desconhecido pela humanidade começou.

Apenas quando o céu noturno estrelado pairou sobre o horizonte que os cavalos pararam. Montamos o acampamento um pouco distante da estrada a fim de evitar atenções indesejadas, mas os perigos noturnos ainda se demonstram inumeráveis em uma floresta. Uma pequena fogueira tenta nos esquentar com suas finas brasas, mas o frio se provou extremamente cruel. Todo o meu corpo treme de forma involuntária, e eu forço meus dentes ao máximo para evitar morder a língua. Aquela noite na ruína foi carregada de uma adrenalina inigualável que me impedia de sentir completamente o impiedoso clima gélido do continente Daavil. 

— Você vai adoecer nesse ritmo. — Helen comentou a minha frente, seu corpo não demonstra sentir o menor impacto com o clima. Mesmo que minha intenção fosse respondê-la, não acredito que seria capaz.

— M- Merda… de frio. — Foi tudo o que consegui dizer antes de outro arrepio percorrer todo o meu corpo.

De repente,uma inesperada sensação de calor surgiu ao meu lado, e logo descobri ser Helen com um grande cobertor feito de uma lã espessa. Assim que o cobertor foi posto em meus ombros, o ritmo dos arrepios diminuiu lentamente até um estado controlado, onde finalmente pude suspirar de alívio.

—Você sabe o que vamos enfrentar aqui fora, certo? — Helen me pergunta enquanto se senta ao meu lado na fogueira e se aconchega junto ao cobertor, a sensação de calor agora ainda mais reconfortante. 

— Se eu fosse sugerir, eu diria que você não gosta de pontas soltas. Vai atrás daquele grupo de orcs, não é?

Javalis do tamanho de cavalos foram avistados nos arredores dos vilarejos, um sinal claro de um ataque dos orcs para a região. Os javalis são a montaria dos orcs, tão grandes e territoriais que os tornam pragas mortais em qualquer lugar do mundo. Helen acenou afirmativamente com a cabeça, seus olhos fixos no que restou das brasas da pequena fogueira.

— Não me parece muito assustado. — Finalmente, o foco de seu olhar se voltou para mim. Não me tornei mais corajoso nesse meio tempo, mas agora sinto a pressão em meus ombros um pouco menor sobre os perigos que posso enfrentar nesse lugar.

— Eu não diria que não sinto medo ou algo do tipo, mas acho que minhas preocupações realmente diminuíram.

Foi quando o brilho lunar atingiu o seu ápice e os ventos se tornaram ainda mais intensos, que a fogueira finalmente se extinguiu. Helen demonstrou um raro olhar de curiosidade, até mesmo seus lábios se abriram um pouco.

— Por que?

Em resposta, eu apenas pude sorrir sem jeito e admitir a derrota.

— Odeio dizer isso, mas… É porque você está aqui.



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