Volume 1
Capítulo 12: Marte
O cheiro de grama molhada infiltrou em minha mente como um calmante, mas meu foco precisa estar em um sentido oposto. A floresta traz ao meu peito uma sensação de que acabei de entrar em um território desconhecido, e este território fará de tudo para expulsar os invasores. As folhas das árvores carregam um tom verde escuro que se predomina nos arredores, o ambiente essencial para camuflar seres de pele esverdeada. A nossa volta, cada cipó torcido me traz uma sensação de perigo, quase como se estivessem vivos.
Mas não são os cipós, os troncos velhos e majestosos que se erguem para o céu, ou mesmo as folhas enormes e vibrantes que me deixam ansioso, mas sim a sensação de que a qualquer momento enormes criaturas podem sair desse ambiente e me partir tão fácil como um graveto.
E se eu não quero que tal visão se realize, a melhor coisa a se fazer é encontrá-los primeiro e planejar a próxima ação. Rastrear é um exercício interessante de concentração, e eu me provei ótimo nisso. Qualquer vestígio que possa ser considerado um rastro tem certa utilidade para encontrar o que precisa, como um pedaço que ao longo do tempo se completa. Sou melhor em rastrear odores, mas também consigo ver vestígios físicos com certa precisão.
E neste momento, os vestígios não foram difíceis de encontrar.
Na minha frente, um enorme tronco de carvalho foi destruído por alguma coisa forte e de tamanho considerável. Galhos partidos e cascas de árvores expostas indicam que o causador estava com pressa para fugir, ou irritado por ser perseguido.
— O que você acha? Consegue ver os sinais? — Ao meu lado, Helen esboçava sua expressão habitual de indiferença.
— Talvez, mas seus sentidos são melhores que os meus. Vê o sangue seco entre as árvores? Alguma coisa passou por aqui, e foi a mais de um dia.
Eu consigo sentir tudo. Desde a mudança da brisa até o cheiro das folhas, nenhum detalhe parece querer sair de minha visão. Meus olhos se concentram em um ponto específico na ampla paisagem à minha frente.
Um pequeno sino enferrujado e amassado estava escondido entre os galhos perto do tronco, uma camuflagem quase que perfeita para o ambiente. Sinos são bem comuns em gado domesticado, e pelo tamanho ouso dizer que pertencia a um pequeno bezerro.
Somado ao rastro de sangue seco, tudo me leva a crer que os orcs não se controlaram para conseguir comida. Não é incomum que bestas selvagens percam o autocontrole por fatores externos, mas orcs são especialmente perigosos nesse estado.
As guildas de aventureiros no continente Ancathen recebem missões para extermínio de bestas o tempo todo por conta desse fenômeno, mas as causas de origem não são certeiras no assunto. Alguns dizem que é o período de acasalamento, outros se referem como uma espécie de doença que altera os sentidos das feras, mas o consenso geral leva ao mesmo resultado: Em algum momento, os animais da floresta entram em um estado ainda mais bestial e primitivo.
Enquanto eu pensava em como lidar com orcs enlouquecidos, Helen havia encontrado o pequeno sino no chão. Suas mãos pegaram o objeto com cuidado, como se ele fosse se despedaçar com o mínimo de força. Seus olhos focaram em analisar o sino por alguns segundos, até finalmente se voltarem para a floresta adentro.
— Eles foram naquela direção. Fique atento, os orcs têm um olfato considerável para saber que estamos perto.
— Não precisa repetir.
…
Quase duas horas se passaram desde o início da nossa busca. Não havia nenhum rastro bom o bastante para nos indicar que estávamos perto, e meu entusiasmo começou a diminuir.
O objetivo principal dessa missão é o meu aprendizado, por assim dizer. Helen me disse que iria me mostrar o quão longe minha evolução pode chegar, e que a única forma de conseguir melhorar rapidamente era mergulhar de cabeça nesse vasto mundo que me espera. De acordo com ela, eu iria descobrir o que um manipulador de mana realmente é capaz de realizar em seu auge.
Foi quando eu começava a me perguntar se essa demonstração realmente aconteceria que um leve cheiro de madeira queimada surgiu. É um cheiro distante, fraco o bastante para me fazer acreditar que se trata apenas de um evento aleatório na floresta.
Mas minha intuição me diz para seguir esse cheiro.
Helen parou seus passos para me observar em conflito com uma leve carranca, mas ela também parece ter percebido depois de certo tempo. Nossa pista nos levou a um novo caminho de folhagens úmidas, troncos de árvores retorcidos e carregados com uma crosta de musgo que se infiltrou em sua superfície como um parasita, seus tons de marrom escuro claramente em um estado de extinção. Continuamos o nosso caminho por um tempo, e em alguns minutos o cheiro da madeira queimada ficou gradativamente mais forte, e outros sinais começaram a surgir por conta disso.
Sons de passos pesados e lentos, o que julgo pertencerem a vários indivíduos de grande porte e possivelmente vestidos de armadura, mesmo que a mais simples. Também ouço sons de grunhidos roucos e potentes, feitos na intenção de se comunicar. Não foi preciso continuar por muito tempo para encontrar o que viemos procurar.
Um cercado em estado inicial foi a primeira coisa que vimos, construído por madeira fina e projetada por seres sem senso de cuidado com coisas frágeis. E lá, logo adentro daquele cercado mal construído, enormes monstros verdes se organizavam para estender tendas com o propósito de construir um acampamento.
Eram tão altos e fortes quanto as histórias podem contar, e assustadores em um nível muito acima das lendas. Os lisos cabelos negros se fechavam em tranças que se estendiam até o peito, enfeitados com amuletos que julgo trazerem a sensação de boa sorte a estes seres, mesmo que em minha visão não passam dos restos mortais das vítimas que cruzaram seus caminhos.
Tal visão em minha frente só me fez enxergar o quão enganado eu estava sobre a minha própria capacidade. Aquele orc com quem eu lutei semanas atrás estava desnutrido e exausto em relação aos que estão aqui. Seus corpos eram tão bem definidos que nem mesmo o mais focado guerreiro poderia chegar em tal nível, mesmo que treinasse por uma vida inteira.
Os dentes eram amarelos e alongados, em especial aos caninos. A única vestimenta capaz de cobrir seus corpos era uma espécie de couro felpudo enrolado em suas cinturas e uma armadura de couro provavelmente roubada, ambos grossos o bastante até mesmo para cegar uma lâmina. Alguns carregavam clavas de madeira esculpidas rispidamente, mas grandes o bastante para esmagar um crânio humano facilmente. Já outros preferiram as simples e eficazes lanças, tão longas e afiadas quanto uma espada pode ser.
— Pelo o que eu vejo, o número chega perto de duas dezenas. Não parece tão ruim, mas não há sinal do gado roubado. — Enquanto eu pensava em uma alternativa de ataque, a garota ao meu lado parece ter concluído sua análise em um ritmo impressionante.
— Eles devem ter um lugar especial para o abastecimento da tribo, mas pode ser em qualquer uma dessas tendas. — Respondi, vasculhando ao redor para encontrar o menor sinal do lugar em questão.
Helen ficou em silêncio por um período considerável de tempo, seu olhar profundo analisou os orcs com uma irredutível animação. Um pequeno e raro traço de um sorriso surgiu em seus lábios, e sua voz tinha consigo uma felicidade que ela falhou em conter.
— A única forma que eu vejo para que você consiga entrar lá dentro sem ser pego é com uma distração, e eu sou a melhor para esse papel no momento. — Seu corpo se curvou em uma tentativa de pegar impulso na direção do acampamento, sem esperar que eu primeiramente concorde com seu plano.
— Desde quando esse é o único jeito?!
Seus passos cessaram por um instante ao ouvir a minha voz, apenas para que ela pudesse virar brevemente seu rosto em minha direção.
— Desde agora.
E sem hesitar, seus pés se moveram livremente em um impulso forte o bastante para jogá-la vários metros adiante. Eu não pude fazer nada, nem ao menos sair do lugar enquanto Helen chocou o punho no cercado a frente em questão de segundos. A única coisa capaz de me livrar de meu estupor foi o som de um estrondo grande o suficiente para atrair dezenas de olhares enfurecidos e bestiais. Cada orc naquele lugar entrou em um estado de fúria descomunal ao perceberem uma lycan invasora em sua casa.
Diversos rugidos reverberam pela floresta, e eu me convenci a fazer o que ela queria. Corri o mais rápido que pude na direção ao acampamento sem entrar no campo de visão dos orcs, que nem se preocuparam em se atentar aos pontos cegos neste momento. Helen nem se preocupou em arrumar a guarda para entrar em um confronto, apenas relaxou o corpo e começou a falar:
— Preste atenção, Erith. Isso é o que um manipulador de mana pode fazer. — Como se soubesse que eu poderia ouvir o que ela dizia, Helen posicionou a mão direita na altura da cintura e a fechou em punho. Seus olhos se fecharam no momento em que ela respirou fundo, e sua concentração parece ter aumentado consideravelmente.
Foi então que o mundo todo começou a tremer.
— Deixe-os sentir a nossa ira, [Marte]. — Uma curta frase, dita de forma simples e em um tom baixo, mas que foi responsável por desestabilizar o ambiente ao redor de forma anormal. Toda a floresta começou a tremer e rugir, os pássaros se assustaram e abriram voo na tentativa de se afastar da esmagadora tensão que surgiu no ambiente.
E lá, no centro de todo esse caos instantâneo, a garota de cabelos negros sorria de forma selvagem enquanto sua mana se manifestava na cor carmesim. Em sua mão, uma espessa aura vermelha se contorcia e se moldava até tomar a forma de uma longa espada.
A cor do aço era a de um vermelho tão escuro que quase remetia ao negro, feito a partir da própria mana de Helen. Os orcs se agitaram ao pressentir a espada, e alguns se viraram na direção oposta na tentativa de escapar.
Helen, é claro, não os daria essa chance.
Ela avançou em uma velocidade que meus olhos não conseguiram acompanhar, e em questão de segundos um dos orcs foi atingido na garganta. Helen calmamente girou a lâmina para selar o destino da criatura e a puxou, indiferente ao sangue que manchou suas roupas no processo.
Os orcs remanescentes optaram por avançar todos de uma vez, seus golpes tomados por uma dose profunda de desespero e irracionalidade. Helen não se esforçou para desviar de qualquer ataque com lanças ou clavas que tinham por intenção atingi-la, mas [Marte] tremia de forma instável em seu punho, ansiosa por mais sangue e carnificina. Como se a situação não passasse de uma dança, [Marte] trespassava sobre os corpos dos inimigos de forma elegante e calma. Não havia magia alguma nos ataques de Helen, apenas uma manipulação de mana pura que no máximo acarretava em uma maior pressão de seus golpes.
Toda essa situação se tornou possível apenas por sua força física.
Quando a troca acabou, apenas três orcs restaram. O solo à nossa volta foi temperado por sangue fresco e pedaços de carne, e o cheiro de ferro e medo se instaurou no ambiente de forma gradual. Helen caminhou calmamente até os orcs restantes, seu semblante com a mesma sensação de frieza e indiferença.
Os orc rugiram e avançaram novamente, desta vez em turnos diferentes para distrair o oponente e executar um ataque surpresa. Aquela dança continuou por um tempo, mas não parecia haver a menor chance daquelas bestas saírem vivas. E enquanto tudo se desenrolou ao meu redor, um fraco som chamou a minha atenção.
Era um chamado, frágil e sem esperança, mas alto o suficiente para que eu pudesse ouvir. Virei meu corpo na direção ao som e ele me levou a uma tenda de lã azul esfarrapada e velha, coberta de manchas vermelhas e negras que não deveriam estar ali. Novamente, um fraco som ressoou, desta vez mais baixo e tímido.
No momento em que minha mão se estendeu para abrir a tenda, algo em minha mente me fez hesitar. Um cheiro pútrido entrou em minha mente e me fez franzir o cenho, mas me forcei a ignorar tal sentimento com a esperança de que a situação não fosse tão grave.
Mas era. Dentro da tenda, meia dúzia de corpos de animais estavam estirados como lixo, todos esfolados e desmembrados. O gado roubado, e a única esperança do vilarejo de passar o resto do ano sem miséria, acabou de forma cruel e inimaginável. O sangue que vazava de seus corpos já estava seco, mas os olhares daqueles que se foram nunca mentem, e eu não posso nem imaginar quanta dor eles sentiram antes de partir.
Fiquei apenas lá, estatizado por minutos enquanto observava tal visão à minha frente. Todos estes elementos, somados ao cheiro horrível no ar, embrulharam meu estômago em segundos e me deixaram tonto. À medida que meu mal estar subia, aquele chamado ressoou novamente no fundo da tenda, tímido e melancólico.
Era um pequeno bezerro de pelagem clara e com manchas marrons, magro e sem condições de permanecer de pé, mas vivo. Estava com a língua para fora e os olhos entreabertos, mas seu chamado permaneceu. O vigor que minha mente sentiu ao saber que pelo menos um havia sobrevivido me encheu de energia, e me apressei para segurar o pequeno bezerro em meus braços.
— Aquele sino era seu, não era?
Ele lambeu levemente o meu braço em resposta.