Volume 1
Capítulo 11: Animação
Assim que os primeiros vestígios da manhã surgiram no céu, continuamos nossa viagem. O ponto de encontro é na parte sudeste do reino, um vilarejo chamado de Garranegra. Foi uma semana pessoalmente longa e cansativa, mas nada com o que eu não estivesse acostumado. Não houveram muitos problemas durante a viagem, e a maior parte dos turnos de vigia ficaram para Helen.
Ela não parece cansada, no entanto.
De acordo com Amélia, Garranegra é um vilarejo responsável pela principal coleta de leite e recursos do reino. Ultimamente foi relatado uma crescente no roubo e desaparecimento de gado na região, o que dificulta uma coleta de alimentos que já não anda favorável pelo agravamento da guerra.
Se analisarmos apenas o furto, é comum que uma população faminta roube uns aos outros para sobreviver à fome, mas os relatos de Helen ter avistado um orc por perto dos vilarejos é uma evidência de uma possível causa para os acontecimentos.
Uma vez que transferir soldados nas frentes de batalha para investigar é um desperdício, criminosos se tornam uma opção interessante.
— Estamos quase chegando. Este foi o último vilarejo que visitei antes de voltar para a capital. — A voz de Helen se tornou pesada e baixa conforme progredimos até a entrada do vilarejo, e eu entendi que esse é o momento de redobrar a atenção.
Além disso, verifiquei as amarras da máscara em meu rosto para evitar situações desnecessárias.
— Espero que tudo isso se resolva logo. — Comentei, minha voz um pouco abafada pela máscara negra ao redor do meu rosto.
Helen recostou a mão esquerda sobre o pelo espesso de seu cavalo, que respondeu com um relincho leve.
— Nada é tão simples assim hoje em dia. Fique atento, não deixe ninguém desconfiar da sua identidade. — Ela disse, sem me dirigir o olhar.
O primeiro movimento da vila com a nossa chegada foram os dois guardas que se apresentaram aos portões, equipados por uma simples armadura acolchoada com cores variadas em tons de verde e roxo pela quantidade de remendos.
— Alto! Quem são vocês e o que querem aqui? — Um dos guardas disse, sua lança posicionada exatamente na altura certa para um golpe rápido.
— Viemos aqui por um decreto de sua alteza real, a princesa. — Helen tomou a frente com seu cavalo lentamente e pegou um pequeno papel de seu bolso. Era uma carta pequena, mas o brasão da família real Fenrir no sinete trouxe espanto e ansiedade aos rostos dos guardas.
O mais alto deles, o mesmo que perguntou nosso objetivo, se aproximou com passos largos a Helen e analisou a carta mais de perto. O espanto aprofundou-se ainda mais em seu rosto, e ele sinalizou para que o segundo guarda abrisse os portões.
— Sigam-me, vou levá-los ao mestre Orghul.
…
A visão interna do vilarejo era relativamente simples, mas me sinto impressionado com a quantidade de pessoas que vivem aqui. Geralmente as grandes cidades são populosas, mas este vilarejo tem um trânsito muito parecido com a capital de Fenrir. Por todos os lados as pessoas caminhavam, crianças corriam soltas em sua forma lupina para disputarem corridas e pequenas lojas caseiras exibiam produtos como lã e carnes. Obviamente não passamos despercebidos por toda essa gente, mas a maioria focou sua atenção em minha máscara de lobo.
Nosso destino era a maior casa do vilarejo, bem no centro dele. Sua arquitetura era simples, mas espaçosa e organizada. A maior parte do material para a construção foi a madeira de carvalho, mas o telhado também tinha telhas com tijolos e palha para se proteger do Sol.
Prendemos os cavalos próximos a casa, e o olhar da multidão se intensificou. O guarda continuou a nos guiar até a porta, onde apenas bateu levemente e se posicionou ao nosso lado.
O que saiu da casa foi um homem gigante, tão alto e forte quanto David. Os músculos esculpidos não foram ofuscados pela túnica de tecido fino e branco, nem as cicatrizes que coroam seu peito até o umbigo.
— O que é toda essa comoção? — Orghul disse com a voz firme e calma, mas carregada de uma grande autoridade. Sua barba era espessa e volumosa, mas o rosto marcado por uma grande cicatriz no maxilar ainda é visível.
— São enviados de vossa majestade a princesa, meu mestre. Eles trazem uma carta real. — O guarda respondeu, sua mão estendida para entregar a carta nas mãos de Orghul.
O mestre do vilarejo analisou a carta com bastante cuidado, suas mãos se encarregaram de deslizar calma e mansamente pelo papel. Finalmente, seu olhar se concentrou no grande símbolo do lobo ostentado no sinete.
Orghul soltou um leve suspiro de descontentamento, mas abriu a carta mesmo assim. Seus olhos percorreram tudo em alguns segundos, e não foi possível evitar o franzir de suas sobrancelhas.
— Muito bem. A família real descreveu nesta carta que me forneceria valiosos reforços para investigar o problema do gado roubado, mas tudo o que eu recebo é uma caolha e um esquisito. — Com a voz mais pesada do que antes, Orghul estreitou os olhos em nossa direção e suspirou fundo.
— Se achar que consegue resolver tal situação sozinho, iremos embora imediatamente. — Helen tomou a dianteira novamente, seu olhar também carregado de um estresse silencioso.
— Eu não solicitaria reforços se achasse.
— Então seja um bom menino e espere sentado enquanto resolvemos isso para você.
Os dois se encararam por um longo tempo, mas a comoção da multidão fez Orghul ceder. Ele adentrou de volta a casa e sinalizou para que fizéssemos o mesmo.
A casa parecia ainda mais espaçosa por dentro, organizada e relativamente luxuosa. O primeiro cômodo que avistei foi o que acredito ser uma sala de descanso para os eventos que pessoas ricas fazem. Dois grandes sofás se completavam na parede da direita, enquanto a lareira de tijolos exibia suas chamas com clareza e esplendor.
Orghul se sentou na ponta de seu sofá mais afastado da lareira, sua mão direita tentava organizar os cabelos negros a todo custo, mas sem sucesso.
— Muito bem então, vou atualizar vocês da situação. Há algumas semanas uma de nossas vacas desapareceu durante a madrugada, mas não fizemos muito caso por provavelmente ser uma obra de desertores. Esse pensamento mudou duas semanas atrás. — Havia uma raiva reprimida em sua voz, quase que no limite para uma explosão.
Helen permaneceu de pé a alguns metros de Orghul e cruzou os braços, um pouco impaciente para esperar as informações de Orghul.
— Os moradores ouviram barulhos durante a noite e foram investigar por conta própria. Não é surpresa para ninguém aqui a facilidade que temos para farejar rastros, mas eles relatam que sentiram apenas um forte odor de carne pútrida. Quase todo o gado desapareceu da noite para o dia, e essas pessoas podem não ter o que comer com essa exigência abusiva de recursos para o exército. — Seus olhos se fecharam durante sua explicação como uma tentativa de se acalmar, mas o ranger de seus dentes ainda era bastante perceptível.
O clima não é o melhor possível no momento, mas preciso evitar falar e aumentar a suspeita sobre mim. Entretanto, me silenciar agora deixaria Helen na responsabilidade de apaziguar a situação.
E ela é a pior pessoa possível para isso.
— Pare de descontar o próprio medo e incompetência no exército, só torna tudo ainda mais patético. — Sem piedade ou limites nas palavras, o olhar de Helen é uma clara demonstração de sua arrogância.
A sala se tornou tão silenciosa que nem meu próprio batimento podia ser ouvido. Orghul apenas observou Helen com um olhar inexpressivo, mas eu consigo ver as unhas em seus dedos aumentarem e se afiarem enquanto seus pêlos dos braços se arrepiam.
— Me toma por um covarde, sua criminosa suja? — Finalmente, o rosto de Orghul se contorceu em uma raiva ascendente. As presas estavam finalmente à mostra, e uma forte brisa surgiu ao seu redor de forma anormal.
— Não, te tomo por um fraco. — Helen respondeu com um sorriso de escárnio.
A atmosfera de silêncio se quebrou como uma explosão em questão de segundos, no momento em que Orghul se levantou de seu assento e avançou com um sobressalto na direção de Helen. Meus olhos mal conseguiram acompanhar o momento em que o corpo de Helen desviou por centímetros do punho de Orghul.
Por todo o cômodo, a pressão que se criou com o vento fez com que o fogo na lareira perdesse sua glória e se esvaísse. A mana do mestre de Garranegra era densa e esmagadora, o que tornava até mesmo respirar uma tarefa difícil.
— Eu não vou aceitar essa insolência, ainda mais de gente como você. — Cada palavra que saia de sua boca exala uma fúria prestes a perder o controle. O pior cenário que temia aconteceu, e ficar em segundo plano não faz muita diferença nesse momento.
Em resposta ao vento esmagador, Helen apenas ostentou o seu melhor sorriso de superioridade, e outra explosão ressoou no ambiente. Uma névoa espessa e vermelha reverberou pela sala em uma onda de choque, desta vez forte o bastante para rachar as tábuas do chão em um estalo ensurdecedor.
— Eu digo o mesmo. — A voz de Helen ressoou como um aviso de que o próprio inferno estivesse prestes a surgir, pronto para reduzir cada mísero pedaço deste lugar em nada mais que poeira.
— Pare com isso. — Minha voz ressoou de forma abafada e lenta, mas Helen ainda conseguia me ouvir. Seu olhar me fitou por alguns instantes antes de retornar a figura de Orghul, no mesmo segundo em que a névoa se dispersou pelo ar e desapareceu.
Em resposta, Orghul também se forçou a acalmar os ânimos. A sala que antes exibia uma atmosfera luxuosa e organizada agora se encontra completamente destruída e caótica.
— Impedir que estas pessoas passem fome é exatamente o nosso objetivo aqui, senhor Orghul. Vossa alteza se preocupa com o bem estar de seus súditos, e seria uma lástima se o quer que esteja acontecendo neste vilarejo se espalhasse por todo o reino. — Cada palavra que saía da minha boca foi cuidadosamente escolhida, mesmo que minha mente não esteja realmente calma nesse momento.
“Um único erro e eu posso ser descoberto. No caso de Orghul descobrir minha identidade, as chances de uma colaboração são inexistentes.”
— E a forma que ela demonstra esta preocupação é mandar criminosos investigarem o problema? Tem outra palavra para isso garoto, e o nome é “indiferença".
Por um ponto de vista popular, Orghul não está realmente errado. Se não resolvermos a situação desse lugar, a popularidade de Amélia e seu apoio como sucessora do reino podem decair de forma ainda mais complicada.
No entanto, falhar aqui nunca foi uma opção.
— Dois dias. Nos dê dois dias para resolver a situação, e eu garanto que mudará de ideia sobre a Zero. — Minha última cartada, a confiança de que posso fazer isso em um curto espaço de tempo.
Ao meu lado, Helen apenas me observava em silêncio, mas uma leve surpresa podia ser vista em seu rosto. Orghul não me respondeu imediatamente, mas eu sinto que uma decisão já foi tomada.
— Dois dias. — Sua voz era grave, mas a compostura parece ter retornado a sua mente.
…
A floresta ao lado do vilarejo tem um forte cheiro de adubo e grama molhada, seu silêncio me traz uma sensação de conforto diferente da capital. O vilarejo é movimentado, mas sua ambientação torna o ambiente com uma clara imagem do interior que eu tenho em mente.
— Se saiu muito bem lá atrás. — A voz da minha parceira chegou aos meus ouvidos como um estalo, forte o bastante para me tirar de meu estupor e momento de paz.
O local de partida para a investigação é a entrada da floresta, o ponto de fuga mais provável para os criminosos. Qualquer tipo de rastro neste momento é de extrema importância, e por sorte minha máscara não atrapalha em nada os meus sentidos.
— Não sei se posso dizer o mesmo de você. — Respondi em tom de zombaria. Helen é a melhor pessoa que conheço para resolver uma luta ou procurar rastros, mas momentos comunicativos são seu ponto fraco.
Em resposta, ela apenas bufou e concentrou seu olhar à procura de provas.
— Não tão rápido, menino prodígio. Se nossa teoria estiver certa, deve ter uma tribo de músculos a sua espera. Vai desejar ter o meu temperamento quando a hora chegar.
Orcs são o pináculo da força de nosso mundo, e estou prestes a caçar uma tribo inteira deles. Qualquer um ficaria assustado, ou até mesmo em uma espécie de luto antecipado, mas meus sentimentos são diferentes.
— Nos seus sonhos, ciclope. — Minha voz tentou esconder ao máximo a empolgação, mas foi em vão.