Volume 1
Capítulo 13: Arma Inata
A luz do fim do dia se espalhou pelo céu rapidamente, seus raios alaranjados vibram ao redor do horizonte e me trazem uma estranha sensação de conforto. Aquela floresta que outrora seria misteriosa e encantadora, agora apenas me traz arrepios e enjoo junto ao agravamento do cheiro de ferro e morte. Helen permanecia de pé em volta dos corpos sem o menor sinal de emoção, seu olhar se concentrou apenas em [Marte] enquanto a lâmina lentamente se desfazia em poeira até desaparecer. Eu quis me aproximar dela e fingir que o que aconteceu não passa de uma ilusão ou algo simplório, mas não consegui.
Algo me impedia de caminhar, como correntes que prendem meus pés e os deixam enraizados. Não sei quantos segundos se passaram nesta situação, mas a única coisa capaz de me tirar do transe foi um som suave de ternura e inquietação. O pequeno bezerro em meus braços parecia inquieto, todo o seu corpo tremia e ameaçava uma tentativa de se debater.
— Presumo que o resto não teve a mesma sorte, não é mesmo? — A voz lenta e calma da minha parceira reverberou pelo ar em uma pequena brisa. Aquela presença aterrorizante de momentos atrás se transformou em uma estranha e inesperada simpatia e ternura. Sua mão roçou levemente sobre a pelagem branca e espessa, aparentemente com medo de machucá-lo se forçasse demais.
Não quis responder sua pergunta, não podia. Meus olhos parecem sem foco e meu corpo sem energia alguma para encarar os olhares de todos aqueles camponeses famintos. Eles vão nos odiar, odiar a mim e a Helen porque falhamos em recuperar o gado roubado, odiar a coroa que os ignorou por semanas.
E, principalmente, odiar a vida em que nasceram. O rancor de nascer e viver em um lugar amaldiçoado, uma terra assombrada pela guerra.
A guerra que eu preciso terminar.
Helen segurou cuidadosamente o pequeno bezerro em seus braços, se certificando que o sangue das bestas em suas roupas não o manchasse. O animal estranhou o movimento repentino, mas não parecia nervoso. Seus olhos negros e redondos carregam uma certa curiosidade e inocencia, mas também um certo temor ao encarar o olhar indiferente de Helen.
— O que era aquela espada? Você a chamou de [Marte], o que significa? — A sensação que senti quando a lâmina vermelha se formou no espaço foi de completo choque. A pressão que aquela coisa emitia deixava até mesmo a respiração uma ação árdua.
— Aquilo é o que os manipuladores de mana chamam de arma inata. É a personificação da alma de um manipulador de mana, um espelho da própria alma representada por uma arma. De forma simples, ela é capaz de aumentar todos os atributos mágicos do portador e torná-lo soberano em seu raio de alcance.
— Um espelho da própria alma? Todos os manipuladores de mana podem fazer isso?
Quando invocada no campo de batalha, a aura vermelha parecia querer engolir tudo o que se mexia à sua volta. Ao considerar a explicação de Helen, aquilo eram os desejos de carnificina que sua alma emanava.
É uma habilidade realmente mortal. Em Kingsback, nunca ouvi falar de alguém que pudesse controlar a própria alma para matar outra pessoa.
O mundo é um lugar realmente grande.
— Pense nela como uma espécie de trunfo. Por se tratar de uma arma que atinge tudo no raio de alcance, a quantidade de mana necessária para a invocação é extrema e só poderia ser invocada uma vez por dia. Eu diria que a probabilidade de pessoas capazes de tal feito é de um a cada dez mil.
Isso explica meu desconhecimento a respeito das armas inatas. Ao seguir por esta linha, eu diria que a forma que cada arma assume se diz respeito à personalidade do portador, não sendo necessariamente uma espada. Alcançar tal feito de controle de mana pode ser reconhecido como, realmente, o ápice do poder mundial.
E minha companheira de equipe é uma dessas pessoas capaz de tal feito.
“Sinceramente… como alguém como ela foi presa?”
— Enfim, vamos deixar a aula teórica de lado por enquanto. É hora da prática. — Seu olhar se moveu primeiramente para o bezerro em seus braços antes de se virar para a esquerda, o que instintivamente me fez repetir o gesto. Um orc sobrevivente corria desesperadamente em direção ao outro lado do cercado, onde uma espécie de celeiro relativamente grande e compacto estava lacrado com madeira reforçada em excesso. Helen não parecia preocupada em impedi-lo, muito menos surpresa com o fato de um deles ter sobrevivido aos ataques de [Marte].
As mãos do monstro tremiam enquanto ele despedaçava as madeiras de reforço uma por uma. Apesar de vivo, diversos ferimentos podiam ser vistos em seu corpo, seu sangue negro se misturou ao suor e formou um líquido espesso e repugnante. A ação se repetiu por minutos até que ele finalmente parece ter concluído seu objetivo.
A porta do celeiro se abriu com um estrondo, e até mesmo o orc pareceu surpreso. Uma enorme sombra emergiu daquele lugar, ofegante e completamente bestial. Seu pelo negro era espesso e sujo por terra e sangue, mas cobria cada fibra de seu corpo como uma armadura. Era enorme, imagino que tenha quase a minha altura, mas infinitamente mais pesado e forte. Longas presas se estendiam para fora de sua boca com a ponta levemente curvada para cima, afiados o bastante para perfurar qualquer um que chegasse perto.
E aqueles olhos, finos como as serpentes e cheios de ódio, me encararam quase que imediatamente. O corpo do javali chacoalhou para afastar a poeira e palha que temperou o seu corpo, e seus grunhidos animalescos eram altos o bastante para deixar o bezerro nos braços de Helen em alerta.
E quando eu achei que nada poderia piorar, outras sombras surgiram atrás do javali, interessadas pelo barulho repentino e com a inesperada luz da liberdade. Sempre soubemos que os relatos de uma dúzia de javalis nesta área eram verdadeiros, mas a exibição de Helen agora a pouco me fez esquecer momentaneamente esse fato.
E esse descuido a minha frente parece pronto para extinguir tudo o que se infiltra em seu território.
— Mantenha a mente limpa, Erith. Javalis são mais fáceis de lidar em comparação aos orcs, e você é muito mais ágil. — No momento em que minha mente parecia entrar em desequilíbrio, a voz irritante que escuto todos os dias veio como um calmante aos meus pensamentos.
“Isso mesmo. No pior dos casos, ela está aqui.”
Toda essa situação não é uma mera causalidade. A julgar pelas falas e seu comportamento diante da situação, Helen deve ter deixado aquele orc vivo propositalmente para libertar os javalis presos no estábulo. Desde o princípio, nada até aqui saiu de seu controle.
Se ela me quiser como parte do show, eu ficarei feliz em participar.
Com a mente calma desta vez, desembainhei a espada de mithril e ajeitei a postura com os pés e o tronco. O chão em minha volta tremia levemente enquanto os javalis se aproximavam, todos grunhindo e salivando em um frenesi enlouquecido. Assim como os orcs, seu estado mental pode ser definido por tudo, menos sanidade.
Sinceramente, tal situação não poderia ser melhor.
O primeiro ataque veio rapidamente, a cabeça do animal se curvou levemente para atacar qualquer ponto frágil. O alvo foi o meu torço, que seria atingido perfeitamente se eu não girasse o meu tronco no momento exato em que as presas se voltaram aos céus. Meu corpo se move de forma instintiva desta vez, sem a necessidade de repensar o próximo movimento. Todos de uma vez, os animais avançavam e se concentravam em me atingir de todos os meios.
Mas, como Helen disse, eu sou mais ágil.
Quando o javali se esgueirou pelo meu ponto cego e avançou novamente, meus pés se moveram instantaneamente em giro rápido pela direita. Foi uma esquiva praticamente perfeita, mesmo que desajeitada. E ali,naquele segundo em que pude visualizar o animal por outro ângulo, aquele xis vermelho surgiu novamente, desta vez posicionado logo acima da nuca do javali.
Pelo o que posso ver, é uma área sem a presença de pelagem, o que expôs sua pele fibrosa e rígida. Não houve hesitação ou empatia quando a minha espada trespassou sua nuca, mesmo quando seu sangue esguichou pelo ar e atingiu o meu rosto. Conforme a intensidade da batalha crescia, algo em mim se tornava mais aparente.
Eu conseguia desviar de qualquer investida, sem exceção. Cada vez que um deles tentava me morder com as presas enormes, meu corpo agia antes da mente para desviar. A cada tentativa de empurrão, pressão ou ataque furtivo em que eu me esquivei, seus pontos fracos apareciam acompanhados de um xis vermelho.
Eu finalmente entendi. Helen me disse que a única forma de evoluir é se pressionar ao limite em um confronto. Em uma desvantagem acompanhada de risco de vida, nossa mente é forçada a raciocinar de forma alternativa.
Em resumo, cada vez que saímos vivos de uma situação de quase morte, voltamos de forma diferente. Treinos nos ajudam com as técnicas necessárias de sobrevivência, mas são as batalhas que nos moldam até o limite.
No mesmo segundo, a espada de mithril brilhou ao se misturar com a minha mana, e os animais instintivamente recuaram. O instinto foi o suficiente para saberem o perigo que a mana representa, mas eu não os daria a oportunidade de fugirem.
Com os joelhos dobrados, meus pés pegaram impulso o bastante para me chocar de frente aos javalis. Meu estilo de combate é focado na esquiva, mas eles não pareciam querer continuar a luta nesse momento.
O cabo da lâmina começou a escorregar pelo acúmulo de sangue e suor, mas eu não dou a mínima. Um novo sentimento surgiu no mais ínfimo lugar em meu peito, algo insurgente e contagiante. Era uma euforia sem tamanho, um desejo sem igual de continuar a lutar, cortar e matar para aumentar a própria satisfação. Eu já havia sentido isso antes, em minha luta contra o orc perto da capital.
A ideia de que a única forma de se sentir vivo é tirar a vida de outras pessoas. Tal pensamento é simplesmente mórbido e distorcido em primeiro lugar, mas não posso negar que seja uma parte minha.
“E pensar que eu tinha esse lado… Interessante.”
Minha respiração se tornou ofegante, meu peito ardia de modo sem precedentes, mas a euforia transcendia tudo isso. Apenas alguns deles restavam agora, nem perto de serem a ameaça de momentos atrás. Minha espada mudou do tom azul para o vermelho brilhante, e cada fibra do meu ser ansiava por mais uma batalha.
Avancei em uma finta rápida pela esquerda para evitar um ataque de frente, mas não seria preciso. Diversas aberturas estavam visíveis naquele corpo grande e pesado, o que abriu um leque de oportunidades de abate. Escolhi trespassar minha espada em um golpe horizontal de baixo para cima, especialmente na região da barriga. O sangue que se seguiu após uma ferida mortal atingir a fera salpicou o solo à nossa volta de vermelho, e seu corpo sem vida apenas desabou desajeitadamente. Quando apenas dois javalis permaneciam de pé, o orc sobrevivente se aproximou com seus passos lentos na maior velocidade que conseguiu. Sua pele estava pálida na medida que os ferimentos fatais se aprofundam em sua pele, mas a sede de sangue em seu rosto nunca se esvaiu.
“Minha mana vai se esgotar em dois ataques. Preciso ter paciência daqui em diante.”
Um dos javalis aproveitou o momento de distração para me eliminar em um único ataque, o qual não fui atingido em cheio pelo instinto de reação rápida. Entretanto, meu tronco foi atingido de raspão por uma de suas presas, fortes o bastante para causar um grande corte, mesmo que superficial. A dor em meu corpo se espalhou em um piscar de olhos e me deixou atônito, mas minha mente estava eufórica demais para parar. Tal golpe foi o último movimento que a fera pôde fazer antes da espada de Mithril revestida de mana perfurar um de seus olhos e atravessar seu crânio, seu corpo apenas se chocou com o solo como uma marionete que perdeu seus cordões.
Apenas um javali restava e, mesmo em seu estado de frenesi, o medo podia ser visto em seus olhos. Seus grunhidos de fúria e terror ressoavam pela floresta como uma lamentação, ou um xingamento. O orc sobrevivente parece compartilhar de tais pensamentos, mas seu corpo não estava em um estado em que ele pudesse rugir normalmente. Avancei em uma finta rápida que vai contra todo o meu estilo de luta, cujo única razão é evitar que seus rugidos pudessem atrair outras criaturas da floresta se esperasse demais. Minha lâmina cortava a pele do animal de forma precisa, mas sua eficiência estava prejudicada e o alvo era revestido de gordura, o que dificultava um corte profundo. Sem desistir, forcei a espada a transpassar pela garganta do javali na esperança de que a força bruta fosse a peça que faltava para um golpe fatal.
E eu estava certo, no momento em que a espada atingiu o alvo, uma grande quantidade de sangue esguichou no ar. É claro que minha magia contribuiu para atingir o impacto necessário, mas a tensão física em meus braços foi excessiva, sem sombra de dúvidas.
“Se fosse uma espada comum, ela teria se partido ao meio. Mithril é realmente impressionante.”
Meu peito estava ofegante e todo o meu corpo tremia, mas a batalha ainda não havia acabado. O orc em minha frente cambaleava de um lado para o outro na intenção de me atingir, seus olhos exalam exaustão e fraqueza. Minha magia se esgotou com o último ataque, mas não acho que isso seja necessário a essa altura.
Foi quando eu preparei minha guarda pronto para lutar novamente, que o corpo do orc cambaleou pela última vez e caiu no chão, seus últimos resquícios de vida finalizados.
Não há que dizer, definitivamente é uma decepção.