Volume 1
Capítulo 25: Cicutas, Sementes e Palavras
O prato caiu quando me levantei. Já Margareth não fez o mesmo. A garota colocou o recipiente próximo aos pés e encarou a criança ao seu lado. Ambos se fitaram por alguns instantes.
Quem eram aqueles garotinhos? Outros visitantes? Po não tinha mencionado nada sobre a chegada de mais de um visitante ao mesmo tempo. Lembrei de narciso, de como adotou uma forma humana quando nos conhecemos, mas não havia planta alguma aos arredores que pudesse fazer aquilo. Tinham acabado de emergir do campo de cicutas então era pouco provável que fossem humanos. Em todo caso, algo em mim dizia que não era boa ideia tê-los por perto. Alonguei o braço em direção a Margareth.
— Acho que é melhor continuar…
A garota não respondeu. Aquilo me deixou ainda mais nervoso. Tive que lamber os lábios antes de voltar a tentar me comunicar.
— Margareth, temos que ir…
— Você viu minha mãe, moço? — perguntou a voz aguda da criança que antes tocava meu ombro.
Medo deitou em minha pele, escorrendo viscoso por minha nuca. Limpei a garganta.
— Margareth…
— E o meu irmão? — questionou outra voz emergindo dos galhos à minha esquerda.
— Papai disse que viria logo… — outra voz.
— Já contei até cem, várias vezes… — outra.
— Por que ela ainda não voltou!? — soluçou uma menininha.
— Estou com medo!
— Eu quero ir embora!
— Cadê o meu brinquedo?
— Odeio este lugar!
— Ele disse que era pro meu bem…
— Quero ir embora!
—Quero ir embora!
— QUERO IR EMBORA!
Me inclinei e puxei Margareth pelo braço. Tínhamos que ir. Figuras de diferentes tamanhos, formas e idades se levantavam entre as cicutas. Uma mulher de armadura, um homem de cabelo esverdeado e olhos vermelhos, uma moça com um vestido repleto de babados, mais crianças… Pessoas e criaturas desconhecidas se lamentavam onde quer que olhássemos.
— Espíritos — sussurrou Margareth. — Alguma coisa os aprisionou aqui.
Um calafrio percorreu minha coluna.
— Sementes.
A imagem do pintor gritando de dor em cima do teixo voltou às minhas pupilas. Po tinha dito que sacrifícios precisavam ser feitos, mas nunca explicou quais. O que o jardim aceitava em troca? O que as pessoas estavam dispostas a dar?
O choro de um bebê reverberou pelo caminho. No entanto, parecia distante, abafado por alguma coisa. Então o vi: bracinhos rechonchudos projetando-se do chão a um lado do caminho, movendo-se freneticamente. Contive a respiração. Devagar, me aproximei. Nenhuma das outras figuras tinha se movido desde sua aparição. Se limitavam a choramingar em pé, como se raízes mantivessem seus membros fincados na terra.
Um montículo começara a ganhar forma sob os pequenos braços. Me inclinei e coloquei a mão no solo frio e húmido. Vozes repletas de dor ecoavam pela planície. Um coro macabro tinha tomado conta de ambos os lados do caminho.
Alguma coisa estava se movendo sob o chão.
Alguma coisa queria sair dali.
Alguma coisa queria respirar.
Deslizei uma camada de terra a um lado.
O rosto contorcido de um bebê chorando bramou.
Me ergui procurando colocar distância entre mim e aquela criança. Meus dedos envolveram o cotovelo de Margareth.
— Vamos embora — ordenei, sentindo a força que minha entoação jogava contra a garota.
— Em meu mundo realizamos cânticos até as almas conseguirem partir. Se estão aqui é porque não estão conseguindo descansar….
— Mas esse não é o teu mundo — disse, a voz tremendo — É o meu.
A visitante me encarou surpresa antes de levar o olhar para a minha mão apertando seu cotovelo. Não estava fazendo aquilo por querer impor alguma autoridade, mas por medo. Cada parte do meu corpo implorava por sair dali. Tínhamos que continuar. Eu precisava continuar. E se Margareth não viesse eu…
— Está tudo bem — me tranquilizou ela, levando uma mão à minha bochecha. — Eles não podem nos machucar.
Talvez não a ela, mas eu sentia que se quisessem poderiam me fazer ruir. Algo naquela situação fez com que me sentisse mais em risco do que jamais havia me sentido.
— Posso cantar enquanto continuamos — disse a garota, finalmente. — Mas não podemos correr.
Aquilo era melhor do que ficar ali parado.
— Tudo bem — respondi, soltando a visitante.
Devagar, enveredamos pelo caminho enquanto Margareth murmurava uma canção em uma língua desconhecida. Tentei me aferrar à melodia, à letra, ao ritmo com que a garota pulava de uma nota à outra. Qualquer coisa que me ajudasse a esquecer que estávamos ali, era suficiente.
Mais pessoas se ergueram entre a vegetação, acompanhadas de lamentos. Olhos arregalados, lábios secos e mãos procurando consolo nos seguiam à medida que avançávamos pela planície. Era difícil ignorá-los, era difícil não pensar em sua dor. Por sorte, chegamos ao limite do campo de cicutas durante o pôr do Sol. As entidades fantasmagóricas que tinham nos acompanhado, não nos seguiram quando descemos em um vale repleto de arbustos. Deram meia volta e mergulharam nas plantas de onde haviam saído.
Andamos um pouco mais antes de minhas pernas cederem. Margareth não falou nada. Se limitou a procurar galhos secos com os quais acender sua fogueira de chamas esverdeadas.
Eu fiquei ali. Sentado. O olhar perdido, flutuando no espaço.
— A morte não é nossa inimiga — explicou a garota sentando-se ao meu lado. — Ao contrário. Ela é a única a estar sempre com nós.
Não abri a boca. Não tinha forças para aquilo. Em lugar disso, deitei de costas no chão e me dispus a dormir. Não demorou para minha consciência desaparecer sob minhas pálpebras.
***
Meu pescoço doía quando acordei. Vozes agudas ecoavam distantes. Uma delas estava exaltada, talvez brava com alguma coisa. Me incorporei à procura dos donos daquele som. O disco solar brilhava com força no céu. Margareth não estava por perto. Sacudi a cabeça, tentando dispersar o sono que ainda espreitava. A fogueira estava apagada.
— Margareth? — chamei.
Ainda atordoado pelo cansaço, enveredei pelo caminho seguindo o rastro deixado pelas vozes. Não demorei a encontrar os proprietários do som entre os arbustos. Uma expressão de ódio se desenhava no rosto de Margareth enquanto ela bramava alguma coisa para Po. Ver aquelas rugas de raiva em suas feições fez com que não a reconhecesse. Pouco lembrava a híbrida de palavras aconchegantes que conhecera um par de dias atrás.
Me aproximei.
O sorriso de Po refulgia sob o céu matinal.
— Você tomou uma decisão, milady. Não vou interferir nela. — ria a criança.
— Vou encontrar a mandrágora e…
Margareth reparou em minha presença. Aquilo a tinha pego de surpresa. Sorriu e acenou para mim.
— Não sabia que estava acordado — me cumprimentou, dando alguns passos em minha direção.
— O que está fazendo aqui? — inquiri, encarando Po.
— Bom dia pra você também — me cumprimentou.
As palavras do campo de cicuta ecoavam em meus ouvidos. Contive uma náusea. Como Po podia estar tão tranquilo, mesmo sabendo de todo o sofrimento que o jardim causava? Como podia continuar como se nada estivesse acontecendo?
— O que está fazendo aqui?
— Só vim ver se estavam sendo bonzinhos um com o outro…
— E? Estamos sendo?
Po confirmou movendo exageradamente a cabeça.
— Então já pode ir.
Margareth franziu as sobrancelhas preocupada. Temia que a criança fizesse algo comigo? Pouco me importava. Naquele momento, não queria vê-lo. Saber que alguém era dono de um lugar tão horrível como o jardim fazia minha barriga se contorcer.
A criança não pareceu se incomodar com minha fala.
— Sim, sim… Nos vemos amanhã à noite então.
Nem a visitante, nem eu dissemos nada.
— Solano… Nem cerejeiras, nem cicuta: o maior veneno são as palavras.